Depois de escrever sobre a solidão (Dança de Eleanor) e a paixão (“O meu pensamento tem a cor do seu vestido”), a saudade se impôs como terceiro elemento desta trilogia não planejada.
A paixão e a solidão poderiam ser tratadas como opostos: a paixão como queda - ainda que ilusória - das barreiras da separação. Mas esta definição seria superficial, na medida em que a solidão pode surgir como uma ilha dentro do mar revolto da paixão: ao sentirmos o afastamento, ainda que breve, do objeto do desejo, toda intensidade da paixão se converte na constatação da sua incapacidade de promover a almejada, embora nunca realizável, fusão; neste momento, a lava da solidão nos envolve e, dentro desta prisão, é comum pensarmos no passado, lembrando com saudade do que vivemos.
A saudade é, portanto, esta visita do passado ao presente; é a invasão de pensamentos e sentimentos gerados por fatos pretéritos, mas que ainda ecoam dentro de nós. E a distância potencializa tais sentimentos: a saudade não decorre somente das lembranças e emoções associadas ao passado mas também da fantasia que criamos sobre essas recordações.
A saudade não é como uma foto,* um registro fiel, objetivo, do que vivemos ontem; ela é como uma pintura: ao nos lembrarmos, pintamos a cena de acordo com as emoções que sentimos hoje e que sentimos - ou imaginamos ter sentido - quando a vivemos; daí o caráter subjetivo da construção das lembranças. Desta forma, muitas vezes supervalorizamos fatos que não foram tão significativos enquanto aconteciam, o que nos faz de certo modo negar o presente; em suma, freqüentemente o passado – ou melhor, a tela das memórias transformada pelo tempo e pela saudade - se sobrepõe ao presente.
Fernando Pessoa expressa perfeitamente esta valorização do passado “só porque foi”:
A paixão e a solidão poderiam ser tratadas como opostos: a paixão como queda - ainda que ilusória - das barreiras da separação. Mas esta definição seria superficial, na medida em que a solidão pode surgir como uma ilha dentro do mar revolto da paixão: ao sentirmos o afastamento, ainda que breve, do objeto do desejo, toda intensidade da paixão se converte na constatação da sua incapacidade de promover a almejada, embora nunca realizável, fusão; neste momento, a lava da solidão nos envolve e, dentro desta prisão, é comum pensarmos no passado, lembrando com saudade do que vivemos.
A saudade é, portanto, esta visita do passado ao presente; é a invasão de pensamentos e sentimentos gerados por fatos pretéritos, mas que ainda ecoam dentro de nós. E a distância potencializa tais sentimentos: a saudade não decorre somente das lembranças e emoções associadas ao passado mas também da fantasia que criamos sobre essas recordações.
A saudade não é como uma foto,* um registro fiel, objetivo, do que vivemos ontem; ela é como uma pintura: ao nos lembrarmos, pintamos a cena de acordo com as emoções que sentimos hoje e que sentimos - ou imaginamos ter sentido - quando a vivemos; daí o caráter subjetivo da construção das lembranças. Desta forma, muitas vezes supervalorizamos fatos que não foram tão significativos enquanto aconteciam, o que nos faz de certo modo negar o presente; em suma, freqüentemente o passado – ou melhor, a tela das memórias transformada pelo tempo e pela saudade - se sobrepõe ao presente.
Fernando Pessoa expressa perfeitamente esta valorização do passado “só porque foi”:
"Eu amo tudo o que foi
Tudo o que já não é
A dor que já não me dói
A antiga e errônea fé
O ontem que a dor deixou
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou
E hoje é já outro dia."
E é quase impossível (“quase” é eufemismo: para mim é impossível mesmo) não se deixar levar por este apego ao que se foi, bem como evitar a ansiedade que nos causa o porvir. Não é à toa que as religiões e alguns filósofos se dedicam ao tema: trata-se de algo inerente ao ser humano, que lhe causa sofrimento e ao mesmo tempo o distingue dos outros animais.
O cristianismo, tal qual o budismo, parece invalidar os pensamentos e sentimentos associados ao passado e ao futuro. No “sermão da montanha”, propõe Jesus, como exemplo de integração ao presente, o modo de viver dos seres irracionais: “Olhai as aves do céu, que nem semeiam, nem segam, nem ajuntam em celeiros; e vosso Pai celestial as alimenta”. [1]
Todavia a liberdade do homem reside justamente nesta capacidade de autonomia em relação à natureza: “o animal e a natureza são um só. O homem e a natureza são dois”, ou seja, o homem é por excelência um ser antinatural; e aí se encontra sua liberdade, que lhe permite inclusive praticar excessos contra si mesmo.
Explico-me: os animais são determinados pela natureza, são condicionados por seus instintos, não podem se aperfeiçoar à medida que crescem, são perfeitos (prontos) desde o início. [2] Nós homens, não: podemos nos aperfeiçoar ao longo da vida, não estamos condicionados a sermos um só com a natureza.
Com efeito, os animais, segundo Schopenhauer, “são o presente corporificado”, na medida em que a consciência deles é limitada ao presente (instinto), “ao passo que a consciência humana tem um campo de visibilidade que abarca a totalidade da vida, e mesmo a ultrapassa” (metafísica). [3]
Destarte, rejeitar a saudade, bem como os sofrimentos decorrentes do apego e da ansiedade em relação ao futuro, é recusar um potencial humano. As lembranças, sob a perspectiva coletiva, permitem a formação da cultura, assim como a noção do futuro permite que haja planejamento. Se nos vincularmos apenas ao agora, nos afastaremos do conhecimento desenvolvido pelas experiências dos nossos ancestrais e também não conseguiremos levar a cabo grandes empreendimentos, pois evitaremos os projetos, imprescindíveis às grandes realizações.
Sem a saudade, não existiria a Odisséia. Nostalgia significa sofrimento causado pelo retorno (em grego, nóstos é retorno e álgos, dor). Como escreveu Kundera em A ignorância, Odisseu, um dos maiores aventureiros de todos os tempos, foi também o maior nostálgico. Talvez Kundera tenha invertido a ordem: porque era um grande nostálgico, Odisseu foi um incrível aventureiro.
No entanto, lembrar do passado não significa sentir saudade. Pode-se recordar sem sofrer, sem cotejar o ontem com o hoje. Tão-somente lembrar; observar uma foto e não pintar um quadro, ou seja, ter uma visão objetiva do ontem. Mas será isso possível? A memória objetiva, sem emoções, é viável? Em se tratando das relações interpessoais acredito que não; e, para ser sincero, prefiro ser um pintor que sofre a um mero observador de retratos.
Portanto, viva a saudade! Viva o apego! Viva o sofrimento! Não negarei minhas emoções, elas me fazem “humano, demasiadamente humano”. O desejo da ausência de sofrimento é uma forma de fugir da vida. Portanto, viva o Ego! Não quero ser uma partícula do cosmos nem ser um com Deus (embora o cristianismo ofereça a tentadora promessa de carregarmos o ego e as pessoas que amamos para o além, para a eternidade). Quero ser Eu! Por mais insignificante, doloroso e efêmero que isso seja perto das promessas de unidade e eternidade que oferecem as religiões e filósofos otimistas.
Não há dúvida de que a saudade é uma fuga - ainda que involuntária - do presente e que a distância do tempo transforma fatos triviais em lembranças extraordinárias. Porém, como já afirmei, este quadro é tão belo quanto a vida e por isso não deve ser evitado; a saudade é como a arte – a comparação com a pintura não é vã.
“E por falar em saudade”, a música “Pedaço de mim”, de Chico Buarque, é visceral.
O cristianismo, tal qual o budismo, parece invalidar os pensamentos e sentimentos associados ao passado e ao futuro. No “sermão da montanha”, propõe Jesus, como exemplo de integração ao presente, o modo de viver dos seres irracionais: “Olhai as aves do céu, que nem semeiam, nem segam, nem ajuntam em celeiros; e vosso Pai celestial as alimenta”. [1]
Todavia a liberdade do homem reside justamente nesta capacidade de autonomia em relação à natureza: “o animal e a natureza são um só. O homem e a natureza são dois”, ou seja, o homem é por excelência um ser antinatural; e aí se encontra sua liberdade, que lhe permite inclusive praticar excessos contra si mesmo.
Explico-me: os animais são determinados pela natureza, são condicionados por seus instintos, não podem se aperfeiçoar à medida que crescem, são perfeitos (prontos) desde o início. [2] Nós homens, não: podemos nos aperfeiçoar ao longo da vida, não estamos condicionados a sermos um só com a natureza.
Com efeito, os animais, segundo Schopenhauer, “são o presente corporificado”, na medida em que a consciência deles é limitada ao presente (instinto), “ao passo que a consciência humana tem um campo de visibilidade que abarca a totalidade da vida, e mesmo a ultrapassa” (metafísica). [3]
Destarte, rejeitar a saudade, bem como os sofrimentos decorrentes do apego e da ansiedade em relação ao futuro, é recusar um potencial humano. As lembranças, sob a perspectiva coletiva, permitem a formação da cultura, assim como a noção do futuro permite que haja planejamento. Se nos vincularmos apenas ao agora, nos afastaremos do conhecimento desenvolvido pelas experiências dos nossos ancestrais e também não conseguiremos levar a cabo grandes empreendimentos, pois evitaremos os projetos, imprescindíveis às grandes realizações.
Sem a saudade, não existiria a Odisséia. Nostalgia significa sofrimento causado pelo retorno (em grego, nóstos é retorno e álgos, dor). Como escreveu Kundera em A ignorância, Odisseu, um dos maiores aventureiros de todos os tempos, foi também o maior nostálgico. Talvez Kundera tenha invertido a ordem: porque era um grande nostálgico, Odisseu foi um incrível aventureiro.
No entanto, lembrar do passado não significa sentir saudade. Pode-se recordar sem sofrer, sem cotejar o ontem com o hoje. Tão-somente lembrar; observar uma foto e não pintar um quadro, ou seja, ter uma visão objetiva do ontem. Mas será isso possível? A memória objetiva, sem emoções, é viável? Em se tratando das relações interpessoais acredito que não; e, para ser sincero, prefiro ser um pintor que sofre a um mero observador de retratos.
Portanto, viva a saudade! Viva o apego! Viva o sofrimento! Não negarei minhas emoções, elas me fazem “humano, demasiadamente humano”. O desejo da ausência de sofrimento é uma forma de fugir da vida. Portanto, viva o Ego! Não quero ser uma partícula do cosmos nem ser um com Deus (embora o cristianismo ofereça a tentadora promessa de carregarmos o ego e as pessoas que amamos para o além, para a eternidade). Quero ser Eu! Por mais insignificante, doloroso e efêmero que isso seja perto das promessas de unidade e eternidade que oferecem as religiões e filósofos otimistas.
Não há dúvida de que a saudade é uma fuga - ainda que involuntária - do presente e que a distância do tempo transforma fatos triviais em lembranças extraordinárias. Porém, como já afirmei, este quadro é tão belo quanto a vida e por isso não deve ser evitado; a saudade é como a arte – a comparação com a pintura não é vã.
“E por falar em saudade”, a música “Pedaço de mim”, de Chico Buarque, é visceral.
"Pedaço de Mim
Oh, pedaço de mim
Oh, metade afastada de mim
Leva o teu olhar
Que a saudade é o pior tormento
É pior do que o esquecimento
É pior do que se entrevar
Oh, pedaço de mim
Oh, metade exilada de mim
Leva os teus sinais
Que a saudade dói como um barco
Que aos poucos descreve um arco
E evita atracar no cais
Oh, pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu
Oh, pedaço de mim
Oh, metade amputada de mim
Leva o que há de ti
Que a saudade dói latejada
É assim como uma fisgada
No membro que já perdi
Oh, pedaço de mim
Oh, metade adorada de mim
Lava os olhos meus
Que a saudade é o pior castigo
E eu não quero levar comigo
A mortalha do amor
Adeus"
Nesta canção da saudade, percebe-se o uso da anáfora, que consiste na repetição de um grupo de palavras no princípio de frases ou versos consecutivos. Assim, o verso “Oh, pedaço de mim” e o verso subseqüente, o qual sempre se inicia com “oh, metade...”, possuem a função de vocativo, ou seja, designam a quem o Eu-lírico fala.
Desta forma, em “Pedaço de mim”, o Eu-lírico implora ao objeto da saudade – “oh, pedaço de mim" - que vá embora, e o faz explicando em cada estrofe o que é a saudade e o quanto ela dói. É interessante ressaltar que as lembranças são partes do Eu (partes arrancadas dele); não são o outro, mas, sim, fragmentos do Eu, mutilados e exilados pelo tempo. Nesse contexto, esta poesia é na verdade um monólogo (considerando o Eu-lírico como um só ser) entre uma parte do Eu que deseja esquecer a fim de parar de sofrer e a outra, que insiste em recordar o amor e fomentar a saudade; ou seja, uma conversa entre razão e emoção.
Racionalmente, quem sofre de saudade clama pelo esquecimento: é melhor não se lembrar do que sonhar com algo que inexoravelmente não existe mais. Por isso, no terceiro verso de todas as estrofes (exceto a última), o Eu-lírico roga que a causa da saudade (o pedaço emotivo dele) leve embora seus sinais, seu olhar, seu vulto, tudo o que possa provocar mais saudade; e, na última estrofe, exige que o objeto do desejo lave os seus olhos tristes, que não conseguem parar de admirar a tela das lembranças.
Seria perda de tempo comentar as definições de saudade de cada estrofe; basta ler, ouvir e sentir; desejo, no entanto, escrever sobre a comparação da saudade com um barco, o qual descreve um arco e evita atracar no cais. O barco é a imagem que temos do passado, o tempo é a distância que há entre nós, que estamos no cais (presente), e o barco que a cada dia está mais longe. E mesmo quando o barco sumir no horizonte (porque este é o seu destino - ele nunca voltará ao cais), seremos capazes de imaginá-lo e pintá-lo no quadro da saudade, com as cores e as emoções que surgirem ao tocarmos a tela do ontem com as tintas de hoje.
A saudade é prova de que o amor existiu. Pois tudo que há é finito. A saudade é o enterro de uma paixão. A saudade é a mortalha do amor.
Notas
* A foto também não é um registro objetivo. Uso a comparação, mas na verdade a fotografia é subjetiva, não objetiva.
[1] Novo Testamento. Mateus, 5:7. “Olhai as aves do céu, que nem semeiam, nem segam, nem ajuntam em celeiros; e vosso Pai celestial as alimenta. Não tendes vós muito mais valor que elas? (...) E quanto às vestes, por que andais solícitos? Olhai para os lírios do campo, como eles crescem: não trabalham nem fiam (...) Não andeis pois inquietos, dizendo: Que comeremos ou que beberemos ou com que nos vestiremos?”
[2] ROSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os homens. In: Rosseau. Os pensadores. Tradução de Lourdes Santos Machado. São Paulo. Nova Cultural, 2000.
[3] SCHOPENHAUER, Arthur. Da morte; Metafísica do Amor; Do Sofrimento do Mundo. São Paulo. Martin Claret, 2008.
Desta forma, em “Pedaço de mim”, o Eu-lírico implora ao objeto da saudade – “oh, pedaço de mim" - que vá embora, e o faz explicando em cada estrofe o que é a saudade e o quanto ela dói. É interessante ressaltar que as lembranças são partes do Eu (partes arrancadas dele); não são o outro, mas, sim, fragmentos do Eu, mutilados e exilados pelo tempo. Nesse contexto, esta poesia é na verdade um monólogo (considerando o Eu-lírico como um só ser) entre uma parte do Eu que deseja esquecer a fim de parar de sofrer e a outra, que insiste em recordar o amor e fomentar a saudade; ou seja, uma conversa entre razão e emoção.
Racionalmente, quem sofre de saudade clama pelo esquecimento: é melhor não se lembrar do que sonhar com algo que inexoravelmente não existe mais. Por isso, no terceiro verso de todas as estrofes (exceto a última), o Eu-lírico roga que a causa da saudade (o pedaço emotivo dele) leve embora seus sinais, seu olhar, seu vulto, tudo o que possa provocar mais saudade; e, na última estrofe, exige que o objeto do desejo lave os seus olhos tristes, que não conseguem parar de admirar a tela das lembranças.
Seria perda de tempo comentar as definições de saudade de cada estrofe; basta ler, ouvir e sentir; desejo, no entanto, escrever sobre a comparação da saudade com um barco, o qual descreve um arco e evita atracar no cais. O barco é a imagem que temos do passado, o tempo é a distância que há entre nós, que estamos no cais (presente), e o barco que a cada dia está mais longe. E mesmo quando o barco sumir no horizonte (porque este é o seu destino - ele nunca voltará ao cais), seremos capazes de imaginá-lo e pintá-lo no quadro da saudade, com as cores e as emoções que surgirem ao tocarmos a tela do ontem com as tintas de hoje.
A saudade é prova de que o amor existiu. Pois tudo que há é finito. A saudade é o enterro de uma paixão. A saudade é a mortalha do amor.
Notas
* A foto também não é um registro objetivo. Uso a comparação, mas na verdade a fotografia é subjetiva, não objetiva.
[1] Novo Testamento. Mateus, 5:7. “Olhai as aves do céu, que nem semeiam, nem segam, nem ajuntam em celeiros; e vosso Pai celestial as alimenta. Não tendes vós muito mais valor que elas? (...) E quanto às vestes, por que andais solícitos? Olhai para os lírios do campo, como eles crescem: não trabalham nem fiam (...) Não andeis pois inquietos, dizendo: Que comeremos ou que beberemos ou com que nos vestiremos?”
[2] ROSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os homens. In: Rosseau. Os pensadores. Tradução de Lourdes Santos Machado. São Paulo. Nova Cultural, 2000.
[3] SCHOPENHAUER, Arthur. Da morte; Metafísica do Amor; Do Sofrimento do Mundo. São Paulo. Martin Claret, 2008.