quarta-feira, 27 de setembro de 2017

O sequestro (conto)

       Será que as palavras são como um cativeiro para o escritor? Será que aqueles que têm necessidade de escrever são reféns das palavras? As palavras são necessidade, vício, prisão ou liberdade? Realmente não sei, mas me parece que no caso o escritor é prisioneiro das palavras, já que apenas elas poderão libertá-lo.

Preso nessa sala abafada, ouço o barulho dos dedos nas teclas: ele está trabalhando, fazendo o que tem que fazer. Ele demorou dias pra começar a trabalhar. Parece que ele teve dificuldade de entender que só vai sair daqui quando a família pagar o resgate e ele entregar ao menos um conto policial.

Nós o pegamos quando ele estava num banco de uma praça próxima a casa dele, fumando um cigarro. Foi fácil. Paramos um carro roubado, com os vidros escuros, baixamos a janela do motorista e pedimos informações. Ele se aproximou e o pegamos, apontando uma arma. Ele não sabe, mas essa arma é de brinquedo. Ele, que escreve romances e contos policiais, que menciona nomes e detalhes de pistolas e revólveres, que é famoso por seus livros de detetives e criminosos, foi ironicamente rendido por uma arma de brinquedo.

A quadrilha tem sete membros, cinco homens e duas mulheres. A casa onde o colocamos fica na periferia, numa espécie de sítio. Nenhum de nós têm armas de verdade. Na realidade, somos um grupo de fãs dele que teve a ideia de sequestrá-lo para obrigá-lo a escrever alguma coisa boa, porque há anos ele não escreve nada que preste; para se ter uma ideia, a última coisa que ele publicou foi um livro infantil, isso depois de um de poesia há mais de três anos.

Ele se perdeu ou se vendeu, não sabemos bem, e queremos descobrir. Prosa infantil e poesia? É esse o trabalho dele agora? Onde está a prosa policial, a tensão, os crimes, a investigação, o submundo? Tudo indica que, ao vender os direitos de sua obra policial para produtoras de filmes, ele perdeu a inspiração para escrever novos livros desse gênero.

Mas já explicamos o que queremos dele e é bom ele se apressar porque não temos todo o tempo do mundo. Além disso, sequestrar e manter uma pessoa em cativeiro é algo complicado, exige muito de nós. Alugamos esse sítio usando disfarce e nome falso. Pra falar a verdade essa parte foi fácil. Escolhemos o lugar através de um site e pagamos a vista, por depósito bancário. O mais tenso foi pegá-lo e trazê-lo pra cá, pois alguém poderia ver nossa ação criminosa. Ou poderíamos ser parados numa blitz. Por sorte deu tudo certo e agora vivemos a tensão de mantê-lo escondido aqui.

Nós nos revezamos para ficar de vigia e o alimentamos quatro vezes ao dia. Ele come pouco, mas bebe e fuma bastante. Não tem ânimo para conversar conosco, mas nós forçamos a barra, fazendo mil perguntas e ameaçando se ele se recusa a responder. Estamos gravando as conversas, que também serão vendidas ao final, junto com o conto. Uma entrevista exclusiva e profunda, sob a mira de uma arma. De brinquedo, é verdade, mas ele não sabe.

Ontem de manhã ficamos tensos: havia uma viatura da polícia civil relativamente perto, em frente à padaria onde compramos comida com alguma frequência. (Estamos comprando mantimentos em locais diferentes pra não chamar atenção, mas volta e meia vamos a essa padaria, porque é próxima e cheia, ou seja, é mais difícil de notarem alguma coisa estranha). Os policiais estavam perguntando alguma coisa lá e não deu tempo de nos afastarmos; preferimos fazer a compra, pois chamaria menos atenção que entrar e sair sem levar nada.

Há alguns dias, no noticiário, a polícia informou que há um retrato falado de um dos sequestradores, apesar de não ter aparecido no jornal o tal retrato. Pensamos que se trata apenas de uma jogada dos investigadores para nos amedrontar e ver se o libertamos. A lógica é simples: a polícia diz ter um retrato falado, entre outras informações relevantes, e a quadrilha, assustada, desiste do sequestro e larga a vítima em algum canto da cidade. Ora, somos leitores de livros policiais e de jornais, conhecemos a lógica dos detetives.

A família alega não ter o dinheiro do resgate. Fazemos contato com eles através de celulares pré-pagos, com chips que qualquer um compra nas mãos de vendedores ambulantes. Mandamos gravações da voz dele para a família escutar: essas são as provas de que ele está vivo. Impossível eles não terem o dinheiro que pedimos. Ele vendeu toda sua obra policial pra grandes produtoras. É impossível que esse canalha já tenha torrado tanto dinheiro assim, a ponto de não ter grana pro resgate.

Todo dia o sequestro é noticiado, na TV, na internet, nos jornais. Esse puto vai vender mais ainda por estar sendo vítima do sequestro. O nome dele tá em todo lugar. Duvido que as editoras já não estejam se preparando pra relançar a obra dele. E a família dizendo não ter grana pro resgate, e assim a polícia vai ganhando tempo pra investigar o paradeiro do escritor.

Ele é uma pessoa simples, não faz muitas exigências e agora parece estar menos defensivo. Talvez seja a síndrome de Estocolmo. Esse puto deve ter um forte traço masoquista, até mesmo porque ele escreve sua ficção policial sob o ponto de vista dos criminosos. Geralmente, sua narrativa é em primeira pessoa, protagonizada pelos criminosos. A essa hora ele pode estar descrevendo o próprio sequestro, narrado por um dos sequestradores. Vai saber? Além dos cigarros, da bebida e de um dicionário, ele nos fez apenas uma exigência: que só podemos ler o conto quando estiver terminado; ele disse que nunca deixa alguém ler nada dele antes de concluir o texto. Aceitamos as exigências e estamos ansiosos com o resultado.

Ele parece mais baixo e magro pessoalmente, e também mais envelhecido. Adora comer carne vermelha e beber whisky, tem três filhos - duas mulheres e um rapaz - de dois casamentos distintos. Fica calado a maior parte do tempo, não é de falar muito, nem de reclamar. É hétero e diz nunca ter tido experiências homossexuais, embora um dos seus personagens mais famosos seja um criminoso gay. Dorme pouco, lê e fuma muito, gosta de filmes policiais e de drama, especialmente nacionais e europeus. Prefere gatos a cachorros. Além dos romances, dos contos e da poesia, se considera eclético e gosta também de HQs; disse que seus personagens criminosos são inspirados em vilões de quadrinhos. Como havia dado poucas entrevistas, não sabíamos disso. Talvez esteja mentindo, mas parece que não, pois deu detalhes acerca das influências. Curte jazz, rock, mpb e música clássica. Insiste que não é rico, que livros não dão a grana como a maioria das pessoas pensa.

Anteontem ouvimos sirenes aqui perto e quase fugimos. Na verdade, chegamos a fugir; o deixamos trancado, pegamos o carro e saímos. Mas depois de um tempo, quando percebemos que as sirenes se afastaram, voltamos. É uma puta tensão sequestrar alguém e manter em cativeiro. O sequestro é classificado como crime permanente no Direito, por ser um delito cuja consumação se prolonga no tempo, enquanto a vítima estiver nas mãos dos sequestradores. O homicídio, por exemplo, é um crime classificado como instantâneo de efeito permanente, porque a consumação se dá num só momento - com a morte da vítima -, cujo resultado é irreversível, logo de efeito permanente. Ou seja, essa classificação do Direito leva em conta a duração do momento consumativo.

Assim, sequestrar alguém é muito arriscado, muito mais que matar e roubar, já que o criminoso tem de manter a vítima sob seu poder; ainda mais arriscado quando envolve a extorsão da família. E a pena é alta. O sequestro puro, sem extorsão, previsto no artigo 148 do Código Penal, tem pena de reclusão de um a três anos. Já a extorsão mediante sequestro tem a pena de oito a quinze anos, e aumenta pra doze a vinte anos, se dura mais de 24 horas e o crime é cometido por quadrilha (artigo 159, parágrafo primeiro, do Código Penal). Nosso caso é justamente esse, ou seja, nossa pena mínima, caso a polícia nos pegue, é de doze anos. Pra se ter uma ideia do risco, no homicídio simples a pena é de seis a vinte anos de reclusão.

Nossa ideia de sequestrá-lo surgiu de uma conversa: queríamos dinheiro, emoção e um novo conto do nosso autor preferido. Melhor seria um romance, mas aí seria perigoso demais, porque precisaríamos de mais tempo. E tempo é algo escasso num sequestro, ainda mais quando sabemos que não vamos machucá-lo ou matá-lo. Ele não sabe, nem sua família, e é bom que pensem que estamos dispostos a tudo, porque assim eles se coçam e fazem o que tem que fazer.
 
A tensão está aumentando. Venho descrevendo o sequestro aos poucos, à medida que os dias passam. Pois nessa manhã saiu o tal retrato falado e é bem parecido com o R. Não temos ideia de quem possa tê-lo visto, porque o carro usado na captura tinha os vidros escuros, mas o fato é que o viram. Ligamos logo para a família pra tentar agilizar o recebimento do dinheiro e no desespero até baixamos o preço do resgate, mas não deu certo. Na certa, eles estão sendo orientados pela polícia, que pode estar perto de nos encontrar.

Ouço barulho de sirenes, é hora de sair daqui rapidamente...

Epílogo

O conto foi escrito por exigência dos sequestradores, que me mantiveram em cativeiro por duas semanas, até que a polícia descobriu o local e me salvou. Além do dinheiro que cobraram da minha família - quantia alta que não tínhamos -, eles me obrigaram a escrever um conto policial, que pretendiam vender para um fã do meu trabalho como escritor. Tudo indica que esse fã foi o autor intelectual do delito. Provavelmente nunca saberei quem fez essa encomenda macabra, já que ninguém foi preso na operação de resgate. A polícia estima que a quadrilha receberia uma boa grana pela obra. Pergunto-me por que o criminoso que teve essa ideia não me fez essa proposta diretamente, porque eu a aceitaria com certeza. Os detetives, no entanto, dizem haver indícios de que o autor intelectual do meu sequestro queria que a obra fosse produzida em cativeiro e sob estresse. Acho que ele não sabia que considero a vida um cativeiro e que sempre escrevo sob estresse, já que dependo disso pra viver. Fato é que eu estava afastado da ficção policial e o crime do qual fui vítima me reaproximou. No local do cativeiro, a polícia encontrou duas armas de brinquedo, um notebook com anotações sobre o crime, além de celulares e um gravador. Embora parte da crítica me acuse de ter simulado o sequestro como jogada de marketing, eu fui realmente sequestrado, como noticiaram os jornais.

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