sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Refrões da cidade

Menino das Laranjas
(Théo de Barros)

"Menino que vai pra feira
Vender sua laranja até se acabar
Filho de mãe solteira
Cuja ignorância tem que sustentar

É madrugada, vai sentindo frio
Porque se o cesto não voltar vazio
A mãe já arranja um outro pra laranja
Esse filho vai ter que apanhar

Compra laranja, laranja, laranja, doutor
Ainda dou uma de quebra pro senhor!

Lá, no morro, a gente acorda cedo
E é só trabalhar
E comida é pouca e muita roupa
Que a cidade manda pra lavar

De madrugada, ele, menino, acorda cedo
Tentando encontrar
Um pouco pra poder viver até crescer
E a vida melhorar

Compra laranja, laranja, laranja, doutor
Ainda dou uma de quebra pro senhor..."

Até então, eu partia da música para o ensaio, ou seja, diante do que sentia ao ouvir a música, eu escrevia. Desta vez, no entanto, foi diferente: ao presenciar o vendedor de sombrinhas da Praça XV seguir sem proteção sob a chuva, surgiu a idéia de escrever a crônica e a partir daí me lembrei das músicas que abordam o tema.

A letra de “Menino das laranjas” é interessantíssima. De fato, a feira é um reduto dos vendedores ambulantes, um espaço livre para eles, tal como as praias. Nestes dois ambientes, a liberdade de atuação dos camelôs é maior, apesar de o Estado regular a atividade.

Na praia, os vendedores de picolé, sanduíches e bebidas são muito bem recebidos; acredito que assim seja em virtude do interesse dos freqüentadores, que querem ser servidos à beira d’água. Na feira, além dos meninos que vendem frutas, há ainda os carregadores, com seus carrinhos de rolimã. Quando criança ia sempre à feira aos sábados e lembro do barulho dos carros de rodinhas metálicas e das brincadeiras dos meninos carregadores, seus refrões e as corridas que às vezes apostavam entre eles. Havia o trabalho, a obrigação de levar as compras alheias, mas eles não deixavam de brincar, de ser crianças, era - apesar de tudo - lúdico o modo como empurravam seus carrinhos, oferecendo seus serviços.

O fato de a versão de Elis começar com o refrão deve ser ressaltada, pois é esta repetição que o camelô usa para chamar a atenção do público para seu produto - e frequentemente são musicais e bastante criativos estes jingles das ruas.
O segundo verso da primeira estrofe, “Vender sua laranja até se acabar” dá azo a duas interpretações: o menino que se acaba ou as laranjas que se acabam; penso que os dois se acabam, na verdade; mas não sei quem fenece primeiro: será a criança ou o produto?

Quanto aos dois últimos versos da primeira estrofe, “Filho de mãe solteira / Cuja ignorância tem que sustentar”, tenho algumas considerações a fazer. O filho, a meu ver, sustenta a ignorância que nós - Estado, sociedade - criamos, na medida em que não oferecemos educação a boa parte da população.

A estrofe seguinte trata da angústia da criança, que só pode voltar quando o cesto estiver vazio, caso contrário ele será substituído por outro filho e ainda castigado. Será que conseguimos nos imaginar, aos 8 ou 9 anos, saindo de casa bem cedo com um cesto de laranjas nas mãos, sem hora pra retornar; ou melhor, só podendo voltar quando o produto acabar, seja lá quando isto acontecer?

A intenção do texto é proporcionar esta identificação, é uma tentativa de preencher estes homens, pois de fato é como se eles fossem vazios da substância que os faz humanos e que permite a identificação das pessoas que ignoram sua realidade. Quem é ignorante, então: a mãe solteira desta criança ou todos os que passam por eles e não percebem que ali há um homem como qualquer outro?

E lá vão eles, bradando seus refrões:

“Compra laranja, laranja, laranja, doutor
Ainda dou uma de quebra pro senhor!”

Para mim, estes refrões, cantados pelos vendedores ambulantes, são a trilha sonora real das grandes cidades, principalmente nos centros. Nós os ignoramos, mas eles estão lá, quase como máquinas, a repetir, intermitentemente, seus jingles:
Chocolate é um! Sombrinha é 5! Familhão é 10! Doce é 2! Olhai, DVD com filme que tá no cinema ainda! Bala, olha a bala!

As pessoas seguem quase sempre; alguns param e compram algo, se lhes interessa o que é ofertado nas calçadas. No entanto, insisto: não são homens que estão ali de pé vendendo na rua: são máquinas, nas quais pode-se depositar o dinheiro e pegar o produto.

Nos ônibus, também transitam camelôs, os quais - com seus ganchos cheios de sacos de balas, que se adaptam às barras internas - proferem seus refrões mais que decorados, totalmente automáticos, e oferecem sua mercadoria.
E os ambulantes não pedem esmolas: eles oferecem bens - não pedem dinheiro sem nada em troca. Sobre os pedidos nos ônibus, “O Rappa” transformou em música um refrão da cidade:

“Senhoras e senhores estamos aqui
Pedindo uma ajuda por necessidade
Pois tenho irmão doente em casa
Qualquer trocadinho é bem recebido
Vou agradecendo antes de mais nada
Aqueles que não puderem contribuir
Deixamos também o nosso muito obrigado
Pela boa vontade e atenção dispensada”

Temo que as músicas sobre tais temas sejam ouvidas como mero entretenimento e não como críticas severas a uma realidade absurda. Porque a ignorância é tanta que é capaz de dançarmos “empolgados” ao ouvir estes tristes refrões, os quais, em vez de incitar a reflexão, podem banalizar os jingles das ruas.

Voltando a “menino das laranjas”:

“Lá, no morro, a gente acorda cedo
E é só trabalhar
E a comida é pouca e muita roupa
Que a cidade manda pra lavar

Esta estrofe é crucial: inicialmente, pela divisão entre morro e cidade, mas também pela denúncia que faz ao colocar que a comida é pouca e há muita roupa pra lavar. Esta divisão (cidade/morro), segundo Bauman, em “Amor Líquido”, é um fenômeno mundial: as elites protegem-se em seus condomínios hiper-seguros e vivem suas vidas virtuais - segregação voluntária – e os demais se acumulam nas áreas físicas que lhes restam. Sobre São Paulo, o sociólogo afirma que “uma nova estética da segurança modela todos os tipos de construção e impõe uma nova lógica de vigilância e distância”.

Os versos “A comida é pouca e muita roupa / Que a cidade manda pra lavar” demonstram que há muito trabalho e poucas condições e oportunidade para os moradores do morro - e eles se inserem - se é que se pode se chamar isto de inclusão - na medida em que servem aos moradores da cidade. Esta dicotomia morro/cidade foi banalizada e parece que não enxergamos o absurdo que ela contém.

Os termos falam por si: cidadão, etimologicamente, significa o habitante da cidade (a civitas romana ou polis grega), ressaltando-se que o conceito de cidadania sempre esteve “atrelado à noção de direitos, especialmente os direitos políticos, que permitem ao indivíduo intervir na direção dos negócios públicos do Estado”.
Sobre esta dicotomia, os Racionais MC´s cantam, em primeira pessoa, a segregação e o dilema em que vive o jovem da periferia de São Paulo (que por sinal foi a cidade que Bauman utilizou em “Amor Líquido”, ao falar das barreiras que são erigidos para “proteger” a elite)[1]:

“Se eu fosse aquele cara que se humilha no sinal
Por menos de um real, minha chance era pouca
Mas se eu fosse aquele moleque de toca
Que engatilha e enfia o cano dentro da sua boca
De quebrada, sem roupa você e sua mina,
Um dois nem me viu já sumi na neblina
Mas não! Permaneço vivo, prossigo a mística
Vinte e sete anos contrariando a estatística
Seu comercial de tv não me engana
Eu não preciso de status nem fama”
(Racionais MC´s – Capítulo 4, versículo 3)

Neste contexto, quem é, então, o favelado? Seria aquele que serve à cidade mas a ela não pertence? Seria um cidadão ou seria uma espécie de “estrangeiro”, “refugiado” apesar de nacional?

Afinal, ele é do morro, não habita a cidade (polis) - ele transita por ela, se encaixa como peça onde há algum espaço (ainda que irregular), porém não é beneficiário da pavimentação, da proteção (polícias) etc. e não consegue influenciar nos rumos do Estado (carência de poderes políticos).

Na verdade, pode-se entender que as instituições estatais, em sua maioria, prestam-se a colocar o favelado de volta ao seu espaço e não inseri-lo; um exemplo recente é a construção de muros ao redor de algumas favelas do Rio. Não obstante a segregação dos condomínios, o Estado se propôs a usar dinheiro público para criar barreiras físicas às comunidades discriminadas.

Não seria mais lógico, como sugere Bauman, construir “pontes” em vez de “muros”, a fim de aproximar a favela da cidade e não tornar ainda mais grave a separação que já existe? O investimento em educação de qualidade e a criação de meios para que os habitantes da favela possam residir no asfalto (termo usado para designar a cidade) são algumas das “pontes” que deveriam ser construídas no lugar das barreiras.

Outro exemplo de instituição estatal que serve para reprimir é a guarda municipal, cuja função é apreender as mercadorias dos vendedores ambulantes e persegui-los pelas ruas e calçadas irregularmente ocupadas. Os guardas são servidores da cidade, do asfalto, e devem por isso zelar pela correta utilização do espaço público.

Ora, quem tem dinheiro pode comprar uma loja e colocar seus produtos à venda, ou seja, com recursos adquire-se um espaço privado e com ele há liberdade para fazer o que quiser. No entanto, como ficam aqueles que não tem dinheiro para comprar um “espaço privado”, aqueles que desconhecem o título de propriedade? A estes, que só conhecem a posse (não a segurança da propriedade), resta ocupar o espaço público, que é, em última instância, o único ao qual eles têm acesso - mesmo assim transitório, pois ninguém pode se estabelecer definitivamente no espaço que é de “todos”.

Daí se constata que ele é ambulante justamente porque tem que transitar no espaço, não tem os meios e recursos de se estabelecer: nós exigimos que ele seja nômade e o refutamos por isso! Mandamos que prossiga sempre, tal qual o agente 64 de “Crainquebille” [2], que prende o camelô que se recusa a seguir em frente.

E o movimento dos ambulantes não se restringe às suas vidas nos centros urbanos. Com efeito, a maioria dos moradores das favelas não é daqui; eles vêm do campo, são os retirantes que, instados pela fome, vêm tentar a vida nas cidades. Ou seja, essas pessoas são condenadas a se moverem sempre. Não é só o guarda que os faz seguir. É bem pior: a falta de oportunidades os obriga a migrar e a ausência de recursos os condena a se encaixar onde há espaço, ainda que informal, irregular, ilícito.

Será que os produtos realmente flutuam, sozinhos, pelas ruas ou já começamos a ver as máquinas (ou seriam sombras) que os carregam?

Notas:

[1] BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido. “Sobre a dificuldade de amar o próximo”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 2004. V. p. 130 e seguintes.

[2] FRANCE, Anatole. A Justiça dos Homens. Tradução de João Guilherme Linke. São Paulo: Ed. Difel, 1986.



Um comentário:

  1. Circulando! Circulando! Fiz uma poesia sobre os camelôs. Em breve a colocarei aqui...

    Pedro Oniwlack

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