quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Abraços partidos



Assisti recentemente ao último filme do Almodóvar – Abraços Partidos – e o que mais me chamou atenção foram os heterônimos, as personagens criadas pelas personagens.

Li algumas críticas do filme, mas até então não encontrei nenhuma que tratasse dessa duplicação das personagens; as que li tratam basicamente das referências, da metalinguagem e da cinefilia, características sem dúvida marcantes no filme.

Como não pretendo revelar a trama de um filme que ainda está no cinema, limitar-me-ei a advertir sobre essa peculiaridade. A narrativa revela três personagens que se duplicam, tornando-se, assim, seis. O mais óbvio é Harry C., pseudônimo do diretor Mateo; mas há ainda duas outras personagens que se atribuem heterônimos a fim de realizar certas façanhas ou escondê-las.

Os heterônimos, no entanto, surgem, são retomados ou se intensificam numa situação limite: a morte ou risco de morte de alguém próximo. Isso me parece bastante interessante, na medida em que a morte de outra pessoa (ou sua iminência) leva o personagem assumir outro nome, outra identidade.

A estória se desenvolve a partir de uma morte, que faz um heterônimo nascer e outro morrer: um pseudônimo é criado para perscrutar e revelar o passado do morto e outro praticamente se extingue, como se essa morte o tivesse libertado, ao lhe servir de ponto de partida para uma catártica volta ao passado.

Talvez os "abraços partidos" refiram-se mais à relação dos personagens com os seus heterônimos que às relações dos personagens entre si.

Mais não falo, agora. Não quero estragar surpresas.

sábado, 31 de outubro de 2009

Tecnocracia e poesia, segundo Quintana

"Não pretendo que a poesia seja um antídoto para a tecnocracia atual. Mas sim um alívio. Como quem se livra de vez em quando de um sapato apertado e passeia descalço sobre a relva, ficando assim mais próximo da natureza, mais por dentro da vida. Porque as máquinas um dia viram sucata. A poesia, nunca." (Quintana, Mario. A vaca e o Hipogrifo. P. 133)


sábado, 24 de outubro de 2009

Fungível

Fosse Kafka vivo, "A metamorfose" não trataria da transformação de Gregor Samsa num inseto. Gregor, após uma noite de insônia (e não de "sonhos inquietos"), transformar-se-ia numa máquina. Seu pai não sentiria repulsa, mas orgulho e, após refletir um pouco, vendê-lo-ia.


terça-feira, 20 de outubro de 2009

Guichês e roletas: Estado mínimo, lucro máximo

De acordo com o discurso vigente, os empreendimentos públicos devem buscar investimentos na iniciativa privada; desta forma, o Estado deve delegar a empresas a prestação de serviços públicos, reservando para si somente o poder de regulamentar e fiscalizar os serviços.

O principal argumento dos que defendem a redução do papel do Estado é a diminuição dos gastos: a cessão do espaço e/ou prestação do serviço público a empresas alivia os cofres públicos, ou seja, a iniciativa privada paga para assumir a administração da área/serviço - o que evitaria ou, pelo menos, compensaria os gastos públicos.

Mas na realidade não é assim.

Isso porque, quem arca com as despesas é o usuário do serviço, uma vez que a empresa responsável pela gestão cobra tarifas, para cobrir o seu dispêndio e lucrar com a prestação do serviço. Repita-se: compensar seus gastos e LUCRAR com a prestação do serviço.

Não há certeza sobre os gastos e os lucros - e não haverá enquanto inexistir transparência.

Transporte com tarifas baixas não dão lucro e, portanto, não interessam à iniciativa privada, "patrocinadora" - indispensável? - do Poder Público. O transporte público, que deveria ser uma ponte, transforma-se em muro com as tarifas altas.

O responsável pela prestação dos serviços públicos é o Estado; isso está na nossa Constituição, artigo 175. A delegação do serviço à iniciativa privada é uma opção (sim, o Estado pode prestá-lo diretamente), que só se justifica quando tem por finalidade o interesse público. Resumindo: é pra servir - e muito bem - ao cidadão e não pra encher os bolsos de uns poucos.

A tarifa é alta: pagamos muito. Motoristas, trocadores, mecânicos etc. ganham pouco. Parece que só os empresários estão satisfeitos.


sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Muro disfarçado de ponte

Em tempos de segregação, é importante refletir sobre as ações do Estado diante do problema: o Poder Público tem construído pontes ou muros? As edificações públicas promovem a aproximação e a integração ou refletem e reforçam a discriminação? Será que as propaladas “pontes” erigidas pela Administração Pública permitem o trânsito de todos ou possuem barreiras em suas entradas e por isso funcionam, na verdade, como muros?

Parece que as pontes, os meios de ligação, possuem barreiras, as quais se abrem apenas a uma pequena parcela da população. Embora projetados pelo Estado, certos caminhos e meios de transporte públicos são inacessíveis a grande parte da coletividade. A fim de refletir sobre essa questão, analiso uma obra do Município de Niterói: a estação hidroviária de Charitas, projetada por Oscar Niemeyer.

Olhando a construção da calçada, veem-se as embarcações (que levam os passageiros até o centro do Rio em 15 ou 20 minutos) e o mar. Todavia, observando-a da areia, vê-se a enorme favela que se ergue no morro em frente. A pergunta que faço é a seguinte: de que maneira o dinheiro público investido nesse empreendimento beneficiou a integração e não a segregação? Os moradores da favela do Preventório, que abriga grande parte das pessoas que moram no referido bairro, têm acesso à belíssima obra de Niemeyer?



(A Estação vista da calçada)

A resposta é clara: o público da estação hidroviária não mora em favelas. O bilhete hoje custa entre R$ 8,00 e 9,00 - mais de três vezes o valor da barca simples e quase duas vezes o valor da passagem dos ônibus que levam ao mesmo destino. Além da estação, há, no local, lojas cujo público alvo é a classe média e ainda um restaurante de luxo que ocupa o ápice da construção.

Ressalto que não sou contra a criação de novos meios para facilitar o tráfego de pessoas para o Rio; pelo contrário, reconheço a necessidade, tanto por conhecer a crise no trânsito em Niterói quanto pelo fato de que, como grande parte da população de Niterói, trabalho no Rio.

A questão é: por que o Município escolheu gastar dinheiro com esta obra específica e qual a parcela da população de Niterói é beneficiada?

Construir novas estações hidroviárias é importante, na medida em que desafoga o trânsito: as pessoas não precisam ir até o Centro de Niterói para pegar a embarcação até o Rio. Sem dúvida! Mas isso só seria relevante se o número de pessoas que os catamarãs luxuosos levam não fosse irrisório. Nos horários de pico, a barca leva 2000 pessoas e sai a cada 10 minutos. Os catamarãs levam 200 pessoas (10% da capacidade das barcas) e saem a cada 30 minutos. A viagem de uma barca equivale a 10 viagens do catamarã! Será que uma obra assinada por Niemeyer é um investimento proporcional ao ganho que de fato se obteve?

Quanto à segunda pergunta, é óbvio que o público da estação de Charitas é restrito, já que exige um gasto alto. Afinal, quem pode pagar mais que o dobro do que pagam os que vão de ônibus (pela ponte) ou barca (saindo do Centro)? Considerando que o mês possui em média 22 dias úteis (ida e volta) o valor mensal só com o catamarã - sem levar em consideração o preço do ônibus até a estação ou o estacionamento - é de R$ 396,00, ao passo que usando a barca o gasto mensal é de R$ 123,20 (e o preço da barca é caro – R$ 2,80), ou seja, menos de um terço.

Portanto, o que parece uma ponte, é na verdade um muro. Não só por essa barreira, mas também porque o ponto mais alto do prédio tem o acesso praticamente vedado àqueles que não puderem pagar caro por uma refeição. O que poderia ser um mirante, um museu, uma biblioteca pública ou uma praça - lugares acessíveis a todos -, é um restaurante de luxo. A obra é pública (seus gastos foram pagos pelo povo), mas os benefícios são privados, restritos a uma ínfima parcela dos habitantes da cidade. O engarrafamento para chegar ao Centro de Niterói piora a cada dia (já que a falsa solução individualista de comprar carros é na verdade uma das causas do problema) e as barcas populares continuam lotadas. Somente aqueles que podem pagar caro para passar pela roleta se livraram do problema. Uma "ponte" com roletas, guichês e bilhetes caros é um muro.


(O outro lado: o morro do Preventório visto da Estação)

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Muros e pontes



Em vez de pontes, constroem-se muros. Bauman, sociólogo contemporâneo reconhecido pela profunda análise que desenvolve sobre a fluida pós-modernidade, escreve sobre a construção desses muros.

Em “Modernidade Líquida”, ao discorrer sobre “tempo/espaço”, o sociólogo descreve a cidade dos sonhos de G. Hazeldon - arquiteto inglês estabelecido na África do Sul -, a qual seria uma “versão high tech da aldeia medieval que abriga detrás de seus grossos muros, torres, fossos e pontes levadiças uma aldeia protegida dos riscos e perigos do mundo”.

Qualquer semelhança com nossos condomínios não é mera coincidência: trata-se do mesmo fenômeno. Segundo o arquiteto, a principal questão hoje é a segurança; portanto, nada melhor que morar numa fortaleza segregada do mundo violento por “cercas elétricas de alta voltagem, vigilância eletrônica, barreiras e guardas armados por todos os lados;” e dentro da cidade nada faltará: haverá lojas, igrejas, restaurantes teatros, áreas de lazer, florestas, playgrounds etc. e “há espaço livre suficiente para se acrescentar o que quer que a moda de uma vida decente possa demandar no futuro”. É tudo bem simples: comprando uma casa no Heritage Park (nome da cidade de G. Hazeldon) ou em um supercondomínio da Barra, você viverá em paz e será feliz.

Tornar-se proprietário de uma unidade dentro desses oásis de segurança é a suposta solução para o problema. Mas de onde vem realmente a insegurança que sentimos? A solução é mesmo morar numa fortaleza, cujo acesso só é permitido a alguns? Não seria isso a redução do cidadão a mero condômino?

A “paz sem voz não é paz, é medo”. Cidadania diz respeito aos direitos políticos que permitem ao cidadão - habitante da cidade (do latim civitas) - intervir na direção do Estado, a fazer uso da voz, participando de modo direto ou indireto na formação do governo e em sua gestão. A palavra “política” origina-se do grego antigo “politeía”, que tratava dos procedimentos relativos à polis, cidade-estado da Grécia antiga.

Como já alertado por muitos, a propagação do medo - fomentada pelas notícias sobre o perigo em cada esquina - é proporcional ao vertiginoso crescimento da indústria da vigilância. Será que a causa do nosso problema é mesmo a sempre acusada violência? A violência não seria uma conseqüência, um sintoma? Toda a insegurança que sentimos vem da violência?

Ao acreditar que o problema é a insegurança (cujas causas não são analisadas com clareza pela maior parte das pessoas) e, assim, aceitar a “solução” proposta, que consiste em se proteger do mundo segregando-se voluntariamente em um “espaço seguro”, o papel de cidadão é substituído pelo de condômino. Nesse contexto, a resolução do problema, que deveria advir da política (esfera pública) - atentando-se para as verdadeiras causas da insegurança -, passa à esfera individual: basta comprar um espaço seguro. Ao adquirir um apartamento numa fortaleza posso acabar com a MINHA insegurança. (Mas a insegurança não seria NOSSA?). Os condomínios-fortaleza são uma pseudo-solução individual para um problema coletivo.

Reduzir o problema a um de seus sintomas é negar a realidade e, desta forma, obstruir o caminho que deve ser tomado para alcançar uma verdadeira mudança. O discurso de que a violência é a causa de todos os males apenas aprofunda o abismo da segregação e reforça a pseudo-solução individualista. A solução eficaz não pode ser comprada; ela não está à venda no supermercado ou no shopping: a solução está além dos muros e fossos dos condomínios; a solução é construir pontes, tarefa que só pode ser executada por cidadãos.

A primeira foto (acima) decompõe-se em duas imagens, que representam, respectivamente, a segregação voluntária (condomínios de luxo) e segregação compulsória (favela):



Muros e pontes



Em vez de pontes, constroem-se muros. Bauman, sociólogo contemporâneo reconhecido pela profunda análise que desenvolve sobre a fluida pós-modernidade, escreve sobre a construção desses muros.

Em “Modernidade Líquida”, ao discorrer sobre “tempo/espaço”, o sociólogo descreve a cidade dos sonhos de G. Hazeldon - arquiteto inglês estabelecido na África do Sul -, a qual seria uma “versão high tech da aldeia medieval que abriga detrás de seus grossos muros, torres, fossos e pontes levadiças uma aldeia protegida dos riscos e perigos do mundo”.

Qualquer semelhança com nossos condomínios não é mera coincidência: trata-se do mesmo fenômeno. Segundo o arquiteto, a principal questão hoje é a segurança; portanto, nada melhor que morar numa fortaleza segregada do mundo violento por “cercas elétricas de alta voltagem, vigilância eletrônica, barreiras e guardas armados por todos os lados;” e dentro da cidade nada faltará: haverá lojas, igrejas, restaurantes teatros, áreas de lazer, florestas, playgrounds etc. e “há espaço livre suficiente para se acrescentar o que quer que a moda de uma vida decente possa demandar no futuro”. É tudo bem simples: comprando uma casa no Heritage Park (nome da cidade de G. Hazeldon) ou em um supercondomínio da Barra, você viverá em paz e será feliz.

Tornar-se proprietário de uma unidade dentro desses oásis de segurança é a suposta solução para o problema. Mas de onde vem realmente a insegurança que sentimos? A solução é mesmo morar numa fortaleza, cujo acesso só é permitido a alguns? Não seria isso a redução do cidadão a mero condômino?

A “paz sem voz não é paz, é medo”. Cidadania diz respeito aos direitos políticos que permitem ao cidadão - habitante da cidade (do latim civitas) - intervir na direção do Estado, a fazer uso da voz, participando de modo direto ou indireto na formação do governo e em sua gestão. A palavra “política” origina-se do grego antigo “politeía”, que tratava dos procedimentos relativos à polis, cidade-estado da Grécia antiga.

Como já alertado por muitos, a propagação do medo - fomentada pelas notícias sobre o perigo em cada esquina - é proporcional ao vertiginoso crescimento da indústria da vigilância. Será que a causa do nosso problema é mesmo a sempre acusada violência? A violência não seria uma conseqüência, um sintoma? Toda a insegurança que sentimos vem da violência?

Ao acreditar que o problema é a insegurança (cujas causas não são analisadas com clareza pela maior parte das pessoas) e, assim, aceitar a “solução” proposta, que consiste em se proteger do mundo segregando-se voluntariamente em um “espaço seguro”, o papel de cidadão é substituído pelo de condômino. Nesse contexto, a resolução do problema, que deveria advir da política (esfera pública) - atentando-se para as verdadeiras causas da insegurança -, passa à esfera individual: basta comprar um espaço seguro. Ao adquirir um apartamento numa fortaleza posso acabar com a MINHA insegurança. (Mas a insegurança não seria NOSSA?). Os condomínios-fortaleza são uma pseudo-solução individual para um problema coletivo.

Reduzir o problema a um de seus sintomas é negar a realidade e, desta forma, obstruir o caminho que deve ser tomado para alcançar uma verdadeira mudança. O discurso de que a violência é a causa de todos os males apenas aprofunda o abismo da segregação e reforça a pseudo-solução individualista. A solução eficaz não pode ser comprada; ela não está à venda no supermercado ou no shopping: a solução está além dos muros e fossos dos condomínios; a solução é construir pontes, tarefa que só pode ser executada por cidadãos.

A primeira foto (acima) decompõe-se em duas imagens, que representam, respectivamente, a segregação voluntária (condomínios de luxo) e segregação compulsória (favela):



sexta-feira, 11 de setembro de 2009

11 de setembro

11/09 é de fato uma data marcante.

Principalmente para os chilenos. Hoje, 11/09/2009, faz 36 anos que os EUA derrubaram Salvador Allende, promovendo a ditadura de Pinochet, que matou muito mais pessoas inocentes que o atentado de 2001. Um erro não justifica o outro; mas não devemos menosprezar os danos causados pelo terrorismo de Estado que os EUA promoveram na América Latina.

Não foi um ato isolado como o sequestro dos aviões, mas uma ditadura que durou décadas e matou e torturou os cidadãos de um Estado que até então era democrático.

Porém o 11/09/1973 foi esquecido. O terrorismo de Estado (v. Chomsky) parece não ter o mesmo efeito que o terrorismo perpetrado por grupos e pessoas.

Hoje os EUA, na posição de "vítimas" do terrorismo, justificam a invasão de outros Estados, que julgam fracassados, autoritários; o discurso que os "legitima" é a "promoção da democracia".

Lembremos que hoje faz 36 anos que os atuais "promotores mundiais da democracia" derrubaram Salvador Allende, implantando a ditadura e causando a morte de inocentes.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Chuva de imagens

Italo Calvino começa sua conferência sobre a visibilidade citando um verso de Dante no “Purgatório” (XVII, 25): “Chove dentro da alta fantasia”.* Neste trecho de “A divina comédia”, a personagem percorre o círculo dos coléricos, onde “contempla imagens que se formam diretamente em seu espírito, e que representam exemplos clássicos e bíblicos de punição da ira; Dante compreende que essas imagens chovem do céu, ou seja, que Deus as envia.”

E, no começo do Canto XVII - antes da projeção direta de imagens em sua mente -, Dante descreve a cegueira causada por uma “névoa densa”, a qual teve que atravessar:

“Se alguma vez, leitor, em alguma alpina cordilheira foste surpreendido por névoa densa, através da qual não podias enxergar, igualados que ficaram teus olhos aos da toupeira, recorde-te de que ao principiar a descerrar-se a cortina úmida e espessa iam-se infiltrando débeis raios de sol.”

Esta cegueira causada pela névoa espessa - e a ansiedade de atravessá-la - seguida pela projeção de imagens assemelha-se muito ao que sinto quando vou ao cinema: a escuridão que antecede a projeção do filme é como a névoa densa, e a luz que me liberta desta cortina é a que revela as imagens na tela.

As cenas projetadas são como os pensamentos, os sonhos; o cinema tem essa capacidade de apresentar sequências de imagens e de manipular o tempo, tal qual fazemos ao imaginarmos. Quando lembramos de algo, fantasiamos sobre um desejo ou pensamos sobre uma estória, projetam-se cenas em nossa mente. Geralmente controlamos nossos pensamentos e escolhemos por onde seguiremos. Algumas vezes, no entanto, enveredamos por caminhos que não são tão agradáveis de percorrer, mas mesmo assim seguimos, apesar do mal estar que certas cenas (que existiram de fato ou que criamos) nos causam; não é sempre que conseguimos dirigir nossos filmes internos.

Embora seja óbvio, vale a pena ressaltar que as palavras “imaginação” e “imagem” pertencem à mesma família etimológica; ou seja, a língua não ignora que fantasiamos por meio de imagens.

Quando lemos ou assistimos a um filme, aderimos à seqüência de imagens sugerida por outrem. Ao ler um romance, as palavras despertam imagens dentro de nós, a tela onde se projeta a estória é interna. Essa relação entre as imagens e as palavras é muito interessante, pois o escritor, ao descrever um fato, transforma sua representação interna em palavras, e o leitor, ao se deparar com as descrições, transforma aquelas palavras em imagens dentro de si.

O cinema, por sua vez, parte da imagem; portanto, assistir a um filme parece ser o que mais se aproxima da experiência de vislumbrar um sonho alheio. Chovem imagens na tela e as nuvens das quais elas caem são formadas pela imaginação do cineasta, que escolheu como criar as cenas; as câmeras as condensam e o projetor as precipita. A chuva de cenas irriga nossos pensamentos, desperta emoções, traz lembranças, nos leva a refletir sobre a estória, a nos identificar etc.

Ir ao cinema pode ser tão catártico como tomar um banho de chuva no verão. Quem já passou uma tarde de fevereiro brincando ao ar livre, sob o sol escaldante e, no fim da tarde, suado, foi surpreendido por uma torrencial chuva de verão, cujos primeiros pingos parecem evaporar antes mesmo de tocar o chão - você se lembra do cheiro desse vapor? -, sabe do que estou falando.

Para mim, a música que melhor representa o fascínio que o cinema pode causar é “Cinema Olympia” (Caetano), na versão de Elis, ao vivo.

Não há por que me estender em comentários sobre a letra; basta-me salientar a ligação da música com a letra: Elis começa cantando lentamente sobre as tardes sem cinema, normais e em seguida vai acelerando. Na estrofe seguinte canta sobre o que quer a fim de fugir do marasmo, e no refrão chega ao êxtase ao falar do lugar onde encontrará “gargalhada geral do meio dia até o anoitecer”. A interpretação de Elis é tão incrível que torna minhas análises sobre “Cinema Olympia” inúteis. Para sentir o deslumbramento cantado por Elis, só há uma forma: ir ao cinema e se deixar encharcar pelas imagens que chovem na tela.

Nota

* CALVINO, Italo. Seis Propostas para o próximo milênio. Tradução: Ivo Barroso. 3ª edição, São Paulo: Companhia das Letras, 2002. Pág. 97.


sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Mortalha do amor

Depois de escrever sobre a solidão (Dança de Eleanor) e a paixão (“O meu pensamento tem a cor do seu vestido”), a saudade se impôs como terceiro elemento desta trilogia não planejada.

A paixão e a solidão poderiam ser tratadas como opostos: a paixão como queda - ainda que ilusória - das barreiras da separação. Mas esta definição seria superficial, na medida em que a solidão pode surgir como uma ilha dentro do mar revolto da paixão: ao sentirmos o afastamento, ainda que breve, do objeto do desejo, toda intensidade da paixão se converte na constatação da sua incapacidade de promover a almejada, embora nunca realizável, fusão; neste momento, a lava da solidão nos envolve e, dentro desta prisão, é comum pensarmos no passado, lembrando com saudade do que vivemos.

A saudade é, portanto, esta visita do passado ao presente; é a invasão de pensamentos e sentimentos gerados por fatos pretéritos, mas que ainda ecoam dentro de nós. E a distância potencializa tais sentimentos: a saudade não decorre somente das lembranças e emoções associadas ao passado mas também da fantasia que criamos sobre essas recordações.

A saudade não é como uma foto,* um registro fiel, objetivo, do que vivemos ontem; ela é como uma pintura: ao nos lembrarmos, pintamos a cena de acordo com as emoções que sentimos hoje e que sentimos - ou imaginamos ter sentido - quando a vivemos; daí o caráter subjetivo da construção das lembranças. Desta forma, muitas vezes supervalorizamos fatos que não foram tão significativos enquanto aconteciam, o que nos faz de certo modo negar o presente; em suma, freqüentemente o passado – ou melhor, a tela das memórias transformada pelo tempo e pela saudade - se sobrepõe ao presente.

Fernando Pessoa expressa perfeitamente esta valorização do passado “só porque foi”:

"Eu amo tudo o que foi
Tudo o que já não é
A dor que já não me dói
A antiga e errônea fé
O ontem que a dor deixou
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou
E hoje é já outro dia."

E é quase impossível (“quase” é eufemismo: para mim é impossível mesmo) não se deixar levar por este apego ao que se foi, bem como evitar a ansiedade que nos causa o porvir. Não é à toa que as religiões e alguns filósofos se dedicam ao tema: trata-se de algo inerente ao ser humano, que lhe causa sofrimento e ao mesmo tempo o distingue dos outros animais.

O cristianismo, tal qual o budismo, parece invalidar os pensamentos e sentimentos associados ao passado e ao futuro. No “sermão da montanha”, propõe Jesus, como exemplo de integração ao presente, o modo de viver dos seres irracionais: “Olhai as aves do céu, que nem semeiam, nem segam, nem ajuntam em celeiros; e vosso Pai celestial as alimenta”. [1]

Todavia a liberdade do homem reside justamente nesta capacidade de autonomia em relação à natureza: “o animal e a natureza são um só. O homem e a natureza são dois”, ou seja, o homem é por excelência um ser antinatural; e aí se encontra sua liberdade, que lhe permite inclusive praticar excessos contra si mesmo.

Explico-me: os animais são determinados pela natureza, são condicionados por seus instintos, não podem se aperfeiçoar à medida que crescem, são perfeitos (prontos) desde o início. [2] Nós homens, não: podemos nos aperfeiçoar ao longo da vida, não estamos condicionados a sermos um só com a natureza.

Com efeito, os animais, segundo Schopenhauer, “são o presente corporificado”, na medida em que a consciência deles é limitada ao presente (instinto), “ao passo que a consciência humana tem um campo de visibilidade que abarca a totalidade da vida, e mesmo a ultrapassa” (metafísica). [3]

Destarte, rejeitar a saudade, bem como os sofrimentos decorrentes do apego e da ansiedade em relação ao futuro, é recusar um potencial humano. As lembranças, sob a perspectiva coletiva, permitem a formação da cultura, assim como a noção do futuro permite que haja planejamento. Se nos vincularmos apenas ao agora, nos afastaremos do conhecimento desenvolvido pelas experiências dos nossos ancestrais e também não conseguiremos levar a cabo grandes empreendimentos, pois evitaremos os projetos, imprescindíveis às grandes realizações.

Sem a saudade, não existiria a Odisséia. Nostalgia significa sofrimento causado pelo retorno (em grego, nóstos é retorno e álgos, dor). Como escreveu Kundera em A ignorância, Odisseu, um dos maiores aventureiros de todos os tempos, foi também o maior nostálgico. Talvez Kundera tenha invertido a ordem: porque era um grande nostálgico, Odisseu foi um incrível aventureiro.

No entanto, lembrar do passado não significa sentir saudade. Pode-se recordar sem sofrer, sem cotejar o ontem com o hoje. Tão-somente lembrar; observar uma foto e não pintar um quadro, ou seja, ter uma visão objetiva do ontem. Mas será isso possível? A memória objetiva, sem emoções, é viável? Em se tratando das relações interpessoais acredito que não; e, para ser sincero, prefiro ser um pintor que sofre a um mero observador de retratos.

Portanto, viva a saudade! Viva o apego! Viva o sofrimento! Não negarei minhas emoções, elas me fazem “humano, demasiadamente humano”. O desejo da ausência de sofrimento é uma forma de fugir da vida. Portanto, viva o Ego! Não quero ser uma partícula do cosmos nem ser um com Deus (embora o cristianismo ofereça a tentadora promessa de carregarmos o ego e as pessoas que amamos para o além, para a eternidade). Quero ser Eu! Por mais insignificante, doloroso e efêmero que isso seja perto das promessas de unidade e eternidade que oferecem as religiões e filósofos otimistas.

Não há dúvida de que a saudade é uma fuga - ainda que involuntária - do presente e que a distância do tempo transforma fatos triviais em lembranças extraordinárias. Porém, como já afirmei, este quadro é tão belo quanto a vida e por isso não deve ser evitado; a saudade é como a arte – a comparação com a pintura não é vã.

“E por falar em saudade”, a música “Pedaço de mim”, de Chico Buarque, é visceral.

"Pedaço de Mim

Oh, pedaço de mim
Oh, metade afastada de mim
Leva o teu olhar
Que a saudade é o pior tormento
É pior do que o esquecimento
É pior do que se entrevar

Oh, pedaço de mim
Oh, metade exilada de mim
Leva os teus sinais
Que a saudade dói como um barco
Que aos poucos descreve um arco
E evita atracar no cais

Oh, pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu

Oh, pedaço de mim
Oh, metade amputada de mim
Leva o que há de ti
Que a saudade dói latejada
É assim como uma fisgada
No membro que já perdi

Oh, pedaço de mim
Oh, metade adorada de mim
Lava os olhos meus
Que a saudade é o pior castigo
E eu não quero levar comigo
A mortalha do amor
Adeus"

Nesta canção da saudade, percebe-se o uso da anáfora, que consiste na repetição de um grupo de palavras no princípio de frases ou versos consecutivos. Assim, o verso “Oh, pedaço de mim” e o verso subseqüente, o qual sempre se inicia com “oh, metade...”, possuem a função de vocativo, ou seja, designam a quem o Eu-lírico fala.

Desta forma, em “Pedaço de mim”, o Eu-lírico implora ao objeto da saudade – “oh, pedaço de mim" - que vá embora, e o faz explicando em cada estrofe o que é a saudade e o quanto ela dói. É interessante ressaltar que as lembranças são partes do Eu (partes arrancadas dele); não são o outro, mas, sim, fragmentos do Eu, mutilados e exilados pelo tempo. Nesse contexto, esta poesia é na verdade um monólogo (considerando o Eu-lírico como um só ser) entre uma parte do Eu que deseja esquecer a fim de parar de sofrer e a outra, que insiste em recordar o amor e fomentar a saudade; ou seja, uma conversa entre razão e emoção.

Racionalmente, quem sofre de saudade clama pelo esquecimento: é melhor não se lembrar do que sonhar com algo que inexoravelmente não existe mais. Por isso, no terceiro verso de todas as estrofes (exceto a última), o Eu-lírico roga que a causa da saudade (o pedaço emotivo dele) leve embora seus sinais, seu olhar, seu vulto, tudo o que possa provocar mais saudade; e, na última estrofe, exige que o objeto do desejo lave os seus olhos tristes, que não conseguem parar de admirar a tela das lembranças.

Seria perda de tempo comentar as definições de saudade de cada estrofe; basta ler, ouvir e sentir; desejo, no entanto, escrever sobre a comparação da saudade com um barco, o qual descreve um arco e evita atracar no cais. O barco é a imagem que temos do passado, o tempo é a distância que há entre nós, que estamos no cais (presente), e o barco que a cada dia está mais longe. E mesmo quando o barco sumir no horizonte (porque este é o seu destino - ele nunca voltará ao cais), seremos capazes de imaginá-lo e pintá-lo no quadro da saudade, com as cores e as emoções que surgirem ao tocarmos a tela do ontem com as tintas de hoje.

A saudade é prova de que o amor existiu. Pois tudo que há é finito. A saudade é o enterro de uma paixão. A saudade é a mortalha do amor.

Notas

* A foto também não é um registro objetivo. Uso a comparação, mas na verdade a fotografia é subjetiva, não objetiva.

[1] Novo Testamento. Mateus, 5:7. “Olhai as aves do céu, que nem semeiam, nem segam, nem ajuntam em celeiros; e vosso Pai celestial as alimenta. Não tendes vós muito mais valor que elas? (...) E quanto às vestes, por que andais solícitos? Olhai para os lírios do campo, como eles crescem: não trabalham nem fiam (...) Não andeis pois inquietos, dizendo: Que comeremos ou que beberemos ou com que nos vestiremos?”

[2] ROSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os homens. In: Rosseau. Os pensadores. Tradução de Lourdes Santos Machado. São Paulo. Nova Cultural, 2000.

[3] SCHOPENHAUER, Arthur. Da morte; Metafísica do Amor; Do Sofrimento do Mundo. São Paulo. Martin Claret, 2008.


sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Refrões da cidade

Menino das Laranjas
(Théo de Barros)

"Menino que vai pra feira
Vender sua laranja até se acabar
Filho de mãe solteira
Cuja ignorância tem que sustentar

É madrugada, vai sentindo frio
Porque se o cesto não voltar vazio
A mãe já arranja um outro pra laranja
Esse filho vai ter que apanhar

Compra laranja, laranja, laranja, doutor
Ainda dou uma de quebra pro senhor!

Lá, no morro, a gente acorda cedo
E é só trabalhar
E comida é pouca e muita roupa
Que a cidade manda pra lavar

De madrugada, ele, menino, acorda cedo
Tentando encontrar
Um pouco pra poder viver até crescer
E a vida melhorar

Compra laranja, laranja, laranja, doutor
Ainda dou uma de quebra pro senhor..."

Até então, eu partia da música para o ensaio, ou seja, diante do que sentia ao ouvir a música, eu escrevia. Desta vez, no entanto, foi diferente: ao presenciar o vendedor de sombrinhas da Praça XV seguir sem proteção sob a chuva, surgiu a idéia de escrever a crônica e a partir daí me lembrei das músicas que abordam o tema.

A letra de “Menino das laranjas” é interessantíssima. De fato, a feira é um reduto dos vendedores ambulantes, um espaço livre para eles, tal como as praias. Nestes dois ambientes, a liberdade de atuação dos camelôs é maior, apesar de o Estado regular a atividade.

Na praia, os vendedores de picolé, sanduíches e bebidas são muito bem recebidos; acredito que assim seja em virtude do interesse dos freqüentadores, que querem ser servidos à beira d’água. Na feira, além dos meninos que vendem frutas, há ainda os carregadores, com seus carrinhos de rolimã. Quando criança ia sempre à feira aos sábados e lembro do barulho dos carros de rodinhas metálicas e das brincadeiras dos meninos carregadores, seus refrões e as corridas que às vezes apostavam entre eles. Havia o trabalho, a obrigação de levar as compras alheias, mas eles não deixavam de brincar, de ser crianças, era - apesar de tudo - lúdico o modo como empurravam seus carrinhos, oferecendo seus serviços.

O fato de a versão de Elis começar com o refrão deve ser ressaltada, pois é esta repetição que o camelô usa para chamar a atenção do público para seu produto - e frequentemente são musicais e bastante criativos estes jingles das ruas.
O segundo verso da primeira estrofe, “Vender sua laranja até se acabar” dá azo a duas interpretações: o menino que se acaba ou as laranjas que se acabam; penso que os dois se acabam, na verdade; mas não sei quem fenece primeiro: será a criança ou o produto?

Quanto aos dois últimos versos da primeira estrofe, “Filho de mãe solteira / Cuja ignorância tem que sustentar”, tenho algumas considerações a fazer. O filho, a meu ver, sustenta a ignorância que nós - Estado, sociedade - criamos, na medida em que não oferecemos educação a boa parte da população.

A estrofe seguinte trata da angústia da criança, que só pode voltar quando o cesto estiver vazio, caso contrário ele será substituído por outro filho e ainda castigado. Será que conseguimos nos imaginar, aos 8 ou 9 anos, saindo de casa bem cedo com um cesto de laranjas nas mãos, sem hora pra retornar; ou melhor, só podendo voltar quando o produto acabar, seja lá quando isto acontecer?

A intenção do texto é proporcionar esta identificação, é uma tentativa de preencher estes homens, pois de fato é como se eles fossem vazios da substância que os faz humanos e que permite a identificação das pessoas que ignoram sua realidade. Quem é ignorante, então: a mãe solteira desta criança ou todos os que passam por eles e não percebem que ali há um homem como qualquer outro?

E lá vão eles, bradando seus refrões:

“Compra laranja, laranja, laranja, doutor
Ainda dou uma de quebra pro senhor!”

Para mim, estes refrões, cantados pelos vendedores ambulantes, são a trilha sonora real das grandes cidades, principalmente nos centros. Nós os ignoramos, mas eles estão lá, quase como máquinas, a repetir, intermitentemente, seus jingles:
Chocolate é um! Sombrinha é 5! Familhão é 10! Doce é 2! Olhai, DVD com filme que tá no cinema ainda! Bala, olha a bala!

As pessoas seguem quase sempre; alguns param e compram algo, se lhes interessa o que é ofertado nas calçadas. No entanto, insisto: não são homens que estão ali de pé vendendo na rua: são máquinas, nas quais pode-se depositar o dinheiro e pegar o produto.

Nos ônibus, também transitam camelôs, os quais - com seus ganchos cheios de sacos de balas, que se adaptam às barras internas - proferem seus refrões mais que decorados, totalmente automáticos, e oferecem sua mercadoria.
E os ambulantes não pedem esmolas: eles oferecem bens - não pedem dinheiro sem nada em troca. Sobre os pedidos nos ônibus, “O Rappa” transformou em música um refrão da cidade:

“Senhoras e senhores estamos aqui
Pedindo uma ajuda por necessidade
Pois tenho irmão doente em casa
Qualquer trocadinho é bem recebido
Vou agradecendo antes de mais nada
Aqueles que não puderem contribuir
Deixamos também o nosso muito obrigado
Pela boa vontade e atenção dispensada”

Temo que as músicas sobre tais temas sejam ouvidas como mero entretenimento e não como críticas severas a uma realidade absurda. Porque a ignorância é tanta que é capaz de dançarmos “empolgados” ao ouvir estes tristes refrões, os quais, em vez de incitar a reflexão, podem banalizar os jingles das ruas.

Voltando a “menino das laranjas”:

“Lá, no morro, a gente acorda cedo
E é só trabalhar
E a comida é pouca e muita roupa
Que a cidade manda pra lavar

Esta estrofe é crucial: inicialmente, pela divisão entre morro e cidade, mas também pela denúncia que faz ao colocar que a comida é pouca e há muita roupa pra lavar. Esta divisão (cidade/morro), segundo Bauman, em “Amor Líquido”, é um fenômeno mundial: as elites protegem-se em seus condomínios hiper-seguros e vivem suas vidas virtuais - segregação voluntária – e os demais se acumulam nas áreas físicas que lhes restam. Sobre São Paulo, o sociólogo afirma que “uma nova estética da segurança modela todos os tipos de construção e impõe uma nova lógica de vigilância e distância”.

Os versos “A comida é pouca e muita roupa / Que a cidade manda pra lavar” demonstram que há muito trabalho e poucas condições e oportunidade para os moradores do morro - e eles se inserem - se é que se pode se chamar isto de inclusão - na medida em que servem aos moradores da cidade. Esta dicotomia morro/cidade foi banalizada e parece que não enxergamos o absurdo que ela contém.

Os termos falam por si: cidadão, etimologicamente, significa o habitante da cidade (a civitas romana ou polis grega), ressaltando-se que o conceito de cidadania sempre esteve “atrelado à noção de direitos, especialmente os direitos políticos, que permitem ao indivíduo intervir na direção dos negócios públicos do Estado”.
Sobre esta dicotomia, os Racionais MC´s cantam, em primeira pessoa, a segregação e o dilema em que vive o jovem da periferia de São Paulo (que por sinal foi a cidade que Bauman utilizou em “Amor Líquido”, ao falar das barreiras que são erigidos para “proteger” a elite)[1]:

“Se eu fosse aquele cara que se humilha no sinal
Por menos de um real, minha chance era pouca
Mas se eu fosse aquele moleque de toca
Que engatilha e enfia o cano dentro da sua boca
De quebrada, sem roupa você e sua mina,
Um dois nem me viu já sumi na neblina
Mas não! Permaneço vivo, prossigo a mística
Vinte e sete anos contrariando a estatística
Seu comercial de tv não me engana
Eu não preciso de status nem fama”
(Racionais MC´s – Capítulo 4, versículo 3)

Neste contexto, quem é, então, o favelado? Seria aquele que serve à cidade mas a ela não pertence? Seria um cidadão ou seria uma espécie de “estrangeiro”, “refugiado” apesar de nacional?

Afinal, ele é do morro, não habita a cidade (polis) - ele transita por ela, se encaixa como peça onde há algum espaço (ainda que irregular), porém não é beneficiário da pavimentação, da proteção (polícias) etc. e não consegue influenciar nos rumos do Estado (carência de poderes políticos).

Na verdade, pode-se entender que as instituições estatais, em sua maioria, prestam-se a colocar o favelado de volta ao seu espaço e não inseri-lo; um exemplo recente é a construção de muros ao redor de algumas favelas do Rio. Não obstante a segregação dos condomínios, o Estado se propôs a usar dinheiro público para criar barreiras físicas às comunidades discriminadas.

Não seria mais lógico, como sugere Bauman, construir “pontes” em vez de “muros”, a fim de aproximar a favela da cidade e não tornar ainda mais grave a separação que já existe? O investimento em educação de qualidade e a criação de meios para que os habitantes da favela possam residir no asfalto (termo usado para designar a cidade) são algumas das “pontes” que deveriam ser construídas no lugar das barreiras.

Outro exemplo de instituição estatal que serve para reprimir é a guarda municipal, cuja função é apreender as mercadorias dos vendedores ambulantes e persegui-los pelas ruas e calçadas irregularmente ocupadas. Os guardas são servidores da cidade, do asfalto, e devem por isso zelar pela correta utilização do espaço público.

Ora, quem tem dinheiro pode comprar uma loja e colocar seus produtos à venda, ou seja, com recursos adquire-se um espaço privado e com ele há liberdade para fazer o que quiser. No entanto, como ficam aqueles que não tem dinheiro para comprar um “espaço privado”, aqueles que desconhecem o título de propriedade? A estes, que só conhecem a posse (não a segurança da propriedade), resta ocupar o espaço público, que é, em última instância, o único ao qual eles têm acesso - mesmo assim transitório, pois ninguém pode se estabelecer definitivamente no espaço que é de “todos”.

Daí se constata que ele é ambulante justamente porque tem que transitar no espaço, não tem os meios e recursos de se estabelecer: nós exigimos que ele seja nômade e o refutamos por isso! Mandamos que prossiga sempre, tal qual o agente 64 de “Crainquebille” [2], que prende o camelô que se recusa a seguir em frente.

E o movimento dos ambulantes não se restringe às suas vidas nos centros urbanos. Com efeito, a maioria dos moradores das favelas não é daqui; eles vêm do campo, são os retirantes que, instados pela fome, vêm tentar a vida nas cidades. Ou seja, essas pessoas são condenadas a se moverem sempre. Não é só o guarda que os faz seguir. É bem pior: a falta de oportunidades os obriga a migrar e a ausência de recursos os condena a se encaixar onde há espaço, ainda que informal, irregular, ilícito.

Será que os produtos realmente flutuam, sozinhos, pelas ruas ou já começamos a ver as máquinas (ou seriam sombras) que os carregam?

Notas:

[1] BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido. “Sobre a dificuldade de amar o próximo”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 2004. V. p. 130 e seguintes.

[2] FRANCE, Anatole. A Justiça dos Homens. Tradução de João Guilherme Linke. São Paulo: Ed. Difel, 1986.



sábado, 1 de agosto de 2009

"Escravos de ganho"

Poderia ser ficção. Mas não é. Rio de Janeiro, Praça XV, segunda-feira, 24 de agosto de 2009, 18 h; sob chuva torrencial, um camelô vende guarda-chuvas sem parar, cantando seu refrão: “Sombrinha é 5, familhão, 10!”. Na verdade, há vários vendedores ambulantes trabalhando ali e os refrões se confundem, se imbricam, e o canto parece não ter fim: “Sombrinha-familhão-5-10-guarda-chuva-olhaí-barato-vai-chover-mais-pode-pegar-tacabando-aproveita...”

O ritual da venda assemelha-se a uma espécie de dança da chuva. No entanto, eles não cantam para atrair a chuva, mas para mantê-la e se as gotas param de cair, eles ameaçam e invocam: “vai chover, olhaí, vai cair um pé d’água, melhor comprar comigo logo”. E o mais incrível é o caráter mágico da aparição dos vendedores de sobrinhas: quando a primeira gota cai, eles surgem não se sabe de onde e lotam as ruas, esquinas, becos e calçadas da cidade.

Há os que trocam de produto para atender a demanda: se faz sol, eles vendem balas; se chove, guarda-chuvas brotam - como cogumelos - de suas mãos. Eles já estão ali, atentos para oferecer o produto que os clientes demandarem.

Mas voltemos ao protagonista, o camelô da Praça XV do primeiro parágrafo: ele vende compulsivamente e por isso não usa guarda-chuva; afinal, suas mãos estão ocupadas em pegar o dinheiro e entregar a mercadoria. Observo-o de longe. Em cinco ou dez minutos seus guarda-chuvas acabam; ele sorri, ajeita os bolsos e segue, sob a chuva forte, sem qualquer proteção. Ele vende sombrinhas, mas não possui uma sequer para voltar pra casa ou para o ponto onde pegará mais guarda-chuvas para continuar vendendo.

O camelô é “antes de tudo um forte”. É um homem que sai de casa e trabalha nas ruas, a pé, sem a proteção de um escritório, de uma instituição, de uma pessoa jurídica - e ainda sofre (e muito!) com a repressão. Para o Estado, ele é um ocupante irregular do espaço público, um vendedor de mercadorias de origem e qualidade duvidosas e, principalmente, uma espécie de "loja" ambulante e informal que não rende tributos aos cofres públicos.

Não sei se estou correto, mas penso que os camelôs de hoje descendem dos “escravos de ganho” de outrora. Pra quem não sabe, esta categoria de negro escravizado realizava tarefas remuneradas - geralmente a venda de guloseimas e a realização de pequenos reparos pelas ruas do Centro -, no período colonial e no Império, entregando ao seu proprietário uma quota diária do pagamento recebido. Era comum os “escravos de ganho” conseguirem acumular pouco a pouco o dinheiro que ganhavam e, depois de algum tempo, comprar a própria liberdade. Podem-se incluir também entre os “escravos de ganho” as negras que se prostituíam para pagar a cota diária aos seus senhores brancos - o sexo também era uma das mercadoria oferecidas neste contexto.

Apesar de todo discurso de incentivo aos empreendedores que o sistema no qual vivemos profere, os vendedores ambulantes são perseguidos pelo Estado. Ora, o capitalismo ostenta a figura do self-made man como o ápice: há, segundo tal discurso, um mundo de oportunidades e se você trabalhar, inovar, empreender, colherá os frutos do seu suor, com base na propalada “meritocracia”.

Desta forma, o camelô, o homem que vai às ruas para vender seus produtos - e assim age porque não encontra espaço no mercado formal (cadê o mundo de oportunidades?) -, não deveria sofrer repressão do Estado, mas incentivo, na medida em que ele tenta conceder a si mesmo o que o próprio Estado e o mercado não lhe oferecem.

E o Estado, conforme o discurso (neo)liberalista, não deve intervir o mínimo? Se o mercado abre espaço para os camelôs, não deve haver repressão estatal à atividade - “laisse faire...”, deixem que vendam e prosperem, as leis do mercado são perfeitas, não é mesmo?!

Vender balas, livros velhos, guarda-chuvas, LPs, CDs, DVDs, eletrônicos asiáticos etc. é uma opção - ou falta de opção, melhor dizendo - para estes homens que vivem em comunidades segregadas (“segregação compulsória”), onde transitam traficantes armados e jovens provenientes dos condomínios (castelos seguros - "segregação voluntária")[1], que os procuram para comprar drogas (ou seria Soma?).[2]

O refrão “eu podia estar matando, eu podia estar roubando, eu podia estar vendendo drogas” é real, apesar de parecer um canto distante, ilusório. O pior é que de fato as principais opções são estas. Mas eles também podem ser catadores de papel ou latas de alumínio ou serem músicos, poetas, pintores, dançarinos - artistas em geral - ou servidores públicos, empregadas domésticas, professores, advogados etc. Porém, quantos médicos, advogados ou engenheiros que nasceram e cresceram numa favela você conhece? E quantos jovens brancos de classe média você já viu trabalhando como camelôs?

A verdade é que vendedores ambulantes existem em toda parte; trata-se de mais um “problema global” para o qual se buscam apenas soluções locais. Por que estas pessoas vão para rua com um tabuleiro nas mãos para vender coisas? Parece-me que elas sobraram: o mercado as acolhe (porque as pessoas apesar de reclamarem da ocupação do espaço público continuam comprando suas “duvidosas” mas baratas mercadorias), sob o nome de “irregulares”, “informais”, “marginais”; é um acolhimento discriminatório, semelhante ao que se confere às drogas ilícitas e à prostituição, que são produtos consumidos com avidez, embora de forma silenciosa.

Quem pensa que o “problema” (ou seria uma solução?) é atual e restrito ao solo nacional engana-se. Anatole France escreveu um belíssimo conto sobre “Jérône Crainquebille”, um vendedor ambulante francês, que, por não obedecer imediatamente a um guarda municipal, o qual o mandava prosseguir com sua carrocinha de legumes (a eterna questão do espaço público nas grandes cidades), acaba preso cautelarmente, a princípio; e, julgado - com ampla defesa e contraditório (vejam como é justo o Judiciário!) -, termina condenado, por uma frase que não proferiu. O conto deve ser lido, não o recontarei aqui, apesar de ser esta a minha vontade. Um trecho precisa ser citado, no entanto:

A justiça é administração da força, (...) Desarmar os fortes e armar os fracos seria mudar a ordem social que eu [juiz] tenho que preservar. A justiça é a sanção das injustiças estabelecidas”.[3]

Escrevi há algum tempo um pequeno texto chamado “nadando na fumaça”:

"Muitas semelhanças há entre os meninos que circulam entre a fumaça, nos sinais de trânsito das grandes cidades do Brasil, e os garotos que nadam ao redor de navios no Caribe.

Os pequenos do Caribe acompanham, nadando, a chegada e a saída de transatlânticos aos portos de suas cidades. Os turistas, dos luxuosos balcões, jogam-lhes moedas, e os meninos mergulham bem fundo para alcançá-las. O tempo para ganhar os centavos é o do mergulho - perdura enquanto os pequenos e cansados pulmões suportam.

Aqui, o sinal é o cronômetro que determina a ocasião para se ganhar a esmola: a luz vermelha permite o trabalho e a verde manda os garotos à calçada. Os carros seguem, deixando-lhes trocados e fumaça. Então, esperam os meninos, ansiosos, que o sinal escarlate lhes ilumine, uma vez mais, o palco do asfalto: não são cortinas que se abrem, mas janelas de carros, e os espectadores têm pressa. Não há tempo para o desumano espetáculo da miséria."

Mas tudo isso parece mera ilusão. Não são crianças que vendem balas nos sinais nem homens que padecem sob a chuva, vendendo sombrinhas a R$ 5,00. Não olhamos seus olhos, mal ouvimos seus refrões monótonos; só enxergamos as mercadorias que flutuam pelas ruas.

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Notas:

[1] O conceito de "segregação voluntária" é de BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido. “Sobre a dificuldade de amar o próximo” P. 97 e seguintes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 2004.

[2] "Soma" é a droga de "Admirável mundo novo", de A. Huxley.

[3] FRANCE, Anatole. A Justiça dos Homens. Tradução de João Guilherme Linke. São Paulo: Ed. Difel, 1986.




Tirei esta foto ontem, de dentro do ônibus, a caminho do trabalho. Estava chovendo, como podem observar pelo homem com guarda-chuva no canto superior direito. Conseguem ver o homem entre os carros ou só vislumbram a caixa de papelão cheia de doces?

sábado, 25 de julho de 2009

"O meu pensamento tem a cor de seu vestido"

Um amor não realizado é um dos sentimentos mais intensos que há. Perdoem-me pela frase feita, mas, tratando do tema, não consigo construir uma frase menos ordinária; talvez porque não haja de fato outra forma de falar da intensidade deste tipo de paixão.

Pode ser o mais estranho dos paradoxos, porém a verdade é que quando a paixão se realiza - quando se é correspondido - a intensidade do sentimento se transforma: as expectativas e os sonhos inerentes ao momento anterior ao início da relação perdem seu caráter místico para dar espaço à realidade.

É no momento que antecede a vivência (paixão ainda idealizada) que a intensidade e o desejo - e toda a fantasia que os acompanha - são mais fortes. Muito semelhante é o que ocorre com o amor que começou a se realizar, mas foi interrompido abruptamente na fase inicial; neste caso, é como se não houvesse realização e a fantasia preenche esta lacuna deixada pela frustração.

A dúvida é crucial neste processo. A princípio, nunca sabemos se seremos correspondidos, se o outro está sentindo o mesmo que nós; e é esta incerteza que fundamenta toda a fantasia sobre o futuro, que mais parece sonhar acordado. Esta mistura de medo e desejo é indescritível; somente a experiência da paixão é capaz de proporcionar tal sensação; as palavras (meros símbolos) ficam aquém do sentimento (como sempre); no entanto, mesmo tendo consciência da inutilidade das palavras diante da vida, insistimos em usá-las para expressar o inefável (mais um paradoxo que se impõe).

Nosso pensamento fica encharcado do intenso sentimento que o ser pelo qual estamos apaixonados provoca. Tudo nos faz lembrar dele; na verdade, não o esquecemos um minuto sequer – é mesmo como um vício; e esta obsessão (podemos chamá-la assim) não é tanto pelo outro, mas pelo que ele (ser amado) desperta dentro de nós, o que faz da paixão algo muito próximo do narcisismo.

Com efeito, queremos encontrar o objeto da paixão a toda hora, desejamos ouvi-lo, tocá-lo, senti-lo; os limites entre nós e ele perdem-se e nossa vontade predominante é de fusão. Contudo, não é o outro em si o que desejamos em última instância; queremos sentir dentro de nós o que aquele ser desperta. Como assevera Nietzsche: “em última análise, amam-se os nossos desejos, e não o objeto desses desejos.”

Diante da paixão, passamos a ignorar a realidade da solidão, para acreditar que a separação (na verdade, invencível) é superável, desde que aquele ser específico nos acolha. A verdade (ou melhor, o que elegemos como verdade) torna-se o que sentimos pelo outro.

E é justamente este sofrimento, causado pela paixão idealizada, o sentimento mais utilizado pelos artistas românticos como base para sua criação. O amor deve ser refutado, a realização deve ser impossível ou pelo menos postergada ao máximo; o que importa é a paixão que antecede (que almeja, mas não alcança) a relação fantasiada.

Segundo Nietzsche, “o amor é o estado no qual os homens têm mais probabilidades de ver as coisas tal como elas não são.” E, como sabemos, o filósofo destruidor de ídolos era um crítico severo do romantismo, que para ele seria a “plebe sensual”, na medida em que o artista digno não é aquele dilacerado e enfraquecido por suas paixões interiores, mas aquele que sabe cultivar “o ódio ao sentimento, à sensibilidade (...), o ódio ao que é múltiplo, incerto, vago...”.

Afirma Nietzsche que “o herói romântico é um doente, que acaba sempre morrendo jovem, corroído” pela contradição de suas forças internas. A verdadeira arte para o homem que declarou o óbito de deus seria a clássica, a qual refuta as emoções sentimentais; para ele são expressões do “grande estilo” - arte, portanto - o que fizeram os gregos, na antiguidade, e os franceses, no fim do séc. XVII.* E a arte, segundo o filósofo destruidor de ídolos, é essencial: ele a classifica como “força ativa” e chega a afirmar que “sem a música [arte], a vida seria um erro”.

Minha tendência é, tal qual Nietzsche, rejeitar o romantismo. Mas confesso que, em certos momentos, me identifico com a fraqueza, o vício, a obsessão, a doença inerente aos românticos, o que faz com que meu "realismo" caia por terra. Depois, quando volto ao normal (sim, porque a paixão é tudo menos normalidade), o "realismo" retorna ao comando e passo a observar a paixão de uma distância segura, ou seja, nos outros, não mais em mim.

Sobre o amor romântico, há uma música extremamente bela que representa perfeitamente o tema:

"Um Girassol da Cor de Seu Cabelo
(Márcio Borges e Lô Borges)

Vento solar e estrelas do mar
A terra azul da cor do seu vestido
Vento solar e estrelas do mar
Você ainda quer morar comigo

Se eu cantar não chore não
É só poesia
Eu só preciso ter você
Por mais um dia
Ainda gosto de dançar
Bom dia
Como vai você?

Sol, girassol, verde, vento solar
Você ainda quer morar comigo
Vento solar e estrelas do mar
Um girassol da cor de seu cabelo

Se eu morrer não chore não
É só a lua
É seu vestido cor de maravilha nua
Ainda moro nesta mesma rua
Como vai você?
Você vem?
Ou será que é tarde demais?

O meu pensamento tem a cor de seu vestido
Ou um girassol que tem a cor de seu cabelo?"

A primeira estrofe demonstra o quanto o ser amado torna-se uma obsessão, uma vez que o Eu-lírico ao ver uma imagem da terra azul a associa ao vestido de sua amada. Como eu disse acima, “tudo nos faz lembrar dele [objeto da paixão]; na verdade, não o esquecemos um minuto sequer – é mesmo como um vício.”

E a idéia da associação de todos objetos e cores ao objeto da paixão é retomada outras vezes na música:

"O meu pensamento tem a cor de seu vestido
Ou um girassol que tem a cor de seu cabelo?"

Estes versos expressam o quanto a paixão domina: nosso pensamento passa a ter a cor das vestes de quem amamos; o girassol passa a ter a cor do cabelo dela; ou seja, estamos imersos no que o objeto amado representa para nós.

Esta música tem um significado muito especial para mim, pois me lembra a época da separação dos meus pais (eu tinha uns 3 ou 4 anos), na qual imaginava que meu pai a cantava para minha mãe - o que transformou esta canção na expressão sonora do meu desejo infantil de ver meus pais unidos novamente.

Sonhava acordado com meu pai perguntando à minha mãe:

"Você ainda quer morar comigo?
(...)
Ainda moro nesta mesma rua
Como vai você?
Você vem?
Ou será que é tarde demais?"

E não era nada absurdo o meu sonho, pois meu pai é um poeta e ainda morava na mesma rua. Dentro deste contexto, emociono-me demais com a beleza dos versos: “Se eu cantar não chore não / É só poesia” e “Se eu morrer não chore não / É só a lua”. São perfeitos.

Já faz muito tempo que aceitei a separação dos meus pais e hoje não nutro qualquer desejo de vê-los juntos. Sei que o tempo deles passou e a vida os presenteou com outras relações, que lhes trouxeram a realização que não conseguiram juntos. Mas esta música, apesar de continuar evocando estas lembranças da infância (e nunca deixará de evocá-las), transformou-se com o tempo: eu passei a ser o Eu-lírico: não vejo mais meu pai cantando para minha mãe, mas eu mesmo cantando para minha amada:

"Você vem?
Ou será que é tarde demais?"

Nota:

* FERRY, Luc. Aprender a viver. Filosofia para os novos tempos; tradução Vera Lúcia dos Reis. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. Págs. 174 a 232.


sexta-feira, 17 de julho de 2009

Dança de Eleanor

Há muito penso em escrever sobre a solidão; mas, por ironia do destino, quando tento me debruçar sobre o tema, alguém aparece ou algum aparelho toca. E, na verdade, pra escrever sobre a solidão,

É preciso assistir, desacompanhado,
ao ocaso;
E jantar sozinho
Num sábado.

É preciso tornar-me azul
Diante da luz que emana da televisão
Num quarto escuro.
É preciso chorar sem preocupação
De que vejam minhas lágrimas,
E rir, e ouvir minha risada
Como um som estranho e distante.

É preciso dançar só, de janelas fechadas,
E estar tão isolado a ponto de imaginar alguém
Com quem conversar;
É preciso querer sair e não encontrar forças;
E se forças encontrar,
Andar sem destino, sem hora pra voltar
E sem ninguém a me esperar.

Existem pelo menos duas espécies de solidão: a que desejamos (auto-isolamento) e a que se nos impõe, quando os outros nos esquecem, ainda que temporariamente. Confesso que, como misantropo, sou adepto da primeira modalidade: sou mestre em me isolar. E não me sinto nem um pouco mal com isso. É mais fácil irritar-me com a presença constante que com a ausência.

Minha paixão pela literatura muito tem a ver com minha propensão à solidão; não me sinto nada só quando leio ou escrevo - sinto-me, na verdade, num monólogo silencioso, que freqüentemente mais me parece um diálogo (quase uma esquizofrenia, como a descrita em "Lobo da Estepe", de H. Hesse).

A poesia acima trata da solidão imposta, aquela da qual fugimos. Confesso que é muito difícil sentir a separação completa - embora na realidade sejamos sempre solitários, quer aceitemos esse fato ou não -, em razão das várias formas de atenuar, mascarar, a inexorável solidão que nos é inerente. Ligamos o computador e, num minuto, estamos conectados a várias outras pessoas (perfis); ligamos a TV ou o rádio; o celular permite que encontremos as pessoas onde quer que estejam, ou seja, acessamos o outro na hora em que desejamos. Mas até que ponto este "contato virtual" satisfaz nossa necessidade de nos relacionar?

E não se iluda: encontrar pessoas não significa sair da solidão. No meu caso, estar no meio da multidão muita vez aumenta minha sensação de alienação. E isso também acontece com as companhias superficiais, as conversas sem atenção, as palavras sem reflexão. Na verdade, prefiro a solidão ao contato vazio.

Hoje, para ficar realmente só - ou melhor, para sentir integralmente a solidão, sem subterfúgios - é necessário se esforçar; para tanto, temos que desligar todos os aparelhos: TV, computador, mp3 player, telefones etc.

Com efeito, a rapidez de nossos tempos nos conduz a estas relações fugazes e superficiais, que se prestam a dissimular o silêncio de nossa alienação. Há muitos “perfis” (máscaras virtuais) para se conectar, mas poucas pessoas (seres humanos) para se relacionar de verdade. Como afirma Bauman, nossas relações são cada vez mais líquidas, fluidas. Impossível não concordar.

Nesse contexto, as músicas que evoco abordam o tema com uma profundidade peculiar. Uma trata das pessoas que são sozinhas; outra, das pessoas que estão sozinhas.

Quem é “Eleanor Rigby” (Beatles)?
Esta mulher que cata, sozinha, grãos de arroz depois de um casamento. Reparem na profundidade desta descrição: o casamento representa justamente a celebração da união; assim, catar, só, os grãos caídos ao chão, depois desta cerimônia é ainda mais grave, na medida em que reforça o isolamento.

“Eleanor rigby picks up the rice in the church where a wedding has been
Lives in a dream
Waits at the window, wearing the face that she keeps in a jar by the door”

Quem é ela? Esta mulher que vive num sonho e espera à janela, vestindo a face (ostentando a máscara) que mantém num pote perto da porta. Este verso permite diversas interpretações. Para mim, a janela representa a relação com os outros, o que permitimos que os outros vejam; desta forma, a máscara guardada no pote é a expressão que Eleanor ostenta quando se expõe.

E de onde vêm as pessoas solitárias?
E quem é o padre Mackenzie, que se dedica a elaborar um sermão que ninguém escutará? De onde ele vem? E quem se importa?

O solitário representa aquele que não interage e que, portanto, é um observador, um ser afastado, que assiste, à distância, às vidas e relações alheias. A imagem de Eleanor à janela é exatamente esta: a de alguém que observa a vida e não a vive. Não se trata de solidão-estado, mas, sim, de solidão-ser.

"Eleanor rigby died in the church and was buried along with her name
Nobody came"

A idéia de um enterro sem qualquer pessoa é uma das imagens mais fortes que se pode ter da solidão. A morte, por si só, é separação, abandono; um velório vazio é uma morte dentro da morte. Ninguém foi ao enterro de Eleanor. O ato de velar o corpo e após enterrá-lo é um ato que celebra a extinção do eu: escondemos embaixo da terra os vestígios materiais que restam inertes. Socialmente, alguém que não se relaciona, já está morto; confirmamos amiúde nossa existência ao interagir.

Em relação à outra música, podemos refletir como seria então a “Dança da solidão”, que parece exprimir um paradoxo, pois dançar é uma manifestação social, a qual, seja numa tribo ou numa festa, envolve várias pessoas.

“Solidão é lava que cobre tudo
Amargura em minha boca
Sorri seus dentes de chumbo
Solidão palavra cavada no coração
Resignado e mudo
No compasso da desilusão

Desilusão, desilusão
Danço eu dança você
Na dança da solidão

Camélia ficou viúva, Joana se apaixonou
Maria tentou a morte, por causa do seu amor
Meu pai sempre me dizia, meu filho tome cuidado
Quando eu penso no futuro, não esqueço o meu passado

Desilusão, desilusão
Danço eu dança você
Na dança da solidão

Quando vem a madrugada, meu pensamento vagueia
Corro os dedos na viola, contemplando a lua cheia
Apesar de tudo existe, uma fonte de água pura
Quem beber daquela água não terá mais amargura”

Segundo o Eu-lírico, a solidão petrifica, tal qual a cabeça de medusa; ela é “lava que cobre tudo”, é “amargura” na boca, tem dentes de chumbo, e cava o coração silenciosamente. Esta é a solidão que decorre da desilusão amorosa.

É interessante notar que tanto em "Eleanor Rigby" quanto em "Dança da solidão", há referência a personagens: o Eu-liríco, na segunda música, cita Camélia, a viúva; Joana, a apaixonada; e Maria, a desiludida. Penso que a idéia de criar personagens é relevante para personificar a solidão e, desta forma, provocar a identificação.

Na primeira parte da última estrofe, aborda-se o caráter criativo da solidão, “Quando vem a madrugada / Meu pensamento vagueia / Corro os dedos na viola / Contemplando a lua cheia”.

De fato, a solidão é imprescindível à criação artística. Como diz Calvino, "o temperamento saturnino [tendente ao melancólico, ao solitário] é próprio dos artistas, dos poetas, dos pensadores (...). É certo que a literatura não existiria se uma boa parte dos seres humanos não fosse inclinada a uma forte introversão, a um descontentamento com o mundo tal como ele é (...)".

Outrossim, no que se refere à desilusão - pois a solidão da segunda canção decorre da frustração amorosa -, lembro-me de Pessoa a dizer que:

"Enquanto não superarmos a ânsia do amor sem limites, não podemos crescer emocionalmente. Enquanto não atravessarmos a dor de nossa própria solidão, continuaremos a nos buscar em outras metades. Para viver a dois, antes, é necessário ser um".

Entretanto, enquanto em “Eleanor Rigby” a solidão não encontra nenhum remédio, em "Dança da solidão", vemos que, ao fim, o Eu-lírico, que baila ao som mudo do abandono, propõe uma solução para o alheamento:

”Apesar de tudo existe
Uma fonte de água pura
Quem beber daquela água
Não terá mais amargura”

Esta solução pode ser interpretada de diversas formas. O que seria esta “fonte de água pura”? Pode ser a aceitação da nossa inelutável solidão, entendendo-se que esta fonte de água pura emana do nosso próprio ser, ou uma solução metafísica, caso se prefira acreditar num ser supremo e onipresente.

Podemos disfarçar a solidão, nos distrair um pouco, acreditar que o outro poderá removê-la - assim agimos ao nos apaixonarmos -, da mesma forma que é comum dissimularmos a inevitabilidade da morte - seja ignorando-a, seja preferindo acreditar num além, numa “esperança supraterrestre.” * Para mim, todavia, que não ouso “blasfemar contra a terra”, não há solução: a solidão é invencível, assim como a morte. Prefiro a realidade à ilusão.

Nota

* V. prólogo de Assim falou Zaratustra, uma das últimas obras de Nietzsche.“Eu vos conjuro, ó irmãos, permaneçam fiéis à terra e não creiam naqueles que vos falam da esperança supraterrestre. (...) De agora em diante, o crime é blasfemar contra a terra e conceder mais apreço às entranhas do inescrutável do que ao sentido da terra”.



                                         

sábado, 11 de julho de 2009

Henfil

Mais uma descoberta de ontem:

"Cartas da mãe é uma crônica sobre o Brasil dos últimos 30 anos contada através das cartas que o cartunista Henfil (1944/1988) escreveu para sua mãe, Dona Maria. Estas cartas, publicadas em livros e jornais, são lidas pelo ator e diretor Antônio Abujamra enquanto desfilam imagens do Brasil contemporâneo. Política, cultura, amigos e amor são alguns dos temas que elas evocam, criando um diálogo entre o passado recente do Brasil e nossa situação atual. Artistas, políticos e amigos de Henfil, entre eles o atual Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, o escritor Luis Fernando Veríssimo, os cartunistas Angeli e Laerte e o jornalista Zuenir Ventura falam sobre a trajetória do cartunista dos anos da ditadura militar até sua morte. Animações inéditas de seus cartuns complementam o documentário dirigido por Fernando Kinas e Marina Willer de 2003."

Um malandro

Acabo de voltar do cinema da UFF, onde fui assistir a uma seqüência de curtas (entrada franca), da qual gostei muito.

Assisti a quatro curtas: "Onde a Coruja Dorme", sobre Bezerra da Silva; "Nelson Sargento"; "Mestre Humberto" e "Cartas da mãe", sobre Henfil. Não sei por que o curta sobre Nelson Cavaquinho não passou, apesar de previsto na programação. E confesso que fui ávido para vê-lo, afinal foi ele que compôs "Folhas secas", música que deu origem ao meu primeiro ensaio (rumor de uma folha seca).

Não consigo parar de lembrar do Bezerra da Silva falando sobre suas composições. Indagado por que não escrevia letras românticas, responde na lata:
- O mundo nunca me deu amor; não vou falar do que não conheço.

Deixo o link da programação do Cine Art UFF aí abaixo:

http://www.uff.br/centroarte/cinema.html


Trecho de "Onde a Coruja Dorme":

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Sinal Fechado

Uma escada para o futuro ou Ampulheta escarlate

Numa noite de chuva fina, dois carros estão emparelhados, esperando, sob a luz vermelha fragmentada nas inúmeras gotículas suspensas nos vidros, que o sinal de trânsito de trânsito lhes permita seguir.

Os dois motoristas têm pressa e o sinal parece sugar toda a atenção; mas num instante ambos deixam cair os antolhos da ansiedade e olham para o lado. Os olhares se cruzam e, depois de um breve momento, se reconhecem; eles abaixam os vidros e trocam saudações - são amigos que não se encontravam há tempos. A ampulheta escarlate marca o tempo, brevíssimo, que eles têm para conversar. O sinal fechado é uma parada obrigatória; uma pequena interrupção que lhes é imposta.

Queremos seguir, precisamos seguir, somos obrigados a seguir. Aí está a diferença: a rapidez é excitante; no entanto, quando é uma imposição, torna-se cansativa, principalmente se não temos idéia do objetivo da corrida da qual participamos.

É como se houvesse - e creio que de fato há - uma perseguição: nós perseguimos algo inescrutável mas imprescindível, ao mesmo tempo em que somos vítimas de uma perseguição, algo nos empurra adiante; seguimos correndo, sob pena de sermos esmagados. E “enquanto corremos pela estrada, parece que nossas sombras são maiores que nossas almas.”[1]

A imagem de um rio caudaloso, que carrega em sua corrente tudo que ali cai, representa esse fluxo no qual estamos presos. E não conseguimos ver sequer as margens. Outra imagem é a de que somos pedras rolando montanha abaixo; nada é capaz de nos fazer parar: nosso peso, a gravidade de nossas vidas, nos impele para o abismo.[2]

O presente, nesse contexto, é fugaz, enfadonho e instrumental - na medida em que não tem nenhum valor em si mesmo, mas apenas como degrau para o porvir -; é somente um pequeno e imperceptível degrau na escada para o futuro.

Encontramo-nos no labirinto do palácio do Mago Atlas,[3] que, de uma hora para outra, se dissolve no nada, transformando-se num redemoinho de vazio. Atlas, mago ilusionista, cria esta armadilha, para atrair os cavaleiros que procuram algo; ele ilude suas vítimas com visões, nas quais os objetos desejados são roubados e levados para o castelo. Desta forma, os cavaleiros caem nesta armadilha ao perseguirem algum bem que aparentemente lhes teria sido furtado. “O desejo é uma corrida rumo ao nada, o encantamento de Atlas concentra toda as paixões insatisfeitas no interior de um labirinto (...).” [4] Sinto-me neste labirinto, buscando a realização de um desejo dentro da ilusão, ou seja, dentro deste palácio que se encontra deserto daquilo que almejo.

Aqueles amigos que se encontraram debaixo do sinal estão indo, “correndo para pegar” um lugar no futuro, que é algo inatingível, pois, ao chegar lá, ele será presente e, portanto, mais uma vez, será um pequeno degrau da escada infinita, na qual eles estão subindo com pressa, para chegar ao futuro.

No entanto, só existe o presente, que é fugaz e consiste neste degrau, no qual mal colocamos nossos pés, vislumbrando sempre o que está por vir, não o que há agora. E assim seguimos; assim temos que seguir. Parar agora, ainda que por um bom motivo, nos angustia. Estamos condenados a nos mover incessantemente; parar é morrer.

Subimos esta escada que compramos para chegar ao céu (stairway to heaven), [5] ao “sono tranqüilo”, a algum lugar onde poderemos parar finalmente. Mas como podemos sacrificar o presente por algo que não conhecemos? Penso que não temos tempo sequer para refletir sobre isso: as margens estão distantes de nós, não há onde agarrar, precisamos seguir, rapidamente. O sinal vai abrir. Há quanto tempo estamos correndo sem olharmos para onde pisamos. "Pois é, quanto tempo!"

É isto que “Sinal fechado”, de Paulinho da Viola, representa para mim. Aí está o diálogo sobre o tempo e a fluidez das relações:

– Olá! Como vai?
– Eu vou indo. E você, tudo bem?
– Tudo bem! Eu vou indo, correndo pegar meu lugar no futuro... E
você?
– Tudo bem! Eu vou indo, em busca de um sono tranqüilo...
Quem sabe?
– Quanto tempo!
– Pois é, quanto tempo!
– Me perdoe a pressa - é a alma dos nossos negócios!
– Qual, não tem de quê! Eu também só ando a cem!
– Quando é que você telefona? Precisamos nos ver por aí!
– Pra semana, prometo, talvez nos vejamos...Quem sabe?– Quanto tempo!
– Pois é...quanto tempo!
– Tanta coisa que eu tinha a dizer, mas eu sumi na poeira das
ruas...
– Eu também tenho algo a dizer, mas me foge à lembrança!
– Por favor, telefone - Eu preciso beber alguma coisa,
rapidamente...
– Pra semana...
– O sinal...
– Eu procuro você...
– Vai abrir, vai abrir...
– Eu prometo, não esqueço, não esqueço...
– Por favor, não esqueça, não esqueça...
– Adeus!
– Adeus!
– Adeus!

Ater-me-ei à análise da letra, mas não posso deixar de ressaltar a beleza da melodia, que, para mim, transmite todo o caráter inelutável do tempo. Prometo que talvez eu faça uma leitura semiótica de “sinal fechado”; "quem sabe?"

A expressão “eu vou indo” representa, ao mesmo tempo, o estado e a maneira pela qual as personagens seguem adiante: “eu vou indo, correndo pegar meu lugar no futuro”;“eu vou indo em busca de um sono tranqüilo.” Observem que, em vez de responderem que estão bem, as personagens dizem que estão indo e apontam o futuro como objetivo. Mesmo ao afirmar que deseja um “sono tranqüilo”, podemos perceber que se trata de um anseio quanto a algo que se pretende para o futuro. Assim, nas duas respostas, fica clara a hegemonia do futuro em detrimento do presente.

Em seguida, eles constatam quanto tempo passou até se encontrarem agora, casualmente; e essa constatação se repete mais uma vez no diálogo, servindo como uma espécie de refrão. Após, eles justificam a ausência, reafirmando a pressa, a inevitabilidade da rapidez em que vivem: “me perdoe a pressa - é a alma dos nossos negócios! Qual, não tem de quê! Eu também só ando a cem!” E falam sobre se encontrar algum dia, num futuro sem qualquer definição, numa data a ser fixada.

E aí se insere a frase que demonstra toda a fluidez das relações: “pra semana, prometo, talvez nos vejamos... Quem sabe?”. O uso do verbo “prometer” seguido de “talvez” e “quem sabe?” demonstra o paradoxo de quem assevera algo e o refuta ao mesmo tempo.

Logo após, ambos afirmam que tinham algo a dizer, mas o tempo e a pressa fizeram as palavras sumir “na poeira das ruas” ou fugir à lembrança. E mais uma vez eles falam no encontro que um dia marcarão no futuro - quem sabe?

Os últimos grãos de areia da ampulheta já estão caindo: a luz vermelha que lhes concedeu esta fugaz intermitência está quase se tornando verde - eles precisarão seguir, pois o sinal “vai abrir, vai abrir.” O esquecimento prevalecerá; a dúvida vencerá as promessas; o presente sucumbirá diante do futuro. Vamos, corra, o sinal vai abrir, cumpra sua sentença: vá correndo pegar seu lugar no futuro; não perca tempo com o presente.


Notas:

[1] V. Stairway to heaven (Led Zeppelin). “And as we wind on down the road / Our shadows taller than our soul.”

[2] V. Stairway to heaven (Led Zeppelin). “When all are one and one is all / To be a rock and not to roll.”

[3] Ariosto. Orlando Furioso.

[4] CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos; tradução Nilson Moulin – S. Paulo: Companhia das Letras, 2007. Pág. 73/74.

[5] V. Stairway to heaven, Led Zeppelin. “There's a lady who's sure all that glitters is gold / And she's buying a stairway to heaven.”


Texto publicado na 2ª edição da Revista Leitura & Crítica (páginas 17 e 18).