quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Catadores

Publicado recentemente no Brasil, A política da mudança climática, de Anthony Giddens, trata da "mudança climática sobretudo como uma questão política e defende que toda decisão deve observar o contexto econômico e geopolítico mundial."

Semana passada, comprei o livro numa livraria do centro do Rio. Ao sair de lá, caminhei em direção ao Terminal Menezes Côrtes, a fim de pegar o ônibus de volta para casa. Eu não havia andado por dez minutos quando deparei com montanhas de papel. Não, não estou exagerando: ao lado do Terminal os catadores se reúnem todas as noites, para coletar o lixo reciclável. O contraste foi enorme: em pouquíssimo tempo eu havia passado do livro de Giddens, um livro novo, papel novo, teoria, a homens catando papéis usados, lixo, realidade. A tese do sociólogo – exposta com estilo – pareceu-me distante demais da vida.


Não estou dizendo que as questões ambientais não devam ser discutidas; pelo contrário: elas precisam, sim, ser trazidas à luz, debatidas; contudo, num lugar em que pessoas catam papéis na rua, até altas horas, sem qualquer proteção, tanto física quanto jurídica (sem luvas, botas e sem vínculo empregatício), o clima se torna algo demasiadamente afastado.

Na verdade, Giddens tornou-se-me distante, na medida em que tenho poucas esperanças quanto à eficácia do debate sobre os problemas ambientais. Vivemos num sistema econômico que necessita de crescimento constante, que se baseia no consumo; logo, os problemas ambientais são apenas conseqüência e não serão resolvidos enquanto não houver uma intervenção nas causas.

Ostentando suas bolsas de pano - última moda entre os "preocupados com o futuro do planeta" - as pessoas falam sobre proteção ambiental, mas trocam de celular, computador, TV, carro, toca-mp3 etc. toda hora, assim que conseguem – mesmo que para tanto tenham que se endividar, o que também faz parte do jogo. Falar de preocupação em relação à natureza enquanto se consome tudo o que pode (e também o que não pode!) é cegueira, ignorância ou hipocrisia.

Os catadores com certeza não são uma ameaça ao equilíbrio ambiental: eles consomem pouco, não possuem veículos poluidores e ainda promovem a reciclagem. Quem são esses homens - esses “consumidores falhos”[1] -, que, como os camelôs, vagam pelas ruas, sem qualquer proteção, coletando os restos, as sobras?

Estamos na era da desregulamentação, da privatização: o Estado, cada vez menor, não se mete no trabalho desses homens. Os lixeiros têm ainda alguma proteção, uma relação de emprego, enquanto os catadores – homens invisíveis que ajudam a reciclar - ficam à margem, embora desempenhem uma função importante.

Em “A queda”, Albert Camus fala sobre a inércia de um homem diante da queda de uma suicida no rio:

“Já havia percorrido uns cinqüenta metros aproximadamente, quando ouvi um ruído que, apesar da distância, me pareceu , no silêncio da noite, de um corpo caindo na água. Parei instintivamente, sem me voltar. Quase ao mesmo tempo, ouvi um grito, repetido várias vezes, que descia também o rio, e que se extinguiu bruscamente.”

Estou cansado de passar por pessoas que se jogam e gritam; nada faço, porém. Há um ano escrevi sobre os camelôs (refrões da cidade e escravos de ganho) e à época meu desejo era escrever sobre outras funções de “homens livres” das grandes cidades. Sou um catador de palavras.

Sobre consumo e lixo, escrevi há algum tempo:

Fungível

Não discuta,
Não reflita!
Pega o que lhe dão
E siga em frente,
Não só porque atrás vem gente,
Mas também porque não se deve parar nunca -
Ainda mais, assim, de repente!

Aceite, ceda,
Não resista ao que se lhe apresenta;
Um pedaço é melhor que nada.
Pegue-o, use-o,
Consuma-o, descarte-o,
Afinal, moramos em Leônia.

E não se preocupe nunca!
Você precisa mesmo descartar este pedaço
Para consumir o outro que virá.
É sempre hora de trocar:
Larga pois o que tem em mãos
E agarra hoje o novo que lhe dão!

Sobre o tema, diz Bauman em "Amor líquido" (p. 11):

"Se lhes perguntassem, os habitantes de Leônia, uma das 'Cidades Invisíveis' de Italo Calvino, diriam que sua paixão é 'desfrutar coisas novas e diferentes'. De fato. A cada manhã eles 'vestem roupas novas em folha, tiram latas fechadas do mais recente modelo de geladeira, ouvindo jingles recém-lançados na estação de rádio mais quente do momento'. Mas a cada manhã 'as sobras da Leônia de ontem aguardam o caminhão de lixo', e cabe indagar se a verdadeira paixão dos leonianos na verdade não seria o 'prazer de expelir, descartar, limpar-se de uma impureza recorrente'. Caso contrário, por que os varredores de rua seriam 'recebidos como anjos', mesmo que sua missão fosse 'cercada de um silêncio respeitoso' (o que é compreensível: 'ninguém quer voltar a pensar em coisas que já foram rejeitadas')?"

No entanto, é isso que tenho feito: ando pelo lixo catando palavras. Eu sou o lixo. Olho, vejo e escrevo, mas nada reparo. [2]

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Notas:

[1] “Uma vez que o critério da pureza é a aptidão de participar do jogo consumista, os deixados de fora como um ‘problema’, como a ‘sujeira’ que precisa ser removida, são consumidores falhos – pessoas que são incapazes de responder aos atrativos do mercado consumidor porque lhes faltam os recursos requeridos, pessoas incapazes de ser ‘indivíduos livres’ conforme o senso de ‘liberdade’ definido em função do poder de escolha do consumidor.” BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. P. 24.

[2] "Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara." SARAMAGO, José. Prólogo de Ensaio sobre a cegueira.

Links para os textos citados:

ecosprosaicos.blogspot.com/2009/08/poderia-ser-ficcao.html


ecosprosaicos.blogspot.com/2009/08/refroes-da-cidade.html