sábado, 25 de junho de 2022

Era "monotelista" ou relatos de uma época de poucas telas

                                              Para Rafaela e Gabriel, meus irmãos (ambos da era "politelista").


“Quem disse que eu me mudei?
Não importa que a tenham demolido:
A gente continua morando na velha casa em que nasceu.”
(Mário Quintana)
 
Quando nada parecia mudar e o tempo se entendia como um fluxo contínuo, sempre igual, dias que se repetiam, rotinas que não se alteravam - acordar, colégio, amigos, bola, TV, videogame, família, dormir, acordar, colégio... -, era a programação da TV (esse relógio dinâmico cheio de imagens e sons que dominava o centro da casa) que marcava as horas, os dias, cronometrando nossas vidas. A TV na nossa casa e naquela época - fim dos anos oitenta, início dos noventa - eram os canais abertos: Globo, Manchete, TVE, SBT e Bandeirantes. Se houvesse algum problema de transmissão, que poderia ser causada por um temporal, por exemplo, a Globo era sempre o canal que ficava com a imagem melhor; acho que era o canal mais visto lá em casa. Vivíamos a era pré-controle-remoto, tínhamos que nos levantar pra mudar de canal (ou convencer quem estivesse junto a fazê-lo), o que se fazia girando um botão: nossa TV (que era moderna pra época, acho eu) tinha cara de rádio antigo, com carcaça de plástico imitando madeira e botões arredondados; escolhíamos os canais como hoje se escolhe os diferentes tipos de lavagem de roupas na máquina.

O mais impressionante é que eu - que sou ruim de memória e apaguei grande parte da infância - lembro com clareza do dia em que essa TV chegou, nova, numa caixa de papelão, e reuniu todos na sala, em torno dela, surpresos, alegres e ansiosos, numa cena que hoje pra mim evoca um presépio, daqueles que o menino jesus tem tanta luz em cima que até parece que vai ser abduzido por uma nave espacial, e fica tudo mundo em volta dele, até os bichos (no nosso caso, o Popy, um cachorro vira-lata preto com todas extremidades brancas, que naturalmente não poderia estar na sala - porque era rigorosamente enxotado quando se metia a ultrapassar os limites do quintal pra entrar na casa -, mas que na minha memória do dia da chegada da nova TV também estava ali, ou pra compor melhor minha fantasia do presépio ou porque toda a atenção estava voltada pra chegada do novo deus e Popy entrou na sala sem que ninguém além de mim reparasse; eu o protegia, curtia suas invasões bárbaras).

Sim, trouxeram a caixa de papelão pra dentro de casa: era a hora de saudarmos o novo deus e colocá-lo no centro da sala, sobre o altar, já que o deus antigo nos castigava demais com uma tela pequena e problemas de imagens, que mesmo com todos os sacrifícios que lhe oferecíamos, como subir até o telhado pra mexer na antena externa; colocar chumaços de bombril na antena interna - a TV com as duas hastes metálicas em cima da “cabeça” parecia mesmo um inseto, mas era muito querida, de fazer inveja ao rejeitado Gregor Samsa de Metamorfose -; ou mesmo ficar de pé, segurando a antena e se mexendo até achar um modo de agradar aos anjos da boa transmissão. Todavia, mesmo com todos esses sacrifícios, muitas vezes o antigo deus não tinha piedade e punia, nos privando das suas imagens e sons. E se a TV não funcionasse ou não pudesse ser ligada - fosse por castigo divino, castigo materno (bem eficaz, aliás) ou falta de luz - redescobríamos outras formas de diversão, como jogos, brinquedos, revistas, livros, conversas ou a exploração do mundo do quintal. Nem só de telas viviam os meninos nascidos na década de 80; mas isso é material pra outras divagações; melhor me ater, ao menos por ora, à TV. É importante explicar logo que éramos uma família monoteísta (ou monotelista, se preferir), tínhamos só uma TV, o que aumentava nossa união e nossas brigas, evidentemente.

Nossa sala era um mundo, cujo chão - que quando nasci já era totalmente irregular porque foi cedendo com o tempo, e eu era um neto morando na casa que os avós tinham construído décadas antes de eu pensar em nascer, o que ocorreu no fim de 82 - era totalmente coberto por um carpete verde escuro, grosso, no qual, apesar da poeira e do calor nos deitávamos pra ver TV. Como fazem geralmente os deuses mais modernos, a TV nova não exigia tantos sacrifícios como a antiga, era muito menos carente e punitiva (sim, porque os deuses antigos viviam de papo furado e interagindo com os homens - pode reparar). Além do tapete, havia um sofá grande de três ou quatro lugares, de frente pra TV, e duas poltronas gigantes, uma do lado esquerdo e outra do direito; no centro, uma mesa de mármore branco, baixinha com uns cinzeiros (vocês acreditam, novinhos dos anos 2000, que fumavam muito àquela época, e dentro de casa?).

A poltrona gigante do lado esquerdo de quem olhava pra TV, perto da janela, era onde se sentava meu avô materno, o vô Lico, acompanhado do seu inseparável cigarro; ele se sentava ali e me chamava a ir pro buraco, o espaço exato em que eu me enfiava, ao lado dele, pra vermos TV juntos, espremidos na poltrona. Falem o quiser dos cigarros (não tiro as razões dos antitabagistas de plantão), mas até hoje lembro com saudades do cheiro enfumaçado do meu avô. E já que estamos falando dele, vou começar a cronologia semanal pelo domingo - sim, a TV era um deus que não descansava aos domingos (pelo contrário), mas juro que não vou descrever toda a grade de programas da época, só os mais marcantes pra mim. Especificamente na manhã dominical havia a corrida de fórmula um.

Mesmo aos domingos, eu acordava cedo demais, muito antes da hora da corrida, que variava de acordo com o lugar do mundo onde fosse a competição. Nesse ponto, eu competia com minha avó Marly, que era a outra pessoa da casa que também se levantava cedo (ambos sem a mínima necessidade de fazê-lo nos fins de semana). Então, antes da corrida, via às vezes globo rural, com todos os bois, plantas, paisagens enormes e pessoas que pareciam vir de outro planeta prum menino de Niterói, cidade na zona metropolitana do Rio, e acho que havia desenhos animados em algum canal também; mas depois vinha a corrida de fórmula um, que era um dos programas favoritos do meu avô - que também curtia partidas futebol sem grandes compromissos - era botafoguense, mas se dizia torcedor do São Cristóvão pra criar polêmica - e filmes ruins da madrugada, que ele às vezes descrevia pro resto da família no café da manhã.

Pra mim, as corridas automobilísticas eram um tédio, exceto as de vídeo game. Meu avô, no entanto, adorava e acompanhava até aquelas disputas pra definir as posições de largada, mesmo quando eram de madrugada. Lembro-me de perguntar a ele quantas voltas os carros dariam até terminar, sofrendo porque pra mim era algo que se assemelhava ao infinito. Sendo bem sincero, pra mim a monotonia só era quebrada quando havia alguma batida; fora isso, as manhãs de domingo eram marcadas por aquele zum zum zum infernal dos carros da fórmula um, que pareciam uma praga de insetos consumindo horas do meu dia livre. Depois, quando cresci um pouco, até passei a curtir as corridas com meu avô, ou me entreguei ao hábito, não sei bem. Até o dia em que assistimos juntos à última corrida do Ayrton Senna, nosso herói das pistas; dali em diante o zum zum zum e uma música que tocavam pras muitas vitórias do Senna se tornaram sinais de tristeza pra gente.

O domingo seguia, e hoje tenho imensa gratidão à minha família, dentre milhares de outras coisas, pelo fato de que não tinham o hábito de assistir programas de auditório dominicais. (Na verdade, acho que minha mãe nem via TV, talvez porque nem tivesse muito tempo livre nessa época, e porque sempre dormiu nos filmes). Não me lembro (ou apaguei) de ver em casa Faustão, Sílvio Santos etc.; é óbvio que conhecia esses programas e apresentadores, mas não éramos telespectadores deles. Acho que prevaleciam lá em casa aos domingos partidas de futebol e outros esportes, ou talvez eu costumasse sair pra passear ou brincasse de outra coisa.

Já que mencionei os esportes, abro logo um parênteses pra falar deles. Não era de ficar assistindo esportes e jogos na TV, exceto futebol quando se tratava de partidas mais importantes do Botafogo, seleção brasileira (especialmente nas copas) e também nas olimpíadas, quando surgiam na TV todas aquelas modalidades. Além das copas, lembro-me da família vibrando com as partidas de voley nas olimpíadas. E um dos jogos mais marcantes do fogão foi a final do campeonato brasileiro de 1995, que assisti na sala lá de casa com meu avô, meu tio Zezé e o Daniel, amigo meu desde que me entendo por gente. O pai do Daniel, o mais fanático dos botafoguenses, não aguentou assistir à partida e ficou rodando de carro pela cidade, aparecendo de tempos em tempos. Até que depois de muito sofrimento - como não poderia deixar de ser, já que se trata do botafogo -, o alvinegro carioca venceu o Santos e vibramos como loucos.

Voltando ao domingo, tenho que falar da sua noite - a mais triste da semana, sem dúvida -, que era marcada pelo Fantástico, com aquela música de abertura e mulheres lindas, que emergiam da água e tomavam a tela da TV, dançando e pulando no que pra mim eram imagens de outros planetas. Eu achava o Fantástico meio chato, e acho isso tinha a ver com minhas expectativas criadas com aquela abertura estonteante e com o modo fantástico dos apresentadores falarem “fantástico!”. O fato é que depois daquela abertura de outro mundo, o programa lembrava o jornal nacional, que pra mim era um saco. Então, eu me frustrava, exceto por uns clipes musicais que apareciam às vezes e pela simpática zebrinha, que não falhava. É certo que hoje essa zebrinha seria alvo de muitas críticas (e com razão, já que era associada aos resultados da loteria esportiva), mas eu a adorava, e não me tornei jogador compulsivo; pra falar a verdade, entre todos os vícios que já me atingiram ainda não se encontra o jogo. Viva a zebrinha da jogatina!

Passando aos dias de semana, lembro bem dos programas infantis de auditório. Xuxa, como as garotas do fantástico, também era algo de outro planeta, e o modo como aparecia no programa confirmava sua natureza extraterrestre: ela descia uma nave espacial. O que eu mais gostava do programa dela eram os desenhos animados. O mesmo acontecia com os programas do SBT e Manchete; a molecada da minha época também assistia a Bozo, Angélica, Mara Maravilha. E minha preferência em todos os programas infantis se repetia: eram os desenhos animados. Gostava de vários, mas me lembro agora que costumava ver sempre scooby-doo, thundercats, caverna do dragão (que não teve um episódio final e até hoje gera especulações e versões), tartarugas ninjas, os flintstones, zé colmeia, pica-pau, smurfs, cavaleiros do zodíaco etc. Gostava também do sítio do Picapau amarelo (eu tinha medo da cuca) e do Castelo ra tim bum, que eram da TVE.

E também havia aquelas séries de super-heróis orientais, tipo jaspion, changeman etc., que eram horrorosas e se repetiam invariavelmente, mas que eu adorava. Imperdoável. (Esse é sem dúvida um dos pontos bons de amadurecer). Pra finalizar as manhãs (do tempo que eu ainda estudava só a tarde, depois entrei num colégio de horário integral), tenho que fazer uma admissão tragicômica: brigava com meu tio Zezé, porque eu queria ver Chaves e Chapolim enquanto ele queria ver globo esporte. Talvez eu esteja errando quanto a horários, canais etc., mas confesso que minha intenção é fazer um apanhado geral das lembranças e não ficar parando toda hora pra fazer pesquisas. Sejam benevolentes, por favor.

À tarde eu só via TV se faltasse ao colégio e isso era raro. Pelo que lembro, os grandes destaques da tarde eram o vídeo show, a escolinha do professor Raimundo e a sessão da tarde. O mais legal do vídeo show era ver a arqueologia da TV, com a exibição de trechos e cenas antigas “diretamente do túnel do tempo”. A sessão da tarde (cinema em casa, na versão do SBT) repetia os mesmos filmes várias vezes, alguns inesquecíveis pra mim - lagoa azul, de volta pro futuro, goonies, loucademia de polícia, curtindo a vida adoidado, se meu fusca falasse, e.t., edward mãos de tesoura, um morto muito louco, olha quem está falando, quero ser grande, caça fantasmas, corra que a polícia vem aí, um monte de filmes dos trapalhões, top gun, karatê kid, esqueceram de mim, entre outros -, não sei se se tornaram inesquecíveis porque eu realmente gostava deles ou por força da repetição.

E a escolinha do professor Raimundo fechava a tarde numa reunião de humoristas de todas as idades e épocas numa sala de aula cheia de clichês, caricaturas, piadas velhas e repetições, mas mesmo assim engraçadas pro garoto que eu era e pra muita gente que via sempre, e acaba reproduzindo por aí as frases de efeitos dos personagens mais marcantes, como o próprio professor (“...e o salário, ó?”), o seu Boneco (“aí eu vou pra galera!”), Rolando Relo (“amado mestre! Captei a mensagem!”) e outros.

À noite não havia nada infantil, pelo que me lembro (talvez o mundo de beakman, na TVE, não sei ao certo). E é aí que fica bem marcada a passagem do tempo pra mim, porque as telenovelas de cada época, com seus personagens, enredos e músicas e aberturas, cronometravam nossas vidas. Não acompanhava com rigor as novelas; em geral não curtia muito a maioria delas, mas é impossível não reconhecer que as novelas marcavam nossas vidas como um plano ficcional de fundo. Certas músicas se repetiam todos os dias nos mesmos horários e acabaram virando trilha sonora das nossas vidas - mesmo que a contragosto. Não dá pra negar que as novelas invadiam nossas vidas. Lá em casa a TV ficava ligada à noite e mesmo que ninguém se dedicasse a assisti-la, ela nos fazia companhia, talvez destacando nossas rotinas monótonas, repetitivas. Dessa época, as novelas de que mais me lembro são Tieta (globo) e Pantanal (manchete). Pensando bem, talvez essas novelas tenham sido meu primeiro contato com o realismo fantástico, com a mulher de branco em Tieta e a mulher-onça em Pantanal. Além dessas, outra que me marcou foi Vamp, com vampiros morenos num país tropical - ao som de uma versão de “sympathy for de devil” - que se tornaram moda entre a garotada da minha idade.

E tinham os jornais da noite, que chamavam a atenção com suas músicas de abertura e as vozes de seus locutores. Também não morria de amores pelos telejornais, que achava chatos demais. Se deixassem na época, eu certamente ligaria, na hora dos jornais, o meu videogame - um phantom system, que tinha controles que pareciam o morcego símbolo do Batman, no qual passei horas e horas jogando super mário e outros jogos da nintendo e que chegou a contundir os dedos do meu avô Lico. Mas nunca deixaram. Então, só nos restava dar boa noite ao Cid Moreira e ouvir toda a “verdade” sobre os acontecimentos nacionais. Lembrem-se de que não havia Internet por aqui e a Globo exercia com mais facilidade o monopólio das informações e versões.

Uma outra dádiva divina foi o videocassete, que apareceu depois e tornou a TV muito mais interessante, porque com ele a gente passou a poder ver os filmes que a gente quisesse, na hora que a gente quisesse, com a opção de parar quando a gente quisesse - pra lanchar, ir ao banheiro etc. - sem ter que esperar os intervalos comerciais pra isso: pois é, o videocassete também nos livrou dos intervalos forçados da TV. E não foi só isso (o que já era muito pra época): o vídeo permitia que a gente gravasse os programas preferidos pra assistir depois, quando a gente quisesse. Muito avanço tecnológico!

Porque a TV, antes do vídeo, era um fluxo contínuo de programas; se a gente não estivesse em casa pra ver, já era; talvez daí, desse fluxo contínuo, a minha associação da TV à passagem inexorável do tempo. O que importa é que o videocassete foi uma dádiva e tenho quase certeza de que quem trouxe essa maravilha lá pra casa foi minha tia Mônica, a mais cinéfila da família. Outra invenção maravilhosa da mesma época, que também foi descoberta pela Mônica, foram as videolocadoras, onde não éramos simples clientes, meros consumidores, mas sócios reunidos por uma paixão. E não alugavam só filmes, mas também fitas de videogame; ou seja, algo que parecia o paraíso pra mim. Agora, no finzinho de 2015, está fechando a última do bairro, a Xi-liq, da Feli. Mas vou deixar essa história pra outra vez porque já tô com os olhos cheios d' água e porque o tema merece um texto inteiro só pra ele.

Voltando pra programação da TV, não consigo agora me lembrar de mais nenhum programa que fosse marcante durante a semana, exceto o globo repórter, na sexta, mas eu não curtia muito. No sábado, tirando uns desenhos animados que passavam cedo, também não havia programas interessantes pra mim, ou talvez eu curtisse outras coisas fora de casa. E quase fechando a semana, lembro da triste música de abertura de Supercine, que sempre passou filmes horrorosos. Chego a pensar que essa música é intencionalmente triste, porque ficar assistindo a globo num sábado à noite é uma das coisas mais deprimentes que se pode fazer. Não digo que é triste ver um filme legal em casa no sábado à noite - pelo contrário, isso eu curto -, mas Supercine nunca é legal; tão ruim q até hoje não gosto de ouvir essa melodia.

O último programa do sábado era proibido pra mim, mas quando eu estava fora da vigilância familiar, me metia a assistir, coisa que acho que quase todos os garotos da minha idade deviam fazer. Não sei com que idade comecei com isso, mas foi ali, no fim da infância, início da adolescência. O programa era o cine privé da Bandeirantes, que antes rolava na sexta e se chamava sexta sexy. Refletindo hoje sobre esses filmes eróticos levinhos - que sempre mostravam menos do que eu desejava (e eu sofria pra ficar acordado até aquela hora) - acho que eram voltados pra garotada mesmo: afinal, quem ficaria em casa vendo filminho de sexo, se pudesse sair e tentar arrumar sexo real?

Pra não dizerem que não falei de outras telas domésticas na minha infância (cinema é outra história), lembro das primeiras vezes que mexi num computador. E nem foi em casa. Acho que o primeiro contato foi no trabalho da minha mãe, num escritório na Urca. Mas era sem graça. Uma tela preta que só reconhecia uns comandos chatos sempre com uma barra. Meu tio Alex, irmão do meu pai, também foi pioneiro nesse lance de computadores, mas ele era tão viciado no negócio que eu só ficava em volta assistindo. Lá em casa meu avô e meu tio maternos apareceram com um PC (não sei se um 286 ou 386), mas eles ficaram muito mais empolgados que eu. Meu avô bem que tentou me despertar pra máquina do futuro (até separava umas páginas do jornal que eram dedicadas à informática), mas eu continuava preferindo a TV e o videogame ao computador, que, vale lembrar, não tinha internet naquela época.

Quem diria que, passados uns 20 anos, eu não teria TV na minha casa, mas um PC, no qual escolho o que quero ver, ler, ouvir, me sento pra escrever sobre minha infância de poucas telas e de onde vou mandar pra outras telas o texto final. Na minha infância, éramos seis na casa (quando não estavam os namorados, aí chegavam à nove), e só havia uma tela. Hoje somos só dois aqui em casa e temos quatro telas (todas ligadas à internet, claro): dois celulares, o PC e mais um tablet; e, se aparecerem visitas, pode ter certeza que vêm trazendo pelo menos uma telinha e não demora muito pra perguntarem qual a senha do wi-fi. Não nego o valor do presente, mas é impossível não me sentir nostálgico com nosso passado monotelista. Hoje, não sei bem o que marca o tempo, mas acho que pode ser a timeline do Facebook, do Twitter ou do Instagram...



quarta-feira, 8 de abril de 2020

Mulheres do Século 20 (Mike Mills, 2017): uma família diferente.



Resumindo bastante, a trama gira em torno de uma senhora que foi mãe aos 40 anos, o seu filho adolescente e as mulheres mais jovens a quem ela pede ajuda para preparar seu filho pra vida. É um filme que aborda conflitos entre gerações e o faz com criatividade, fugindo dos clichês.

O longa tem um roteiro bastante original, já que a história é contada em primeira pessoa por mais de um personagem, com flashbacks e flashforwards muito bem executados. Falando assim pode parecer um filme difícil, mas não é.

Pra mim, além da originalidade narrativa, o mais interessante é que o filme mostra o conflito entre gerações e não coloca o adolescente como problemático, rebelde, incomunicável, expondo também as dificuldades da mãe nesse processo.

A trilha sonora merece destaque e tem muito a ver com as tentativas de mãe de compreender seu filho. Disponível na @netflixbrasil.




terça-feira, 7 de abril de 2020

Ghost: do Outro Lado da Vida (Jerry Zucker, 1990) e Atlantique (Mati Diop, 2019): respostas do além.


Imagine um personagem traído. Imagine uma injustiça das grandes. Imagine uma história de amor. Ainda está no começo do filme, mas você torce pelo ele, você quer ver como a trama vai se desenrolar, você quer que ele seja feliz, que fique com o grande amor da vida, que resolva aquela injustiça ou traição.

E aí, muito antes do final da história, o herói some, desaparece, morre. Só uma resposta do além pode restabelecer o amor, a verdade, a justiça.

Atlantique é um longa de 2019; Ghost, de 1990. Os dois são muito bons e estão na Netflix. Prefiro não falar mais nada pra não dar spoilers. Recomendo demais. 






domingo, 5 de abril de 2020

Que Horas Ela Volta? (Anna Muylaert, 2015): um lindo tapa na cara.

Há muitos anos uma mulher, Val, interpretada por Regina Casé, saiu de pernambuco e foi pra São Paulo trabalhar como empregada doméstica numa casa de sudestinos com grana.

O filme aborda as complicações e superações relativas à vinda da filha da Val, Jéssica, para prestar vestibular. O longa é muito bem executado, com ótimas atuações e, a meu ver, dá um lindo tapa na cara da classe média abastada, individualista e hipócrita. 

Recomendo demais esse filme da grande diretora Anna Muylaert. Também  gosto de outros trabalhos da cineasta, como Durval Discos (2002) e Mãe Só Há Uma (2016).






sábado, 4 de abril de 2020

Faça a Coisa Certa (Spike Lee, 1989): minorias, maiorias, amor e ódio.

Dança e luta abrem o filme. A música é forte, os movimentos, também. O locutor da rádio local avisa que vai esquentar e que a cor do dia é preto. E a trama esquenta mesmo, como a temperatura.

Na pizzaria do ítalo-americano Sal, encravada num bairro de maioria afro-americana, há vários retratos de celebridades brancas de origem italiana na parede. Um dia um cliente negro questiona a inexistência de retratos de negros ali. É expulso com agressividade. Daí em diante o calor aumenta ainda mais.

A meu ver, o filme é uma metáfora muito bem realizada sobre a concentração de poder nas mãos de poucos, que fazem o que bem entendem, desconsiderando o que sentem e pensam a maior parte das pessoas, alijadas do poder como minorias com baixa representatividade.

A narrativa mostra personagens interessantes. Sal, por exemplo, o dono da pizzaria, não é um vilão que só faz maldade. Mas reforça uma estrutura racista e excludente, defendendo que o direito de propriedade prevalece - no seu restaurante ele faz o que bem entender. 

Além de Faça a Coisa Certa, Spike Lee tem outros trabalhos muito legais, como o recente Infiltrado na Klan, Malcolm X, O Verão de Sam, O Plano Perfeito, entre outros longas, além de clipes, como They Don't Care About Us do Michael Jackson, e séries.



terça-feira, 31 de março de 2020

Amnésia/Memento (Christopher Nolan, 2000) e Uma mente Brilhante (Ron Howard, 2001): o espectador na pele do personagem

Além da originalidade dos roteiros, em especial o de Memento/Amnésia (idas e vindas na narrativa que exigem atenção), o espectador é colocado na condição do protagonista, na pele dele, e pode demorar a se dar conta disso.

Não há uma câmera na nuca do personagem principal; ele até pode narrar alguns trechos, mas não é uma narrativa em primeira pessoa comum. É como se você visse, vivesse e percebesse o mundo através dele, na mesma condição peculiar que o marca - nos longas, uma condição mental distinta.

Para evitar spoilers, digo apenas que, em Memento, o protagonista tem uma espécie de amnésia em que não consegue reter as memórias recentes e o roteiro foi construído em cima dessa condição, colocando-nos como o personagem, meio que perdidos entre um passado distante que é lembrado, memórias mais recentes que se esvaem e confusão sobre as outras personagens e os fatos, além de uma narrativa linear, em preto e branco, contando uma história paralela e complementar, que se mistura à vida do protagonista.

Já em Uma Mente Brilhante, fica complicado contar alguma coisa sem revelar a trama e certas surpresas importantes para a narrativa do longa. Sem perceber, o espectador é colocado na pele do protagonista, e o roteiro é incrível, embora menos chocante que o de Memento, que insiste na inversão em vários sentidos.

Vale a pena conferir os dois longas, que tiveram sucesso de público e de crítica.

O Irlandês (M. Scorsese, 2019): narrativas e tempo

Há muitas maneiras de contar uma história. A mais comum é a linear, começo, meio e fim, “the end”. Mas há filmes que fogem dos modos mais fáceis de narrar, brincam com o tempo, e contam, de forma original, os fatos, sem seguir a ordem cronológica: O Irlandês é um deles.

No mais recente longa de M. Scorsese, o espectador, inicialmente, é levado, num plano sequência interessante, até o narrador, já idoso e cheio de lembranças, que vai contar sua vida, como chegou até ali. É aí que a narrativa dá um primeiro pulo ao passado (como se voltasse ao “meio da história”), destacando uma viagem de carro de dois casais para um casamento.

E, ao falar dessa viagem ao casamento que é revisitada durante todo o filme, o narrador fala sobre um passado mais distante, explicando como ele se envolveu com as pessoas que mudaram sua vida, inclusive (e principalmente) do cara que está viajando com ele para o tal casório da filha de um dos personagens da trama.

O mais interessante é que o filme começa no presente (idoso narrador que se encontra numa espécie de casa de repouso), volta à viagem dos casais, regride mais no tempo, falando das origens, e vai intercalando, às vezes voltando ao presente, outras tratando do “meio” (viagem ao casamento) e também narrando como se deu seu envolvimento com certas pessoas e atividades - tudo isso num roteiro incrível, que, lá na frente, mostra o que houve de relevante no trajeto até a celebração do matrimônio.

O senhor, “ex-pintor de paredes”, faz vários flashbacks e flashforwards, indo, vindo, voltando e adiantando, até fechar a história, de modo muito bem construído, encaixando-se perfeitamente.

Outro filme que merece destaque na manipulação do tempo é Pulp Fiction (Q. Tarantino, 1994), em que a primeira cena é retomada no final, depois de algumas ramificações envolvendo núcleos de personagens diferentes, mas que se interligam de alguma forma. Obra-prima que ganhou o Oscar de melhor roteiro original. Ficam as indicações dos longas, que além da originalidade narrativa, são filmes incríveis.