quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Chuva de imagens

Italo Calvino começa sua conferência sobre a visibilidade citando um verso de Dante no “Purgatório” (XVII, 25): “Chove dentro da alta fantasia”.* Neste trecho de “A divina comédia”, a personagem percorre o círculo dos coléricos, onde “contempla imagens que se formam diretamente em seu espírito, e que representam exemplos clássicos e bíblicos de punição da ira; Dante compreende que essas imagens chovem do céu, ou seja, que Deus as envia.”

E, no começo do Canto XVII - antes da projeção direta de imagens em sua mente -, Dante descreve a cegueira causada por uma “névoa densa”, a qual teve que atravessar:

“Se alguma vez, leitor, em alguma alpina cordilheira foste surpreendido por névoa densa, através da qual não podias enxergar, igualados que ficaram teus olhos aos da toupeira, recorde-te de que ao principiar a descerrar-se a cortina úmida e espessa iam-se infiltrando débeis raios de sol.”

Esta cegueira causada pela névoa espessa - e a ansiedade de atravessá-la - seguida pela projeção de imagens assemelha-se muito ao que sinto quando vou ao cinema: a escuridão que antecede a projeção do filme é como a névoa densa, e a luz que me liberta desta cortina é a que revela as imagens na tela.

As cenas projetadas são como os pensamentos, os sonhos; o cinema tem essa capacidade de apresentar sequências de imagens e de manipular o tempo, tal qual fazemos ao imaginarmos. Quando lembramos de algo, fantasiamos sobre um desejo ou pensamos sobre uma estória, projetam-se cenas em nossa mente. Geralmente controlamos nossos pensamentos e escolhemos por onde seguiremos. Algumas vezes, no entanto, enveredamos por caminhos que não são tão agradáveis de percorrer, mas mesmo assim seguimos, apesar do mal estar que certas cenas (que existiram de fato ou que criamos) nos causam; não é sempre que conseguimos dirigir nossos filmes internos.

Embora seja óbvio, vale a pena ressaltar que as palavras “imaginação” e “imagem” pertencem à mesma família etimológica; ou seja, a língua não ignora que fantasiamos por meio de imagens.

Quando lemos ou assistimos a um filme, aderimos à seqüência de imagens sugerida por outrem. Ao ler um romance, as palavras despertam imagens dentro de nós, a tela onde se projeta a estória é interna. Essa relação entre as imagens e as palavras é muito interessante, pois o escritor, ao descrever um fato, transforma sua representação interna em palavras, e o leitor, ao se deparar com as descrições, transforma aquelas palavras em imagens dentro de si.

O cinema, por sua vez, parte da imagem; portanto, assistir a um filme parece ser o que mais se aproxima da experiência de vislumbrar um sonho alheio. Chovem imagens na tela e as nuvens das quais elas caem são formadas pela imaginação do cineasta, que escolheu como criar as cenas; as câmeras as condensam e o projetor as precipita. A chuva de cenas irriga nossos pensamentos, desperta emoções, traz lembranças, nos leva a refletir sobre a estória, a nos identificar etc.

Ir ao cinema pode ser tão catártico como tomar um banho de chuva no verão. Quem já passou uma tarde de fevereiro brincando ao ar livre, sob o sol escaldante e, no fim da tarde, suado, foi surpreendido por uma torrencial chuva de verão, cujos primeiros pingos parecem evaporar antes mesmo de tocar o chão - você se lembra do cheiro desse vapor? -, sabe do que estou falando.

Para mim, a música que melhor representa o fascínio que o cinema pode causar é “Cinema Olympia” (Caetano), na versão de Elis, ao vivo.

Não há por que me estender em comentários sobre a letra; basta-me salientar a ligação da música com a letra: Elis começa cantando lentamente sobre as tardes sem cinema, normais e em seguida vai acelerando. Na estrofe seguinte canta sobre o que quer a fim de fugir do marasmo, e no refrão chega ao êxtase ao falar do lugar onde encontrará “gargalhada geral do meio dia até o anoitecer”. A interpretação de Elis é tão incrível que torna minhas análises sobre “Cinema Olympia” inúteis. Para sentir o deslumbramento cantado por Elis, só há uma forma: ir ao cinema e se deixar encharcar pelas imagens que chovem na tela.

Nota

* CALVINO, Italo. Seis Propostas para o próximo milênio. Tradução: Ivo Barroso. 3ª edição, São Paulo: Companhia das Letras, 2002. Pág. 97.


4 comentários:

  1. Esse seu texto me deu uma idéia: podemos adicionar ao clube do livro um clube do filme e fazermos excursões mensais à maratona do cine odeon. O que acha? Vou falar com o pessoal.
    Rebeca

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  2. Gostei de 'não conseguimos dirigir nossos filmes internos' e da imagem e do cheiro de chuva evaporando. Muito bom!
    Bjs,
    Mônica

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  3. Quando pensei na chuva verão, lembrei imediatamente desse cheiro: é marcante demais.

    Não poderia deixar de citar os filmes internos, que às vezes surgem, mesmo contra a vontade; o ciúme é um dos grandes estímulos a essas projeções...

    Beijos

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