quarta-feira, 26 de outubro de 2016

A banda (conto)



I. Arte

“Na bateria (solo de bateria): Baixinho!

No baixo (solo de baixo): Dedão!

Backing vocals (dois solos vocais seguidos): as Carpideiras – Lúcia e Julie!

Na guitarra solo (solo de guitarra): Ligeirinho!

Na guitarra base e no vocal: Leo Bajá! Somos a Banda Subsolo!” - apresenta-se o vocalista, curvando-se diante da plateia.

Platéia minguada; palmas e gritos esparsos. As mais aplaudidas sem dúvida foram as backing vocals, muito mais pela forma (e por serem as únicas mulheres por ali) do que pelas vozes, embora as meninas cantassem bem.

A apresentação chegava ao fim no bar do Zé Podrão, mecenas pós-moderno da baixada fluminense. O apelido não era por causa dos dentes amarelos que ostentava, nem por causa do cheiro rançoso que exalava; era “podrão” por causa da mania comer cachorro-quente de barraquinha improvisada, com tudo que tinha direito.

Amante de rock progressivo, punk rock, heavy metal, grunge etc. (ele achava uma babaquice essa mania de classificar o rock assim; dizia sempre, “eu ouço música, essas classificações imbecis só servem pras gravadoras e babacas de plantão”), Zé era dono de três bares: um em Niterói, um em Duque de Caxias e outro em São João de Meriti.

Como fazia questão de afirmar, quando lhe perguntavam o que fazia da vida: “sou dono de caixinhas de música pra iniciados, porra!”; ou então: “procure rock de verdade e descobrirá no que trabalho!”; ou ainda: “sou um mecenas pós-moderno!” (isso ele só dizia pros metidos a intelectuais). E se o objetivo era pegar um empréstimo: “sou empresário, ramo de gastronomia e artes”.

Assim que a banda Subsolo desceu do palco (degrau de cimento cru), Zé se aproximou deles:

- Mandaram ver! Porra, que solo foi aquele, Ligeirinho-ligeiro-ligeiresco-ligeirudo-lígio! Arrebentaram!
- Valeu, Podrão! Eu tava inspirado hoje, e tu parece que tá um tanto aspirado; estica uma pra mim, pobre-podre-puto-Podrão? – respondeu Ligeirinho.
- Tô aspirado porra nenhuma! É álcool puro mesmo! Eu lá tô com grana pra dar teco! Não sou homem de dar um tequinho só. Só compro pó quando tenho grana pra cheirar 2 dias e duas noites, pelo menos! Sem contar o das putas...
- Por falar em grana - já foi cobrando o Leo – quanto a gente tira hoje, Zé?
- Hoje o movimento foi uma merda! Preju total! Paguei pra casa abrir hoje, porra! Quase ninguém veio: olhaí essa merda, tudo vazio. Um ou outro bebendo uma cerveja. Só a bebida que vocês da banda consumiram já me fodeu...
- Porra, Zé! De novo! - disse Ligeirinho - Tu cheira a grana do fim de semana e dá nessa merda. A gente sempre toca de graça, por cachaça; e você é tão filho-da-puta que nem o pó tu põe na roda. Tu é foda!
- Palavra de honra! Se eu tivesse uma carreirinhazinha que fosse, colocava! E tô puro de grana. Prometo que quando entrar pago o show de hoje! Hoje é quarta; é essa merda mermo. Se vocês tocarem sábado eu compenso!
- Porra, Zé, nem cinquentinha?
- Tô liso, tô duro. E não bota banca, não, caralho, porque vocês vivem bebendo de graça nessa merda; e o principal: vocês tocam aqui o que querem: músicas da banda, não são obrigados a ficar agradando público, fazendo cover...
- Tá bom, Zé - acalmou Ligeirinho -, a gente acerta no sábado. Mas quero dinheiro. Não adianta querer pagar com pó malhado, não!
- Tô devagar, quase parando. Pó é foda...
- Tá bom! Com esse nareba nervosa?! É mais fácil minha vó começar a trincar que você parar com a branquinha, gordo safado!
- Hahahaha! – gargalhou Zé e deu uma porrada com a mão aberta na mesa cheia de garrafas de cerveja vazias.

A banda bebeu mais um pouco; depois, arrumaram a tralha e seguiram para casa, divididos num caravan e num fusca velhos (de oitenta e poucos), ambos caindo aos pedaços.

Antes de fechar o bar, Podrão, agora sozinho, esticou, meticulosamente, num espelhinho, que tirou de dentro da gaveta da grana, uma carreira do tamanho dum dedo mindinho de mulher alta e magra. Estalou a língua, tlac - sempre dava uma estalada antes de cheirar -, e com uma nota de cem reais enrolada em forma de canudo (nunca cheirava com nota menor, segundo ele dava azar) meteu a naba, sugou num estalo o pó batido; levantou a cabeça como se fosse um chicote, fungando tudo pra dentro, os olhos arregalados. Não demorou um minuto, apagou as luzes e se meteu debaixo do balcão, convicto de que a polícia ia entrar no bar a qualquer momento.

Ficou atrás do balcão, com as baratas lhe percorrendo as mãos espalmadas no chão (estava de quatro) até se acalmar, o que só aconteceu quando deu umas boas tragadas na cachaça que guardava ali. E, a cada vez que se acalmava, levantava, fumava um cigarro e dava um novo teco, que o fazia apagar a luz, ir pro chão, cheio de neura e repetir todo o processo.

Zé só conseguiu sair do bar às cinco e pouco da manhã, quando os passarinhos já vaticinavam o dia, depois de matar a garrafa de cachaça e fumar um baseado.

II – Trabalho

“Veneno! Veneno!
A gente vive pra quê?
Pra depois morrer!
‘Cadáveres adiados’,
Que eternos julgam ser.

Mil deuses e teorias criam,
Pra fugir dos vermes,
Pra fugir do subsolo,
Pra fugir do fim.
Pra fugir, pra fugir, pra fugir.
Imbecis, os vermes são tão
Vivos quanto nós:
Deixam nossos ossos
Brancos como lençóis.

Veneno, veneno...”

- Valeu, valeu! Por hoje tá legal; até que o ensaio rendeu hoje – disse Leo.
- Porra, a gente tem que se livrar das Carpideiras; nosso som flui muito melhor sem elas! – falou Ligeirinho.
- Não, eu discordo – respondeu Leo. – Nosso som tá diferente justamente por causa delas.
- Qual é, Leo! Você insiste porque tá comendo a Lúcia – rebateu Ligeirinho.
- Não, não é nada disso! Eu nunca deixaria alguém atrapalhar nosso som por esse motivo; você sabe muito bem disso – se defendeu Leo.
- Tá certo, tá certo; mas eu acho que as meninas atrapalham mais que ajudam. Mas pelo visto tô sozinho nessa...

Ensaiavam na casa do Baixinho, pois a bateria era o centro de gravidade da banda, para onde todos eram atraídos na hora de ensaiar. Nada mais natural: a bateria, o instrumento mais pesado, mais chato de carregar e de montar ficava no seu lugar sempre, o resto da banda que fosse até lá; e assim faziam, pelo menos, duas vezes por semana.

Terminaram de arrumar o equipamento e marcaram um encontro no dia seguinte às 11 horas na praça XV.

Dia seguinte, praça XV, onze e meia da manhã; Leo e Ligeirinho de pé, debaixo do elevado da Perimetral, conversando.

“Impressionante! Essas piranhas nunca chegam na hora!”, disse Ligeirinho. “Dedão já ta lá na Rio Branco há meia hora...”
“Tão chegando, tão chegando; olha ali”, apontou Leo para as meninas - Lúcia e Julie -, que emergiam do subsolo (mergulhão).

As meninas passaram perto deles, sem cumprimentá-los. Os dois continuaram conversando por mais uns cinco minutos e depois desceram em direção à avenida Rio Branco, pela rua da Assembléia. As meninas haviam tomado o mesmo sentido, mas, contornando o Paço, seguiram pela rua Sete de Setembro (paralela à rua da Assembléia).
Ao chegar na esquina da rua da Assembléia com avenida Rio Branco, Leo se separou de Ligeirinho, sem se despedir, e seguiu na mesma calçada (sentido Av. Presidente Vargas) até entrar num banco. Ligeirinho atravessou a avenida e caminhou no sentido inverso (foi à Carioca comprar cordas pra guitarra e depois iria esperar perto do carro, estacionado lá na Lapa, pra não pagar flanelinha).

Dez minutos depois, Leo saiu de um banco e parado entre uma árvore e uma banca de jornal fez uma ligação de seu celular. “Fala. Olha, acabei comprando uma calça preta - ele é jovem -, e uma camisa azul - ele é moreno. Sozinho, é claro. Esquina com Sete de setembro. Médio, um e setenta. Estarei atrás, três metros. Beijo”.

As meninas, que estavam numa livraria perto dali, foram em direção à Rio Branco. Pararam num camelô, afetando interesse nas bolsas que expostas no chão. Não demorou cinco minutos para que vissem o homem descrito e Leo, atrás.

Quando o homem de calça preta e camisa azul se aproximou, Julie, olhando-o, abriu um sorriso e comentou qualquer coisa com Lúcia, que deu um risinho, levantando os ombros e olhando de rabo de olho para o rapaz.

O homem viu tudo: olhar, comentário e sorriso. Assim que passou por elas, virou a cabeça para vê-las mais uma vez, mas para sua surpresa um homem estranho mexia grosseiramente com as meninas, que estavam com cara de medo, pânico e que, fugindo das grosserias, se aproximavam dele. Ele percebeu tudo e, reduzindo a velocidade, lhes concedeu proteção. O homem estranho se afastou em seguida.

Julie agradeceu e puxou conversa. “Cada maluco que aparece! Se não fosse você...”. Pouco tempo depois eles estavam sentados numa lanchonete, conversando. O papo não durou muito; as meninas disseram que tinham uma entrevista de emprego meio-dia e meia. Ele pagou a conta e deixou o número do seu celular com elas; Julie lhe deu o dela.

III. Dinheiro

Meia hora depois a banda quase completa - só faltava o Baixinho - ia à casa de Leo, apertados no caravan.

- Hoje foi moleza. Resolvemos tudo no primeiro. Mi menor, si menor, mi menor; lá menor, ré, sol. Já ouvi essa seqüência em algum lugar. 1, 4, 1, 2, 8, 3: deve ser data de aniversário: 14/12/83. Tenho quase certeza que é MPB. Mi menor, si menor, mi menor; lá menor, ré, sol. Os idiotas colocam som nas teclas dos caixas eletrônicos: cada senha é uma música, e cada música é dinheiro; money, get away... – disse Leo, cantarolando no fim.
- Mi menor, si menor, mi menor; lá menor, ré, sol? Em casa a gente toca e confere; se não for de ninguém, a gente pode tentar compor qualquer coisa... O que importa é que arrumamos mais uma fonte de grana. – falou Ligeirinho.
- O susto quase sempre dá certo. Hoje foi perfeito: cheguei perto das meninas quando o otário virava o rosto para azarar. Tiro e queda. Nada como um inimigo comum para aproximar pessoas... – vangloriou-se Dedão.
- E ele pagou com o cartão - completou Julie. - Baixinho já dever estar com o molde pronto; agora, é só esperar ficar pronto e partir pros saques. Com esse, já são quantos?
- Estamos com 26. - respondeu Leo. - Chegamos a 29, mas três já trocaram de senha ou cartão. O negócio é sacar um pouquinho de cada vez, pra não dar mole...
- O Baixinho é perfeito pro negócio – disse empolgado Ligeirinho. - O filho-da-mãe, além de pegar o molde dos cartões (pois trabalha naquela lanchonete), ainda é o sacador oficial da banda, porque é tão baixinho que a câmera do caixa não filma o seu rosto.
- Cada um faz o que pode: o show não pode parar – disse Leo. - Minhas habilidades musicais tão rendendo bem. Furto sem uma gota de sangue, quase sem risco. E o melhor: tempo pra música, tempo pra arte. Porque ser músico profissional, ter que tocar pra comer, é uma merda: você acaba tocando em festas - de casamento, de quinze anos, de aniversário (tudo uma merda: um bando de idiotas pedindo musicas de rádio) -, em restaurantes e churrascarias (deprê total!), ou vai pra publicidade, marketing, fazer aquelas merdas de jingles, pra ganhar merreca.
- Que saudade dos mecenas! – ponderou Lúcia.

- É isso aí. Todo mundo fica falando na extinção dos bichos – arrematou Ligeirinho. - Fodam-se os bichos! Eles não servem pra porra nenhuma! Da pior extinção, a extinção dos mecenas, ninguém fala nada...

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