sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Ocupação das escolas públicas: aspectos jurídicos (texto resumido)


O presente artigo trata da ocupação das escolas públicas pelos alunos, analisando seus aspectos jurídicos bem como as consequências perante o Estado, tendo em vista a relevância e repercussão das aludidas manifestações a partir do ano de 2015 até junho de 2016.
        Com efeito, é de suma importância compreender o enquadramento atribuído ao movimento do corpo discente da rede pública de ensino no Rio de Janeiro e em São Paulo, verificando-se as diferentes interpretações e seus efeitos no tocante à interação com o Poder Público. Embora os protestos tenham se espalhado pelo país, o presente trabalho aborda apenas as mobilizações realizadas nos Estados fluminense e paulista.
       Na hipótese, destacam-se duas interpretações jurídicas antagônicas acerca das ocupações, quais sejam: (i) são atos ilegais e devem, portanto, ser reprimidos, classificando-os como invasão de bens públicos; (ii) trata-se de exercício de direitos previstos na Constituição da República de 1988, razão pela qual as ocupações devem ser respeitadas.
         Pretende-se no presente trabalho expor e analisar a origem e as causas da aludida ocupação das escolas públicas, investigando seus aspectos jurídicos, as diversas perspectivas e interpretações, assim como suas consequências perante o Estado.

NOTAS SOBRE A ORIGEM DA OCUPAÇÃO DAS ESCOLAS PÚBLICAS
De acordo com as informações obtidas nos principais veículos de comunicação, verifica-se que, a partir do segundo semestre de 2015, estudantes secundaristas da rede pública de ensino deram início à ocupação das escolas.
Em São Paulo, onde começou o aludido movimento, os alunos, a princípio, manifestaram-se contra o que se chamou de “reorganização escolar”, plano que o Poder Executivo do estado paulista pretendia implementar, com mudanças radicais no ensino público, remanejando alunos e funcionários, de modo a reduzir o número de colégios, concentrando em determinados locais as unidades de educação, com o consequente fechamento de diversas escolas. O projeto do Governador Geraldo Alckmin (PSDB/SP) objetivava transferir trezentos mil alunos e fechar noventa e dois colégios. Tais medidas, evidentemente, dificultariam o acesso de milhares de estudantes à rede de ensino público e gratuito do Estado.
O movimento dos alunos de São Paulo se inspirou na experiência dos secundaristas chilenos, os quais ocuparam centenas de escolas no ano de 2006, a fim de reivindicar passe livre e melhoria da educação pública. A manifestação no Chile, que ficou conhecida como “revolução dos pinguins” (referência ao uniforme escolar no país), levou à criação do manual “como ocupar um colégio?”, que orientou a manifestação dos estudantes brasileiros.
Inicialmente, os alunos paulistas, acompanhados de seus pais e professores, protestaram contra o plano do governo estadual por meio de passeatas. No entanto, como as manifestações não estavam atingindo o resultado esperado, já que o governo continuou distante do diálogo, os secundaristas decidiram ocupar escolas, seguindo as instruções da cartilha chilena.
Percebe-se que a ocupação das escolas é uma estratégia de mobilização que surge como alternativa às passeatas e manifestações em ruas e praças. Tendo em vista que os meios de protestos mais tradicionais se mostraram ineficazes e até perigosos - diante da truculência da polícia -, os alunos decidiram ocupar as unidades de ensino, de modo pacífico.
Diante das medidas anunciadas pelo governo estadual de São Paulo bem como da desordem do ensino público no Rio de Janeiro, a mobilização dos estudantes surgiu como resposta, em uma clara tentativa de resguardar direitos que vêm sendo diluídos por políticas de cortes e crescentes privatização e precarização de serviços essenciais e prestações positivas do Estado, as quais se relacionam à promoção da igualdade material (direitos fundamentais de segunda dimensão).

    FATOS E INTERPRETAÇÃO: PROBLEMÁTICA
Não há dúvida de que a aplicação do direito está vinculada à interpretação, construindo-se uma relação entre os fatos e as normas que incidirão na hipótese. De acordo com Ferraz Junior (2006, p. 14-35), o ato interpretativo é problemático, tendo em vista que há múltiplas vias que podem ser escolhidas, existindo para o intérprete um espaço de liberdade, que é um pressuposto da hermenêutica jurídica.
Com base na análise das decisões judiciais e dos atos da Administração Pública, pretende-se verificar qual o enquadramento jurídico acerca da ocupação das escolas pública foi predominante, constatando-se, já de início, um conflito aparente entre a aplicação da norma do Código Civil - que levaria à retomada da posse pelo Estado sem intervenção do Poder Judiciário - e a prevalência do exercício dos direitos de reunião e de manifestação, assegurados no artigo 5º, incisos XVI e IV, da Constituição da República.
E desse processo hermenêutico - ato problemático - surgirá o enquadramento do protesto e seus efeitos.

INTERPRETAÇÃO DE NATUREZA PRIVATISTA, COM NUANCES DE DIREITO ADMINISTRATIVO
Ao que tudo indica, a primeira exegese de caráter jurídico foi a realizada na decisão em relação a ação de reintegração de posse proferida pelo Juízo da 14ª Vara da Fazenda Pública da Comarca da Capital/TJSP, nos autos n. 101946387.2016.8.26.0053. Em síntese, tal decisão impôs condições para o cumprimento da liminar para “cessação de esbulho” supostamente ocorrida na sede do CEETPS, como o uso de força policial desarmada e pessoalmente comandada pelo Secretario de Segurança Pública.
Certo é que esta decisão foi atacada por via de mandado de segurança, que teve sua liminar deferida. A decisão original, de 04/05/2016, fazia menção, em sua fundamentação, no sentido de que o Estado pode se valer do “desforço imediato na defesa da posse, diante da ocupação ilícita”.
Em seguida, Procuradoria-Geral de São Paulo (PGE/SP) elaborou o Parecer nº 193/20161, atendendo a consulta da Secretaria Estadual de Segurança Pública, indicando como solução prioritária a utilização do desforço necessário, mecanismo de autotutela previsto no artigo 1.210, parágrafo primeiro, do Código Civil (doravante, CC/02), tendo em conta também a autoexecutoriedade nos atos administrativos em geral e notadamente das medidas de policia administrativa, vinculando o procedimento ao Secretário de Segurança Pública.
Na interpretação dos fatos, entendeu o órgão do Estado responsável por sua atuação jurídica, em consonância com o governo do Sr. Geraldo Alckmin, por desconsiderar totalmente o caráter de manifestação dos alunos e consequentemente negar a via exegética que levaria à incidência de direitos fundamentais, previsto na Constituição da República Federativa do Brasil – CRFB/88.
O aludido Parecer nº 193/2016 tratava a mobilização estudantil como uma mera invasão de propriedade privada e ainda sugeriu o emprego de força policial proporcional ao agravo. Sendo ato do governo estadual, a polícia a atuar na repressão seria a Polícia Militar de São Paulo, órgão ligado à Secretaria de Segurança Pública do Estado, conhecido por sua violência.
Outro efeito da interpretação da PGE/PS, não menos importante que o primeiro, era a de que a retomada da posse não deveria ser submetida à chancela do Poder Judiciário, seria, portanto, uma ato imediato, a ser autoexecutado. Logo, bastaria ao Poder Público agir: convocar a polícia militar e ingressar nas escolas, como se fossem simples prédios, expulsando os invasores, usurpadores ilegítimos da posse; não haveria sequer necessidade de ajuizar ação de reintegração de posse com pedido liminar.
O tema gerou ampla divergência e, ao mesmo tempo em que o Governo de São Paulo agia para reprimir com a polícia as ocupações, novas vozes se destacaram no cenário interpretativo.

INTERPRETAÇÃO NO SENTIDO DA NECESSIDADE DE JUDICIALIZAR A QUESTÃO
Uma segunda interpretação sustentou que se fazia indispensável a propositura de ação de reintegração de posse para que se colocasse fim às ocupações escolares. Tal exegese restringiu-se à formalidade, não se manifestando sobre a natureza da norma a ser aplicada no caso concreto; verifica-se, portanto, que se tratava de questão procedimental, no sentido de que o Estado de São Paulo deveria pleitear a retomada da posse perante o Poder Judiciário, e aí caberia ao juízo analisar o caráter da mobilização, interpretando-o, e aplicar a norma material de modo a apaziguar o conflito.

INTERPRETAÇÃO DE NATUREZA CONSTITUCIONAL
De acordo com a aplicação nas normas constitucionais, a ocupação das escolas deveria ser respeitada, sendo imprescindível a atuação do Poder Judiciário, de modo a assegurar a prevalência do exercício dos direitos de reunião e de manifestação, previsto no artigo 5º, incisos XVI e IV, da Constituição da República.
Consoante essa interpretação, a ocupação é protesto legítimo dos estudante e deve ser analisada levando-se em conta as normas constitucionais e não o Código Civil. A Constituição é a Norma Fundamental do Estado e ocupa o ápice da pirâmide de Kelsen, ou seja, há hierarquia entre os atos normativos, figurando a norma constitucional sobre todas as outras, como afirma PADILHA (2011, p. 3). Assim, é relevante observar como as normas foram aplicadas no que se refere ao movimento estudantil, já que se está diante de direitos e garantias fundamentais. Acerca da extensão da interpretação que se atribui a direitos dessa índole, SARLET (2012, p. 455) aduz que:
o âmbito de proteção da liberdade de expressão deve ser interpretado como o mais extenso possível, englobando tanto a manifestação de opiniões, quanto de ideias, pontos de vista, convicções, críticas, juízos de valor sobre qualquer matéria ou assunto e mesmo proposições a respeito de fatos.
Assim, é indispensável que se verifique se o que está em jogo é uma simples invasão de propriedade ou se é uma ocupação decorrente do exercício dos direitos constitucionais de liberdade de expressão e de reunião. No caso da ocupação das escolas públicas não há dúvida de que o movimento se insere na segunda hipótese, dada a sua organização, suas legítimas reivindicações, bem como o modo pacífico pelo qual se fez.
Ou seja, trata-se de um Estado Democrático de Direito, embora muitas vezes alguns juristas e intérpretes das normas deixem de lado o termo “democrático”, dando ênfase ao Direito sob uma perspectiva legalista (positivista) e infraconstitucional.
É evidente o anseio democrático dos estudantes que ocuparam as escolas, uma vez que, entre suas propostas, está a maior participação na administração, inclusive com eleições diretas para a direção das instituições.
A mobilização, tal como a do Chile (Revolução dos Pinguins), lutava contra medidas neoliberalistas que afetavam a rede de ensino público. Os alunos protestavam contra um processo global, em que as instruções neoliberais acatadas por governos enfraquecidos perante a financeirização, o capital especulativo, bem como as transnacionais, o poder econômico, em suma, em sua versão não produtiva.
Trata-se de uma tentativa de resgate da cidadania e de reduzir as desigualdades, cada vez maiores. No Brasil, a maioria pobre não conseguia ter acesso a escolas com qualidade. Acerca do tema, BAUMAN (2000, pág. 84) destaca que a “passagem para o estágio final da modernidade ou para a condição pós-moderna não produziu maior liberdade individual (...). Apenas transformou o indivíduo de cidadão político em consumidor de mercado”.
Do mesmo modo, a legitimidade e a forma do movimento, além de serem resguardas pelos direitos constitucionais, são justificadas, já que o direito à cidade decorre do movimento político, como afirma HARVEY (2013, p. 34) no sentido de que “…repousa sobre a capacidade de forçar a abertura de modo que o caldeirão da vida urbana possa se tornar o lugar catalítico de onde novas concepções e configurações da vida urbana podem ser pensadas e (…) ser construídas.”
A interpretação do Parecer nº 193/2016 (PGE/SP) sustenta uma interpretação infraconstitucional positivista, na medida em que defende a aplicação do Código Civil. Tal exegese se choca com o chamado pós-positivismo, que consagra verdadeiro avanço, tendo em vista que o positivismo permitiu as atrocidades cometidas pelos regimes nazista e fascista, cujos atos se deram de acordo com as leis então vigentes. As constituições do pós-guerra, com a tutela dos direitos humanos e de minorias impede que maiorias criem leis de extermínios de grupos de menor representatividade.
Neste contexto, o surgimento dos regimes constitucionalistas decorre e agrava a decadência do positivismo. Os movimentos da direita, de caráter militar, “ascenderam ao poder dentro de um quadro de legalidade vigente e promoveram a barbárie em nome da lei,” como afirma BARROSO (2006, p. 325).
Com efeito, o direito à cidade, interligado ao direito à liberdade de expressão e de reunião, não é apenas algo formal, distante da realidade, mas um direito de fruição, que envolve o uso da infraestrutura da municipalidade, dos equipamentos e dos serviços públicos, abarcando, evidentemente, outros direitos previstos na Constituição, como saúde, lazer, assistência social, educação, dentre outros. E há de se observar a efetividade das normas constitucionais, na concepção de BARROSO (2006, p.105/222).
No caso da ocupação das escolas sobressai o direito à educação e não apenas como um currículo básico a ser cumprido. Trata-se de um direito que exige uma prestação do Estado e por se dar em locais específicos, há de se ter em vista a função social da propriedade, tanto privada quanto pública, como se verifica na hipótese do ensino público.
Dúvida não há sobre a natureza constitucional do conflito, razão pela qual cabe ao Estado cumprir o disposto na Lei Maior. No caso da ocupação, respeitar a movimento estudantil em sua forma pacífica de democrática de se manifestar, abrindo-se ao diálogo.


DECISÕES JUDICIAS E POSTURAS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Submetida a ocupação das escolas ao Poder Judiciário nos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro, verifica-se que houve decisões em sentidos divergentes, sendo que parte dos órgãos julgadores de primeira e segunda Instâncias entendeu pelo caráter de protesto legítimo e parte decidiu no sentido de determinar a reintegração do Estado.
O Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu no dia 23 de novembro, por unanimidade, que não deveria haver nenhum tipo de reintegração de posse. O entendimento do TJ-SP é que o objetivo das ocupações não é tomar posse do prédio público, mas promover um diálogo com o Estado.
Todavia, mencionada decisão não tem poder vinculante em outras ações e só é válida para as escolas citadas no processo (todas da capital). Em seis cidades do interior, os juízes locais já decidiram no sentido contrário e ordenaram a reintegração, inclusive com autorização do uso de força policial contra os estudantes. Em seguida, a Defensoria Pública (que tem atuado na defesa dos interesses dos estudantes contrários ao fechamento) entrou com recursos em varas locais anexando a decisão do TJ como argumento.
A estratégia surtiu efeito: em seis cidades onde ocorrem ocupações das escolas, os juízes de primeira instância suspenderam as reintegrações após ter sido juntado no processo a decisão do Tribunal de Justiça por via recursal.
É importante ressaltar o entendimento que prevaleceu no Poder Judiciário Fluminense, noticiado no sítio eletrônico do TJRJ:
Vara da Infância inicia negociação entre Estado e estudantes. Notícia publicada pela Assessoria de Imprensa em 10/05/2016 21:51. Representantes da Secretaria estadual de Educação (Seeduc), da Defensoria Pública do Rio de Janeiro e lideranças do movimento estudantil “Ocupa” participaram de uma audiência de conciliação realizada pela juíza Glória Heloiza Lima da Silva, titular da 2ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da Capital, nesta terça-feira, dia 10. O objetivo foi abrir caminho para uma negociação entre o governo do Estado e os estudantes insatisfeitos com a gestão do ensino que ocupam escolas da rede pública estadual desde o início deste ano como forma de protesto. (…) A juíza determinou que a Secretaria de Educação realize, no prazo de sete dias, o crédito retroativo dos valores referentes às passagens dos alunos até 1° de maio, já que no dia seguinte a pasta publicou uma resolução que antecipava as férias escolares na rede estadual por conta das escolas ocupadas. (…) Na decisão, a magistrada: determinou a adequação da merenda escolar ao cardápio informado no site da Secretaria estadual de Educação no prazo de sete dias. (...) Sobre a falta de material didático, a Justiça determinou que a Secretaria disponibilize os livros que não estão sendo usados até o dia 2 de junho, quando retornam as aulas. Em caso de descumprimento da decisão judicial, a multa diária é de R$ 5 mil. (…) a magistrada também proibiu a Secretaria de Educação de fazer postagens em suas redes sociais fomentando o antagonismo entre estudantes ao estimular o movimento “Desocupa”, composto por alunos contrários à ocupação dos colégios como forma de protesto. Em caso de descumprimento da decisão judicial, a multa será de R$ 10 mil por postagem. (…) Juíza proíbe que integrantes das ocupações sejam punidos. A juíza determinou ainda que todas as escolas da rede estadual coloquem em prática a resolução que institui os Grêmios Estudantis, possibilitando a participação dos alunos nas decisões junto à direção dos colégios. Em sua decisão, a magistrada ressaltou que não poderá haver punição ou perseguição aos alunos que aderiram ao movimento estudantil “Ocupa” e que o currículo escolar terá de ser readaptado, com reposição das aulas dos dias letivos prejudicados. Por sua vez, os integrantes da ocupação estão obrigados a liberar o acesso de demais estudantes e funcionários aos espaços das escolas para expedição de documentos. (…) Processo: 0105730-36.2016.8.19.0001”.

No tocante aos órgãos do Poder Executivo no Rio de Janeiro e em São Paulo, constata-se que em um primeiro momento houve esforço de retomar a posse, de forma violenta, como é comum agirem em relação a protestos. Aliás, a própria ideia original de ocupar colégios decorre da necessidade de evitar as passeatas nas ruas, reprimidas violentamente pela polícia.
A Secretaria de Educação do Rio de Janeiro inicialmente entendeu que o movimento era ilícito e ilegítimo e deveria, portanto, ser desfeito de imediato, com auxílio da polícia. Posteriormente, a mesma Secretaria mudou sua interpretação dos fatos e reconheceu a legitimidade da mobilização, abrindo-se ao diálogo. Essa postura decorreu evidentemente da atuação da Defensoria Pública e do Ministério Público.

CONCLUSÃO

À luz do que precede, cabe ressaltar que, sob a égide de um Estado Democrático de Direito, no qual a Constituição é a manifestação formal da vontade do povo e vincula a todos, inclusive e principalmente o Estado, deve o Poder Público atuar de acordo com o que lhe impõe a Carta Magna.
Como já mencionado, trata-se de profunda crise política: a cidadania vem sendo fragmentada e reduzida, para limitar-se aos papéis individualistas de consumidores e condôminos. Quando estudantes do ensino médio das escolas públicas de dois dos mais populosos estados do Brasil passam a se organizar e exercer seus direitos de liberdade de expressão e reunião, ocupando as suas escolas a fim de reivindicar a manutenção e melhora de serviço essencial, vê-se a ruptura do papel de mero consumidor-individualista para agir coletivamente e na esfera política.
Os direitos fundamentais apresentam ampla aplicação, inclusive no tocante às relações privadas, adotando a eficácia horizontal de referidos direitos e garantias constitucionais. Também vale ressaltar o crescimento da corrente do Direito Civil Constitucional, que enriquece a leitura da Lei, compatibilizando-a com o sistema jurídico e a preponderância das Normas Fundamentais. Desse modo, evidencia-se o dever do Estado de reconhecer e respeitar o legítimo exercício dos direitos consagrados na CRFB/88.
Verificou-se a divergência do Poder Público e órgãos do Poder Judiciário ao depararem com a ocupação das escolas pelos alunos. Decisão de juiz de primeiro grau bem como o governo paulista entenderam, em um primeiro momento, que seria legítimo o exercício do desforço necessário, com base na Lei Civil e na autoexecutoriedade relativa à Administração Pública.
Contudo, não foram estas as decisões finais. Além das mobilizações, com adesão da sociedade, houve a atuação da Defensoria Pública e do Ministério Público, pleiteando em tutela coletiva, bem como o confronto entre as posições adotadas em Primeira e Segunda Instâncias do Judiciário de São Paulo.
No Rio de Janeiro, houve a realização de um acordo entre o governo e os manifestantes. No Estado paulista o governador desistiu da proposta inicial de fechar escolas e demitir professores. Houve diálogo, tutela dos direitos, participação cidadã, visando à melhoria de um serviço público essencial.
Como deve ser, as normas constitucionais prevaleceram sobre a legislação infraconstitucional, no caso, o Código Civil, que deve ser aplicado apenas nas hipóteses de conflito entre particulares e não quando se tratar de situação que envolva o Estado e adolescentes, estudantes, usuários diretos do serviço de educação pública, que vem sendo reduzido desde a ditadura militar iniciada em 1964. O ensino público perdeu qualidade e houve uma aprofundamento da cisão entre os mais pobres e a classe média no que se refere ao uso do serviço, do compartilhamento deste ambiente de construção social.
Certo é que o Estado moderno, na forma em que se manifesta, surge como criação vinculada ao capitalismo e não é, nem nunca foi, algo pronto, perfeito, acabado, dada a sua própria natureza; sendo assim, há que se reconhecer a legitimidade das mobilizações com intuito de moldá-lo.
Em tempos de grande retrocesso, de golpes parlamentares, sanções sem infrações, repressão, criminalização de movimentos sociais, fundamentalismo religioso, é mais do que relevante estudar, analisar, promover diálogo, sobretudo quando se está diante de protestos legítimos, de filhas e filhos dos cidadãos mais pobres do país.
Os estudantes exerceram seus direitos e o diálogo foi possível, a Administração Pública cedeu, trocou informações e houve a aproximação de uma solução pacífica e aparentemente satisfatória. Para os alunos, o governo e a sociedade como um todo, na medida em que a formação de cidadãos exige maior participação e capacidade crítica, como mostraram os estudantes mobilizados no Rio de Janeiro e São Paulo.

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