sexta-feira, 5 de julho de 2013

Crise política: cidadãos reduzidos a consumidores

Há muita gente falando de crise de representatividade: “eles - membros do Legislativo e do Executivo - não nos representam.” Essa dicotomia entre “eles e nós”, além de antiga, é bem abrangente, não se restringindo ao Brasil. E parece que as pessoas ignoram que, apesar de todos os discursos otimistas, o Estado - que já foi absolutista - não costuma garantir o bem comum, se o povo nada faz para isso.

Portanto, não dá para falar apenas da crise de representatividade, deixando de lado a cidadania, que diz respeito aos direitos políticos que permitem ao cidadão - habitante da cidade (do latim civitas) - intervir na direção do Estado, participando na formação do governo e em sua gestão. 

Assim, penso que a questão a ser colocada é mais profunda e ampla, passando pela crise política: a cidadania vem sendo fragmentada e reduzida, para limitar-se aos papéis individualistas de consumidores e condôminos.

Vivemos num modelo que restringe as funções do Estado, por meio da privatização dos serviços. Aí estão os planos de saúde, as escolas particulares e também os condomínios, espaços restritos, nos quais a entrada, assim como a permanência, dependem de dinheiro.

Se antes educação e saúde eram reivindicações de quase todos a serem feitas diretamente ao Estado, hoje boa parte do povo mantém um discurso de cobrança (que é legítimo, sem dúvida), mas, na prática, paga religiosamente planos de saúde e reza pra não precisar de tratamento público; age do mesmo modo em relação ao ensino, só frequentando as instituições públicas de excelência.

Quanto aos condomínios, não dá pra negar que eles representam, na realidade, a privatização da segurança: estranhos não podem se aproximar dos lares - há um porteiro vigiando a entrada, com câmeras, cercas, alarmes etc.

Nesse contexto, se algo não vai bem na prestação dos serviços “públicos”, a solução é individualista. Em vez de se unirem para pressionar o governo - fundamentando-se na Constituição, nos direitos políticos -, as pessoas reclamam com as empresas e, se não funciona (o que é muito comum, como sabemos), vão ao Judiciário, com base no código de defesa do consumidor e no código civil. Fica claro o deslocamento das questões públicas coletivas para a esfera privada; não é mais um problema nosso: cada um que anote os números de protocolo e procure um advogado. 

Isso é consequência da redução do papel do Estado, um projeto antigo defendido pelos (neo)liberalistas. Bom, é verdade que depois da crise de 2008/2009, na qual o Estado "socorreu" os Bancos, eles andam meio calados; afinal, pega mal falar de não intervenção na economia depois de usar dinheiro público para "resgatar" instituições financeiras. 

Mas, com ou sem discurso, a prática é (neo)liberal: a globalização e o fortalecimento do poder econômico supranacional enfraquecem a estrutura política local, ou seja, o Estado, limitado a um território, se vê acuado por exigências de grandes empresas que têm a liberdade de transitar pelo mundo e barganhar com os governos a redução das barreiras para sua entrada e permanência. Elas pedem (impõe) menos proteção aos trabalhadores, menos impostos, e acabam sendo atendidas aqui ou ali, onde ficarão enquanto lhes interessar - até o dia em que decidirem partir para melhores oportunidades de exploração, deixando pra trás desemprego e lixo.

Então, se há privatização dos serviços e redução do Estado, com a individualização das demandas, como explicar nossas recentes manifestações?

Bom, não dá pra negar a existência de uma insatisfação popular antiga, que se dirige contra muitas coisas, sendo certo que a maioria das reivindicações levantadas são legítimas. Todavia, penso que os atos tiveram ampla adesão por dois motivos - não únicos mas, a meu ver, cruciais para a união: o transporte público e a violência policial.

Por que esses dois pontos? O transporte público, porque a solução individualista (compra de veículo) se converte em causa do problema - agravado com o aumento do poder aquisitivo -, gerando mais engarrafamento. Além disso, grande parte da população - até pela questão da idade exigida para dirigir (estudantes, por exemplo) - é mesmo obrigada a usar os transportes coletivos, os quais são, em regra, ruins e caros. Ou seja, é um dos poucos serviços onde as classes ainda se encontram. 

Quanto ao segundo ponto - violência policial - entendo que foi a principal causa do aumento de pessoas nas ruas; pelo que vi, a grande adesão ocorreu depois da exibição das imagens da repressão policial ao movimento. A truculência da PM - muito comum mas restrita às áreas mais pobres - alcançou outros espaços e pessoas, fomentando o desejo de sair de casa e agir.

Minha intenção não é invalidar as manifestações, tampouco segmentá-las. Quero, na verdade, compreendê-las, vê-las ampliadas e mais eficazes; desejo que a maioria das pessoas - que esteve apática (apolítica e até antipolítica) por tanto tempo - se una e lute por boas causas, como alguns grupos já vem fazendo há mais tempo.

É importante estabelecer objetivos claros, de modo que as pessoas entendam por que estão no movimento; caso contrário, vira massa de manobra. A princípio, acho muito bons os dois pontos que levaram as pessoas às ruas, e sou a favor da reforma política, com a realização do plebiscito. 

Todavia, é necessário entender que as causas dos nossos problemas são mais profundas, sendo reducionista o discurso que trata apenas da crise de representatividade. As manifestações são ótimas, mas não bastam; precisamos nos libertar da crise de cidadania e persistir na política: somos mais que consumidores - já passou da hora de sair dos shoppings para ganhar não só as ruas mas também o Estado, tornando-o instrumento do povo contra as pressões do poder econômico.