sábado, 7 de outubro de 2017

Velhas telhas

As velhas telhas
deixam entrar a chuva
mas também o sol.

Barca ao sol

A barca segue
pela água brilhante
lotada de sol.

Natureza urbana

Chovem gotas de ar condicionado;
Rugem carros e motos e caminhões.
À sombra do prédio descansa um cão
Magro, estendido como morto;
Sobrevoam o corpo inerte aviões e urubus.
O vento espalha folhas de papel
E faz dançarem sacos plásticos.

quarta-feira, 4 de outubro de 2017

pelas janelas da barca

o mar pelas janelas da barca mal se vê. se vê de longe o que é tão próximo como um paradoxo dessas janelas pequenas. o mar que mal se vê é cinza como chumbo e dele se veem brotar as patas da ponte, como uma centopeia atravessando uma poça de água suja. o barulho do motor e a trepidação lembram a respiração de um bicho, que atravessa o mar meio cansado levando parasitas em sua carcaça. de longe os guindastes parecem insetos, louva-a-deus, prontos pra mexer seus braços mecânicos e carregar estômagos de navios com contêineres, parasitas a serem levados por aí, singrando o mar cinza-chumbo. já perto do destino cruza o céu um inseto branco alado e barulhento, a pousar do lado esquerdo, rápido e duro como um besouro com rodas. ao redor o mar chumbo é como uma bacia de cinzas de uma fogueira queimando há séculos. pelas pequenas janelas da barca mal se vê.

terça-feira, 3 de outubro de 2017

À distância

Da minha janela
Sempre vi a montanha de longe,
Sua plácida silhueta cinza azulada:
A imagem da eterna solidez.

Essa imagem se manteve
Até o dia em que resolvi me aproximar;
Nesse dia aquela imagem de outrora –
Uniformemente azulada –
Tornou-se múltipla, fragmentada e colorida.
Estava quebrado o primeiro quadro.

O silêncio que lhe atribuía transformou-se
Em ruído intermitente.
De perto vi toda a vida e movimento que de longe
Sequer imaginava.

O vento movia todas as folhas de todas as árvores,
As quais eram pedras, quando olhava da minha janela.
A vida revelou-se pela proximidade.
Decidi tocar a montanha, já não me bastava vê-la e ouvi-la.
Entranhei-me nela;
Uma vez mais a imagem anterior tornou-se mera lembrança.

Na trilha que levava ao cume senti a sombra,
A umidade, o cheiro das folhas putrefatas;
Ouvi todos os intermitentes e infindáveis sons;
E toquei seus fragmentos.

Eu perdi a montanha ao adentrar na montanha.
Eu a possuía inteira e agora já não tenho aquele
Recorte cinza azulado – e não a ter é uma forma
Oblíqua de não me ter a mim.
Estou perdido dentro de nova e densa imagem.
Nada é plácido de perto.
O sol é belo à distância.
O outro é belo à distância.

Exausto, segui na trilha tortuosa e mal sinalizada –
O rio pelo qual tive que passar era frio e perigoso.
Mas insisti: queria chegar ao cume. E parecia faltar pouco
Para tanto: minhas pernas tremiam,
Meus braços estavam lanhados; minha roupa, gelada, fundida ao corpo.

Cheguei. Novamente a imagem se desfez. Tornei-me alívio e cansaço,
E senti a grandeza efêmera que é emprestada
Aos pequenos aos quais de repente se concede o poder de olhar bem longe.
Perscruto a paisagem. Vejo a placidez das pequenas casas à distância.
Vejo minha vila - eterna e sólida - e imagino minha casa.
Ela está incrustada lá, mas não consigo separá-la do todo,
Como não se consegue discernir uma árvore numa floresta observada à distância.
Imagino minha casa e a janela de meu quarto;
A janela pela qual sempre vi a montanha.
Imagino-me em casa, à janela, admirando a placidez da montanha.
Ah, como eu sou plácido e íntegro vislumbrado assim!
Sou uma como uma folha de uma árvore na montanha distante!

Porém, tal qual uma montanha,
De perto sou fragmentado, tortuoso e quase inescrutável.
Não tenho sequer trilhas dentro de mim; e meus rios são muitos.
Só eu me arriscaria a adentrar. Mas não sei se chegaria ao cume.

domingo, 1 de outubro de 2017

Pequeno (conto)


Chovia. Mas ali dentro – na ACE (Ala de Cuidados Especiais) da clínica psiquiátrica L.L. – pouca diferença fazia o tempo lá fora, já que a claridade entrava somente pelos tijolos vazados - do tipo cogobó -, que ficam do lado direito do prédio de apenas um pavimento, localizado nos fundos da clínica. Os tijolos vazados eram como grades, permitindo ver apenas parte do jardim, com uma árvore enorme bem na frente. Quando o sol está forte passa pelos buracos, projetando pequenas esferas de luz no chão e nas paredes. Mas naquele dia não havia sol, era um domingo chuvoso, e o fato de ser domingo parecia deixar tudo mais cinza, lento e úmido. Como uma lesma. Pode ser por que as pessoas em geral têm esse sentimento de modorra em relação ao domingo, esse sentimento de que a segunda já vem chegando, uma visão negativa do final dos dias de descanso e da iminente volta à rotina de trabalho.

Porém, no caso da clínica, esse sentimento era agravado pelas poucas atividades nos finais de semana, especialmente para quem estava no nível 1. Explico: na ACE ficavam pacientes de 4 níveis. Os de nível 1 só saem para consultas individuais com psiquiatras e psicólogos; os de nível 2 saem quando profissionais vêm buscar para atividades específicas, inclusive educação física, arteterapia etc.; os de nível 3 saem às 7:30 h da ACE e podem circular pela clínica até as 17 h; e por fim os de nível 4, que também saem às 7:30 h e podem retornar à ACE até as 20 h. Além desta ala, há mais cinco casas com vários quartos coletivos - três setores masculinas e dois femininos -, onde os pacientes têm maior liberdade para circular pelo espaço da clínica.

Para os pacientes da ACE, domingo era um dia com poucas atividades para os de maior nível e pior ainda para os de menor. Hélio, paciente de nível 1, não tinha muito o que fazer, já estava cansado de reler o exemplar de “Os velhos marinheiros”, de Jorge Amado, que tinha trazido pra clínica na pressa de sair de casa. Ele estava internado há oito dias na clínica, desde o início na ACE. O diagnóstico dele era dependência química e transtorno bipolar, e estava internado porque havia abusado dos seus remédios psiquiátricos, o que a família dele havia entendido como uma tentativa de suicídio. O dia demorava a passar. Proibidos os relógios, eram as refeições que marcavam as horas, mas não era o café da manhã que iniciava o dia e sim o banho obrigatório às 6:30 h. Para tomar café, era necessário, antes, enfrentar o banho, o que Hélio fez logo que o enfermeiro de plantão o acordou naquele dia.

Após, Hélio comeu o que lhe cabia: dois pães franceses pequenos recheados cada um deles com fatias generosas de queijo prato e presunto e dois copos de café com leite, já que o café puro era proibido. Depois do desjejum, Hélio assistiu à TV, que ficava trancada numa pequena cela, na única sala coletiva da ACE, onde também eram servidas todas as refeições. Uma TV para todos os treze pacientes: ele assistiu a um programa jornalístico seguido por um jogo de futebol. No meio da manhã, serviram fatias de melão. Perto da hora do almoço a sala ficou cheia: era mais falta do que fazer do que fome. Ele comeu macarrão, arroz, feijão, carne moída, salada de alface com tomate e gelatina de sobremesa. Hélio comeu rapidamente e foi para cama dormir, como costumava fazer.

Quando acordou, Hélio se viu preso debaixo das cobertas: estava escuro e ele não se lembrava de ter coberto a cabeça. Tentou se libertar do cobertor, mas não estava conseguindo; sentiu-se preso e passou a se mover desesperadamente; demorou a perceber que tinha diminuído: agora ele tinha em torno de 15 centímetros. Pensou em gritar, mas desistiu. Tudo indica que ele preferiu aproveitar o tamanho reduzido para fugir da clínica. Talvez ele não tenha chamado ninguém com receio de ser tachado de louco. (Ele tinha dúvidas, seria uma alucinação?). 

Pequeno, tudo se tornou mais arriscado. Descer da cama era perigoso. A própria coberta pesava sobre o corpo dele, obrigando-o a rastejar até a beirada da cama, de onde podia observar se era possível descer sem se machucar. Ao achar um lugar no qual o cobertor estava bem próximo do chão, desceu, segurando-se nas reentrâncias do tecido.

Não foi fácil e quando chegou ao chão a proporção das coisas pareceu assustá-lo; talvez ele tenha ficado envergonhado por sua nudez ou foi simplesmente o medo de se lançar na fuga. Correu por baixo da cama e se escondeu atrás de um dos pés do leito de ferro. Um enfermeiro entrou no quarto, mas procurava outro paciente e sequer olhou pra cama de Hélio, que se manteve escondido. A porta do quarto estava entreaberta; quando o enfermeiro saiu, ele correu em seu rastro e saiu para o corredor, não sem antes verificar se vinha alguém. Hélio parecia buscar a saída da ala e, correndo, entrou debaixo das mesas do refeitório. Poucos pacientes assistiam à TV; ele tentou passar longe deles.

Estava indo muito bem, até que um dos pacientes levantou pra pegar água e, sem vê-lo, quase pisou nele. Hélio se escondeu atrás do pé de uma das mesas e ficou ali até o outro paciente sair de perto. De lá, Hélio conseguiu passar para outra mesa e depois correu até a parede, ficando mais perto da porta, atrás da lata de lixo. Era o lugar mais perto que conseguia ficar da porta de saída da ala sem ser visto.

Com um barulho seco a fechadura da saída principal estalou, a porta se abriu e um médico entrou. Hélio chegou a se mover, porém pareceu não ter coragem para fugir naquela oportunidade. Continuou ali parado, tenso, vigiando a porta. Não demorou muito e um enfermeiro se aproximou da porta, que estalou, se abrindo. Hélio correu; o enfermeiro já havia passado quando ele chegou mais perto; a porta foi se fechando, ele correndo, o espaço para passar se estreitando. Hélio correu o máximo que pôde e pulou, na tentativa de atravessar pela fresta.

Quase conseguiu fugir. Foi por pouco. A porta o cortou ao meio.

quarta-feira, 27 de setembro de 2017

O sequestro (conto)

       Será que as palavras são como um cativeiro para o escritor? Será que aqueles que têm necessidade de escrever são reféns das palavras? As palavras são necessidade, vício, prisão ou liberdade? Realmente não sei, mas me parece que no caso o escritor é prisioneiro das palavras, já que apenas elas poderão libertá-lo.

Preso nessa sala abafada, ouço o barulho dos dedos nas teclas: ele está trabalhando, fazendo o que tem que fazer. Ele demorou dias pra começar a trabalhar. Parece que ele teve dificuldade de entender que só vai sair daqui quando a família pagar o resgate e ele entregar ao menos um conto policial.

Nós o pegamos quando ele estava num banco de uma praça próxima a casa dele, fumando um cigarro. Foi fácil. Paramos um carro roubado, com os vidros escuros, baixamos a janela do motorista e pedimos informações. Ele se aproximou e o pegamos, apontando uma arma. Ele não sabe, mas essa arma é de brinquedo. Ele, que escreve romances e contos policiais, que menciona nomes e detalhes de pistolas e revólveres, que é famoso por seus livros de detetives e criminosos, foi ironicamente rendido por uma arma de brinquedo.

A quadrilha tem sete membros, cinco homens e duas mulheres. A casa onde o colocamos fica na periferia, numa espécie de sítio. Nenhum de nós têm armas de verdade. Na realidade, somos um grupo de fãs dele que teve a ideia de sequestrá-lo para obrigá-lo a escrever alguma coisa boa, porque há anos ele não escreve nada que preste; para se ter uma ideia, a última coisa que ele publicou foi um livro infantil, isso depois de um de poesia há mais de três anos.

Ele se perdeu ou se vendeu, não sabemos bem, e queremos descobrir. Prosa infantil e poesia? É esse o trabalho dele agora? Onde está a prosa policial, a tensão, os crimes, a investigação, o submundo? Tudo indica que, ao vender os direitos de sua obra policial para produtoras de filmes, ele perdeu a inspiração para escrever novos livros desse gênero.

Mas já explicamos o que queremos dele e é bom ele se apressar porque não temos todo o tempo do mundo. Além disso, sequestrar e manter uma pessoa em cativeiro é algo complicado, exige muito de nós. Alugamos esse sítio usando disfarce e nome falso. Pra falar a verdade essa parte foi fácil. Escolhemos o lugar através de um site e pagamos a vista, por depósito bancário. O mais tenso foi pegá-lo e trazê-lo pra cá, pois alguém poderia ver nossa ação criminosa. Ou poderíamos ser parados numa blitz. Por sorte deu tudo certo e agora vivemos a tensão de mantê-lo escondido aqui.

Nós nos revezamos para ficar de vigia e o alimentamos quatro vezes ao dia. Ele come pouco, mas bebe e fuma bastante. Não tem ânimo para conversar conosco, mas nós forçamos a barra, fazendo mil perguntas e ameaçando se ele se recusa a responder. Estamos gravando as conversas, que também serão vendidas ao final, junto com o conto. Uma entrevista exclusiva e profunda, sob a mira de uma arma. De brinquedo, é verdade, mas ele não sabe.

Ontem de manhã ficamos tensos: havia uma viatura da polícia civil relativamente perto, em frente à padaria onde compramos comida com alguma frequência. (Estamos comprando mantimentos em locais diferentes pra não chamar atenção, mas volta e meia vamos a essa padaria, porque é próxima e cheia, ou seja, é mais difícil de notarem alguma coisa estranha). Os policiais estavam perguntando alguma coisa lá e não deu tempo de nos afastarmos; preferimos fazer a compra, pois chamaria menos atenção que entrar e sair sem levar nada.

Há alguns dias, no noticiário, a polícia informou que há um retrato falado de um dos sequestradores, apesar de não ter aparecido no jornal o tal retrato. Pensamos que se trata apenas de uma jogada dos investigadores para nos amedrontar e ver se o libertamos. A lógica é simples: a polícia diz ter um retrato falado, entre outras informações relevantes, e a quadrilha, assustada, desiste do sequestro e larga a vítima em algum canto da cidade. Ora, somos leitores de livros policiais e de jornais, conhecemos a lógica dos detetives.

A família alega não ter o dinheiro do resgate. Fazemos contato com eles através de celulares pré-pagos, com chips que qualquer um compra nas mãos de vendedores ambulantes. Mandamos gravações da voz dele para a família escutar: essas são as provas de que ele está vivo. Impossível eles não terem o dinheiro que pedimos. Ele vendeu toda sua obra policial pra grandes produtoras. É impossível que esse canalha já tenha torrado tanto dinheiro assim, a ponto de não ter grana pro resgate.

Todo dia o sequestro é noticiado, na TV, na internet, nos jornais. Esse puto vai vender mais ainda por estar sendo vítima do sequestro. O nome dele tá em todo lugar. Duvido que as editoras já não estejam se preparando pra relançar a obra dele. E a família dizendo não ter grana pro resgate, e assim a polícia vai ganhando tempo pra investigar o paradeiro do escritor.

Ele é uma pessoa simples, não faz muitas exigências e agora parece estar menos defensivo. Talvez seja a síndrome de Estocolmo. Esse puto deve ter um forte traço masoquista, até mesmo porque ele escreve sua ficção policial sob o ponto de vista dos criminosos. Geralmente, sua narrativa é em primeira pessoa, protagonizada pelos criminosos. A essa hora ele pode estar descrevendo o próprio sequestro, narrado por um dos sequestradores. Vai saber? Além dos cigarros, da bebida e de um dicionário, ele nos fez apenas uma exigência: que só podemos ler o conto quando estiver terminado; ele disse que nunca deixa alguém ler nada dele antes de concluir o texto. Aceitamos as exigências e estamos ansiosos com o resultado.

Ele parece mais baixo e magro pessoalmente, e também mais envelhecido. Adora comer carne vermelha e beber whisky, tem três filhos - duas mulheres e um rapaz - de dois casamentos distintos. Fica calado a maior parte do tempo, não é de falar muito, nem de reclamar. É hétero e diz nunca ter tido experiências homossexuais, embora um dos seus personagens mais famosos seja um criminoso gay. Dorme pouco, lê e fuma muito, gosta de filmes policiais e de drama, especialmente nacionais e europeus. Prefere gatos a cachorros. Além dos romances, dos contos e da poesia, se considera eclético e gosta também de HQs; disse que seus personagens criminosos são inspirados em vilões de quadrinhos. Como havia dado poucas entrevistas, não sabíamos disso. Talvez esteja mentindo, mas parece que não, pois deu detalhes acerca das influências. Curte jazz, rock, mpb e música clássica. Insiste que não é rico, que livros não dão a grana como a maioria das pessoas pensa.

Anteontem ouvimos sirenes aqui perto e quase fugimos. Na verdade, chegamos a fugir; o deixamos trancado, pegamos o carro e saímos. Mas depois de um tempo, quando percebemos que as sirenes se afastaram, voltamos. É uma puta tensão sequestrar alguém e manter em cativeiro. O sequestro é classificado como crime permanente no Direito, por ser um delito cuja consumação se prolonga no tempo, enquanto a vítima estiver nas mãos dos sequestradores. O homicídio, por exemplo, é um crime classificado como instantâneo de efeito permanente, porque a consumação se dá num só momento - com a morte da vítima -, cujo resultado é irreversível, logo de efeito permanente. Ou seja, essa classificação do Direito leva em conta a duração do momento consumativo.

Assim, sequestrar alguém é muito arriscado, muito mais que matar e roubar, já que o criminoso tem de manter a vítima sob seu poder; ainda mais arriscado quando envolve a extorsão da família. E a pena é alta. O sequestro puro, sem extorsão, previsto no artigo 148 do Código Penal, tem pena de reclusão de um a três anos. Já a extorsão mediante sequestro tem a pena de oito a quinze anos, e aumenta pra doze a vinte anos, se dura mais de 24 horas e o crime é cometido por quadrilha (artigo 159, parágrafo primeiro, do Código Penal). Nosso caso é justamente esse, ou seja, nossa pena mínima, caso a polícia nos pegue, é de doze anos. Pra se ter uma ideia do risco, no homicídio simples a pena é de seis a vinte anos de reclusão.

Nossa ideia de sequestrá-lo surgiu de uma conversa: queríamos dinheiro, emoção e um novo conto do nosso autor preferido. Melhor seria um romance, mas aí seria perigoso demais, porque precisaríamos de mais tempo. E tempo é algo escasso num sequestro, ainda mais quando sabemos que não vamos machucá-lo ou matá-lo. Ele não sabe, nem sua família, e é bom que pensem que estamos dispostos a tudo, porque assim eles se coçam e fazem o que tem que fazer.
 
A tensão está aumentando. Venho descrevendo o sequestro aos poucos, à medida que os dias passam. Pois nessa manhã saiu o tal retrato falado e é bem parecido com o R. Não temos ideia de quem possa tê-lo visto, porque o carro usado na captura tinha os vidros escuros, mas o fato é que o viram. Ligamos logo para a família pra tentar agilizar o recebimento do dinheiro e no desespero até baixamos o preço do resgate, mas não deu certo. Na certa, eles estão sendo orientados pela polícia, que pode estar perto de nos encontrar.

Ouço barulho de sirenes, é hora de sair daqui rapidamente...

Epílogo

O conto foi escrito por exigência dos sequestradores, que me mantiveram em cativeiro por duas semanas, até que a polícia descobriu o local e me salvou. Além do dinheiro que cobraram da minha família - quantia alta que não tínhamos -, eles me obrigaram a escrever um conto policial, que pretendiam vender para um fã do meu trabalho como escritor. Tudo indica que esse fã foi o autor intelectual do delito. Provavelmente nunca saberei quem fez essa encomenda macabra, já que ninguém foi preso na operação de resgate. A polícia estima que a quadrilha receberia uma boa grana pela obra. Pergunto-me por que o criminoso que teve essa ideia não me fez essa proposta diretamente, porque eu a aceitaria com certeza. Os detetives, no entanto, dizem haver indícios de que o autor intelectual do meu sequestro queria que a obra fosse produzida em cativeiro e sob estresse. Acho que ele não sabia que considero a vida um cativeiro e que sempre escrevo sob estresse, já que dependo disso pra viver. Fato é que eu estava afastado da ficção policial e o crime do qual fui vítima me reaproximou. No local do cativeiro, a polícia encontrou duas armas de brinquedo, um notebook com anotações sobre o crime, além de celulares e um gravador. Embora parte da crítica me acuse de ter simulado o sequestro como jogada de marketing, eu fui realmente sequestrado, como noticiaram os jornais.

sexta-feira, 23 de junho de 2017

viole(n)ta em mar trigueiro

Violeta, violenta,
Passividade ativa,
tem consciência da sua condição,
sua cor é teu nome,
sua forma, atração.

Seu pólen se dispersa no ar
alcançando o desejo alheio.
Despertando ao desabrochar.

Num mar trigueiro
violenta é sua cor
Abre-se por inteiro
entregando-se ao seu admirador.

O tempo seu, só seu, mulher,
Flor, dona de si, se dá por prazer,
se abre pra quem quer.


só te prometi


Só te prometi (música com cifras para violão)

(G / D / A / E - 4 X

D7 / A7

um tom abaixo:

F / C / G / D

C7 / G7)


Eu só te prometi
O que eu posso ser
Te fiz sorrir
Dizendo nada ter

Falei de tudo
Que vou lhe dar
Mãos atadas, beijos loucos
Sorrisos e o meu cantar

(C7 / G7)

Jurei pra sempre
Só na hora
O amor eterno
Do agora

Eu só te prometi
O que eu posso ser
Te fiz sorrir
Dizendo nada ter


quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Medo deslocado



A foto de um funcionário de escritório trabalhando de capacete incomoda pelo deslocamento. O capacete sobra, se mostra excessivo, desnecessário, até ridículo. Mas a imagem suscita a discussão do deslocamento, da coisa fora de lugar. E isso acontece com o medo. Bauman defende a ideia de que as pessoas em geral não conhecem a causa da sua insegurança, direcionando o discurso de reação a fatores que nada tem a ver com a causa real do medo. Segundo Bauman, enquanto a maioria das pessoas acha que o medo vem de crimes brutais noticiados a toda hora pela mídia (e aí a culpa recai sobre grupos de supostos "diferentes", caso dos imigrantes na Europa e dos mais pobres e excluídos no Brasil), a causa real é estrutural e diz respeito ao fim do estado de bem-estar social, ao avanço neoliberal, lançando as pessoas à própria sorte e recursos particulares, em sociedades historicamente desiguais. No fim, o medo e a reação são direcionados a outras vítimas e não à causa real. Se acha o medo do funcionário da foto ridículo, talvez possa se indagar sobre o seu.    

sábado, 28 de janeiro de 2017

Ninguém liga pro Daniel Blake (Ken Loach, 2016)

O filme começa com palavras num fundo negro: apenas um diálogo. Um homem e uma mulher falam sobre o questionário para obter benefício previdenciário. Muitas frases são ditas antes que as imagens venham à luz. O diretor é um parteiro de imagens sóbrias, realistas, em tons azuis acinzentados e focos originais. O filme tem cortes bem marcados de tempos em tempos, indicando a passagem de períodos: segundos de tela negra e silêncio destacam trechos da obra.

A narrativa mira a burocracia, a frieza, a falta de humanidade, o despreparo programado dos técnicos, que negam benefícios vitais para pessoas mais pobres, numa sociedade claramente desigual. Mira, sobretudo, o estado, a máquina pública e os vilões são os gerentes do instituto de previdência britânico. Daniel Blake, carpinteiro há mais de 40 anos, viúvo, morador de uma cidade média, sofreu um infarto, quase morreu. Sua médica o proibiu de trabalhar. Porém, mesmo com o laudo, o benefício lhe foi negado. Daniel não é um homem paciente, submisso; é um homem ciente dos seus direitos, astuto, tem o dom da ironia, a simpatia de um homem experiente, que convive em harmonia com vizinhos pobres, imigrantes.

A trama pode lembrar “o processo” de Kafka, mas é muito mais realista, embora as exigências e a falta de abertura ao diálogo nos deixem mareados, enjoados, irritados, tensos. Blake tenta, fala, grita e, ao presenciar o absurdo da negativa de atendimento a uma mulher jovem com duas crianças, toma partido, em defesa da mãe desnorteada. Ambos terminam expulsos da unidade, agressivamente. E daí começam uma amizade.

Há cenas que expõem a globalização, quando um vizinho de Daniel recebe pares de tenis da china para revender na cidade, e também com a multietnicidade das personagens, além da conversa por vídeo com o chinês apaixonado por futebol. O filme revela a vida, os impasses, os dramas de Daniel e Katie, que está longe da família e sem dinheiro. O filme é realista e delicado.

A narrativa tem sua poesia, com os dons artísticos do senhor solitário que faz peixinhos de madeira para pendurar no teto, rendendo belas imagens dos bichinhos contra a luz da janela, por onde entra alguma luz para aquecer a casa e a vida em crise de pessoas que estão isoladas e sem meios de subsistência. Os peixinhos de madeira me lembraram os de ouro de Aureliano Buendia (Cem anos de Solidão). 

E a trama remete também a outra obra de  Gabriel Garcia Marquez, a novela “Ninguém escreve ao coronel”, no qual um senhor espera o pagamento de sua aposentadoria pelo correio. O coronel, como Daniel, sofre pela sobrevivência, lutando contra a burocracia. As cartas, as ligações, os questionários, a fome, as amizades, tudo é descrito no livro escrito em 1957, sobre a vida (ou sobrevida) de um senhor numa pequena cidade colombiana. 

Blake lembra também a Clara de Aquarius: um homem com dignidade, força, história e uma disposição de lutar, mesmo que o coração já esteja enfraquecido. Nenhum dos dois se submete. Uma das cenas mais marcantes é quando Daniel inscreve seu recurso fora do lugar, numa superfície pública, aberta. O fato de escrever diz muito. A palavra. Mais uma vez. Se o diálogo inaugural tinha o fundo negro, agora a palavra se expõe aberta. Um homem pobre, um homem machucado pela vida, com roupas velhas, bêbado começa a defender Daniel e faz um belo discurso, se identificando também como uma vítima do governo, “dos gordos com suas taxas”.

Em tempos de governantes que apagam arte, pichar pode ser um meio de dizer (qual o lugar da arte?). E qual o lugar do poder econômico? O filme é magnífico, o diretor Ken Loach faz um trabalho excelente, porém penso que a narrativa poderia abordar mais a vinculação do poder privado ao público, as relações econômicas capitalistas que criam e reproduzem a desigualdade, a exploração, a negação da dignidade de forma sistemática. Os vilões do filme, burocratas do estado, só fazem o trabalho sujo para os empresários ricos.

E a palavra, ao final, surge com um discurso deslocado, agora não de superfície mas de personagem, um discurso que vai além. Um recurso/discurso que é escrito e acaba lido fora da repartição, longe do seu lugar, um recurso que lembra a carta não enviada, que segundo Lacan seria para o grande Outro. O filme é como a mensagem, e lá como aqui vemos idosos tendo que trabalhar, mesmo doentes, para sobreviver e todo avanço neoliberal de privatização, redução do estado. Pode ser que amanhã ninguém nos escreva. 



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Filme: "Eu, Daniel Blake"
KEN LOACH
Ficção/Fiction
Cor/Color DCP 100'
Reino Unido / França - 2016
Direção/Direction:
KEN LOACH
Roteiro/Screenplay:
PAUL LAVERTY

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Fala falo

coração tem fama de gamadão:
projeta-se por todo lado
pintado, digital ou à mão.
embora more, no peito, entocado,
é bateria da vida, percussão.

tão profundo, fechado,
é usado pra falar do amor.
ah, coração apertado,
tem fama de Don Juan do corpo,
intenso e conquistador,
escute aqui outro pedaço
tirar onda de trovador.

trema corpo, repercuta inteiro,
tira roupa, surja, apareça,
um pedaço de devaneio,
que eu diga, declame e cresça.

se você, coração, ama demais,
o que dirá quem é abraçado,
tocado, cheio de tramas sensoriais?

falo! falo mesmo! Digo, grito,
instigo, provoco: te amo, amo!
não, não sou nenhum maldito,
o coração se declara, eu me derramo.





sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Amizade (conto)

Risadinha tá foda hoje! Impossível! Rá, rá, rá!”, disse o homem barbudo, que usava roupas surradas e segurava uma bolsa velha.
Você sabe o que o papagaio disse pra dona?”, continuou Risadinha, enquanto o homem barbudo gargalhava, tremia de tanto rir, com o corpo arqueado e o rosto enrugado.
Risadinha, Risadinha, conta aquela, conta aquela, a do político! Rá, rá, rá!”, pediu o homem, e Risadinha soltou sua risada longa, de vários tons, aquela sua risada de plateia, de claque, que se misturou com a risada do homem barbudo, mais uma entre as várias gargalhadas que tomavam a praça.
Ah, Risadinha, você conta o que quer, na hora que quer - puta que o pariu! Rá, rá, rá! Mas sabe contar piada! Mas é um filha da puta que sabe contar piada! Rá, rá, rá!”, disse o barbudo, largando sua bolsa no chão.
Estava o presidente sobrevoando uma cidade do interior quando...”, continuou Risadinha.
Essa, é essa, seu safado! Mas que filha da puta! Rá, rá, rá!”
Ô Risadinha, segura sua onda aí! Pode escutar, rir, mas ficar xingando, não! Olha as senhoras passando aí; você tá na praça, na cidade, não dá pra ficar esculhambando, não! Mais respeito!”, falou o vendedor de pipoca para o homem barbudo, que estava cada vez mais agitado.
É todo dia isso! Parece uma novela! Esse Risadinha aí com essas piadas!”, gritou o jornaleiro, dando um passo pra fora da banca de jornal e apontando pro barbudo, enquanto se dirigia ao pipoqueiro.
Aí o padre olhou para a moça e disse que...”, prosseguia Risadinha.
Ah, não enche, não enche! Esse Risadinha é que acaba comigo! Rá, rá, rá! Vocês querem o quê?! Ele me mata com essas piadas! Ele é foda! Rá, rá, rá!”, respondeu o barbudo.
Pega leve, Risadinha, pega leve! Senão você me prejudica; eu tô aqui querendo vender meus cedês; assim você espanta a clientela”, falou o vendedor, diante da sua barraquinha.
Mas não é pra rir? Mas não é pra se escangalhar de rir com uma porra dessa? Rá, rá, rá”, respondeu o barbudo, com o corpo arqueado, uma mão na barriga, o outro braço estendido.
Ele hoje tá impossível! Risadinha, Risadinha, segura sua onda! O Zé da pipoca já tá furioso com sua gritaria!”, respondeu o vendedor de cedês.
Rá, rá, rá, rá...”, as risadas dos Risadinhas se misturavam e tomavam a praça, em meio ao barulho de máquinas, conversas e os pregões de vendedores ambulantes.
Muitas pessoas passavam apressadas. A conversa ocorria numa praça, no centro da cidade, perto da estação das barcas. Parados, só os vendedores e um ou outro que estivesse esperando alguém. Jornaleiros, vendedores de chips de celular, carrocinhas de cachorro-quente, churros, pipoca, isopor com bebidas, cedês, devedês... A cada quinze ou vinte minutos, chegava uma barca e uma torrente de pessoas jorrava pela praça; nesse momento, o barulho aumentava, os vendedores gritavam mais alto, anunciavam seus produtos. Mas as piadas e risadas seguiam um fluxo contínuo e se destacavam ainda mais quando a onda de pessoas ia se afastando. Havia momentos em que dominava, quase sozinha, a risada longa, eufórica, variada, aquela risada de claque. Uma risada solta, sozinha, perdida numa praça cinzenta, suja, quente, onde nada parece engraçado. Risadas que se repetem, marcando o tempo como um relógio com alarme de risos. Risadas que parecem debochar da pressa e da rotina da multidão que passa.

... e aí a professora perguntou pro Joãozinho...”, continuava Risadinha.
Mas é de foder, é de foder! Essa é muito boa! Rá, rá, rá”, gritou o barbudo, se sacudindo de tanto rir.
Ele tá de sacanagem! Ele já tá provocando! Eu falei com educação! Mas também vem esse aí lá da puta que o pariu pra botar essas merdas dessas piadas o dia inteiro na nossa cabeça!”, reclamou o pipoqueiro.
Tô trabalhando! Aqui é praça, é público, quem tiver incomodado que se mude! Você solta uma fumaceira danada aí com essa pipoca gordurenta e a gente atura!”, respondeu o vendedor de cedês.
Mas o problema é esse cachaceiro desgraçado aí! Esse vagabundo Risadinha aí, que passa horas e horas rindo e xingando!”, se intrometeu o jornaleiro, já a uns três passos da sua banca, apontando pro barbudo.
Rá, rá, rá. Mas essa é boa! Repete, repete, seu filha da puta! Rá, rá, rá”, berrava o barbudo, se aproximando da barraquinha de cedês.
Risadinha, segura sua onda, Risadinha! Você tá demais hoje mesmo!”, disse o vendedor de cedês.
... daí em diante o bêbado passou a evitar a primeira dose...”, Risadinha continuou.
Mas que putaria é essa de me chamar disso?! Vai rir na minha cara!”, berrou o barbudo, erguendo a cabeça e o braço direito.
Rá, rá, rá, rá...”, gargalhava risadinha entre uma piada e outra.
Mas você acha que vai ficar nessa provocação e eu não vou fazer nada?!”, disse o barbudo, se aproximando ainda mais da barraquinha de cedês.
Ih, agora Risadinha surtou! Acabou a graça, cachaceiro?!”, provocou o pipoqueiro.
... e aí a mulher falou: já foi beber, safado, já foi beber...”, contava Risadinha.
Puta que o pariu! Mas que filho da puta! Tá achando que eu tô de brincadeira!”, falou o barbudo, enfurecido, mais perto da barraquinha de cedês.
Rá, rá, rá...”, gargalhava a plateia.
Seu pilantra, filho da puta! Mas você vai aprender a calar essa porra dessa boca!”, gritou o barbudo, atacando Risadinha.

O barbudo empurrou Risadinha - uma lixeira grande, de plástico, com rodinhas, adaptada com alto-falante - e, desequilibrado, caiu por cima dela. O plástico estalou e quebrou, e o som das risadas foi interrompido.

O pipoqueiro, o jornaleiro e outros vendedores se aproximaram.

Seu bêbado filho da puta!”, disse o vendedor de cedês, dono de Risadinha, enquanto tirava com agressividade o barbudo de cima do seu alto-falante. Empurrado, o barbudo caiu no chão, de lado, e não fez força pra levantar.

Você viu o que você fez, desgraçado!”, gritou o vendedor de cedês.

O barbudo ficou quieto, de cabeça baixa, se ajeitou devagar, permanecendo sentado no chão.

Você destruiu meu alto-falante? Como é que eu vou trabalhar agora? Você destruiu! Destruiu!”, continuou o enfurecido vendedor.

Eu não queria machucar Risadinha, eu não queria machucar risadinha...”, disse o barbudo, balançando a cabeça abaixada e chorando.