sábado, 31 de maio de 2014

Robocop: uma metáfora sobre a exploração do trabalho

Quando certa manhã Alex Murphy acordou de seu sonho tranquilo - no qual dançava com sua mulher ao som de fly me to the moon na voz de Sinatra -, encontrou-se numa sala grande e clara metamorfoseado num robô. Estava de pé, acoplado a uma máquina e só recuperou seus movimentos aos poucos, obedecendo às ordens do senhor de jaleco branco, que o olhava de perto. Vestia uma armadura que emitia sons a cada movimento. Nervoso, perguntou o que estava acontecendo e pediu que o tirassem daquela carapaça metálica. Não pode ser atendido: aquilo era o seu corpo.

Não era um pesadelo. Depois de ser gravemente ferido por uma bomba, o policial Alex Murphy estava num laboratório, transformado em Robocop, um híbrido de homem e robô, cujo nome já suprime qualquer referência à sua humanidade. Dentre mutilados e doentes afastados da polícia - inválidos sob a ótica do mercado de trabalho -, Alex foi escolhido para se tornar produto (made in china) de uma empresa especializada em fabricar e vender robôs policiais pelo mundo afora, exceto nos EUA, onde uma lei os proibia.

Sob o discurso do medo reforçado por um jornal da TV, a ideia de fabricar o híbrido surgiu para burlar essa lei e transformar o poder público dos EUA em cliente. Essa é a história de Robocop, dirigido por José Padilha (o mesmo de Tropa de Elite), que é uma versão do filme homônimo lançado em 1987.

Robocop aborda muitos temas interessantes, mas vou procurar me ater à questão da exploração do trabalho. Talvez possa parecer estranho falar sobre isso analisando um filme que trata da utilização de robôs na segurança pública. Se o risco é a substituição de homens por máquinas, por que exploração humana?

Bom, o filme pode ser visto como a história do policial transformado numa máquina, com armadura metálica, visão computadorizada, acesso ao arquivo de dados e controle à distância. Mas pode ser interpretado também como uma metáfora do homem pós-moderno; ou melhor, de todos nós, que não temos membros robóticos (embora o celular pareça uma parte do corpo), mas que, ao cumprirmos as exigências profissionais, agimos como máquinas.

Aos que não perceberam, o primeiro parágrafo é uma paródia do início de Metamorfose, de F. Kafka. Em vez de metamorfoseado em inseto, o herói acorda como robô policial. E no lugar da rejeição que sofreu Gregor Samsa (o homem inseto kafkaniano), Robocop é aclamado por todos.

Na minha visão, a principal distinção entre Gregor e Alex é que um deixou de ser útil sob o aspecto profissional, enquanto o outro tornou-se o mais eficiente dos policiais, um exemplo de produtividade. Como um sonho dos chefes, passou de inválido ao melhor da categoria. Para alcançar esse nível de eficiência, Alex foi destituído das emoções, das lembranças, da fragilidade, da autonomia bem como da convivência social e familiar, ou seja, de tudo que o fazia humano.

Há quem leia metamorfose e entenda que Gregor não se transformou num inseto: ele teria passado a se ver e ser visto assim a partir do momento em que deixou de trabalhar, já que na sua família todos dependiam do seu dinheiro, fruto do exercício exaustivo da função de caxeiro-viajante, detestada pelo protagonista.

É interessante ressaltar que Gregor - mesmo metamorfoseado num inseto - continua capaz de se emocionar, apresentando-se bem mais sensível que as demais personagens que o cercam. Essa sensibilidade é nítida durante a narrativa e há um ponto peculiar que merece destaque: sua reação à música. Num trecho do capítulo 3, sua irmã toca violino na sala e os inquilinos mostram-se enfadados; Gregor, no entanto, comove-se com a música e tenta se aproximar da irmã para incentivá-la.

Já em Robocop, as emoções atrapalham o bom funcionamento da máquina, o que leva o cientista a controlar as substâncias no “corpo” de Alex para eliminá-las, a ponto de ele deixar de sentir afeto pela própria família. Tal estratégia, a meu ver, não difere muito do consumo de medicamentos psiquiátricos para adequação ao papel profissional. Remédios para ansiedade, para tristeza, para dormir na hora “certa” e para acordar “feliz” e produtivo, é claro, já que o mau humor prejudica o bom exercício das funções.

E também há uma cena (aos 18 minutos do filme) em que é demonstrada a reação das máquinas à música: um violonista vai tocar pela primeira vez com suas mãos robóticas; sua mulher o acompanha, ansiosa; ele toca por algum tempo e, ao se emocionar, o sistema falha; o cientista lhe explica que emoções intensas congelam o programa.

Robocop, portanto, é o herói aclamado, ou melhor, o funcionário (produto) perfeito: não se emociona; não prioriza a família (na verdade, chega a esquecê-la); não padece das fragilidades humanas; é controlado todo o tempo e ainda pode ser desligado, se demonstrar rebeldia ou prosseguir com investigações que não interessam aos poderosos - que no filme não são os políticos mas os empresários.

O comportamento do Robocop está muito diferente do que exige o discurso sobre profissionalismo? Impessoalidade, foco, metas, produtividade, jornadas enormes, acesso total e ininterrupto por meio de celular, vestir a camisa - ou a armadura que jamais pode ser retirada? Robocop é policial o tempo todo, é o “ser” reduzido à sua parcela profissional - é um superpolicial castrado. Freud explica.

E não para por aqui. Submetido a testes nos quais é comparado com robôs puros, Robocop mostra-se lento, hesita um pouco antes de atirar (certamente, por mais tempo que o Capitão Nascimento de Tropa de Elite, que parece mais robótico que Alex Murphy). O atraso do Robocop é um grave problema; ele tem consciência, decide, pensa e isso o torna ineficiente. Daí, o cientista faz uma intervenção cirúrgica para consertá-lo.

Mais ou menos aos 50 minutos do filme, depois do reparo e durante um novo teste, o cientista explica que fez uma pequena alteração, de modo que Alex nada decide a partir do momento em que começa a batalha e seu visor desce: “nos combates ele é só um passageiro de carona; pensa que está no controle, mas não está, é uma ilusão de livre-arbítrio.” Uma cientista, que observa o desempenho espetacular do Robocop ao destruir dezenas de robôs, conclui que se trata de uma máquina que pensa ser um homem.

Ilusão de livre-arbítrio. Achar que faz algo porque quer, por livre e espontânea vontade, fruto da própria e independente deliberação, quando na verdade não está no controle. Muitas pessoas vestem a armadura, a máscara profissional, e agem de acordo com o que exigem delas, mesmo que isso signifique a negação de seus valores.

Ao contrário do "pede pra sair" do capitão Nascimento em Tropa de Elite - que incentivava alguns recrutas a desistirem da carreira no BOPE -, em Robocop não há opções: Alex acorda preso à armadura, à profissão, sem escolha. 


Funções exaustivas, exercidas com alienação, destituídas dos valores ligados à identidade, objeto de exploração, mas dissimuladas pelo discurso da liberdade, que tenta encobrir a pura submissão às regras do mercado.

Não se trata de rejeitar o trabalho; de forma alguma. A ideia de empregar a energia humana para criar é ótima; mas não é isso que acontece em regra. A força é explorada e desvalorizada; o ser humano é reificado e a desigualdade cresce.

Vivemos sob o impacto do discurso do medo, cuja causa principal - segundo os jornais e o senso comum - é a violência dos criminosos, para a qual a solução seria o fortalecimento da polícia. No entanto, o Robocop de José Padilha deixa claro algo que poucos parecem enxergar: a pior violência não é a dos bandidos, mas a do império dos poderes econômicos, que, na verdade, é validada pelas leis.

A lei permite que uma jornada de 40 horas semanais seja remunerada com um salário mínimo, mas não impede que empresas lucrativas reduzam seus quadros. Com a globalização, as empresas transitam entre os países e compram de cada um o que encontram mais barato. Há muitas restrições legais para os imigrantes, mas não para os negócios. As funções do Estado vêm sendo reduzidas, ao mesmo tempo em que cresce o número de trabalhadores sem vínculo formal, ou seja, sem proteção legal perante a exploração.

Todavia, os jornais falam o tempo todo das agressões dos criminosos - nada dizem sobre a violência da exploração do trabalho, do medo de perder o emprego, de se tornar uma peça obsoleta, inútil para a produção, e passível de descarte. Isso não é violência? Não é uma boa causa para sentir medo? A polícia pode resolver esse tipo de situação?

A exploração da força de trabalho dilacera as pessoas e as modifica para encaixá-las às exigências do mercado; e se não há como torná-las úteis sob a ótica da produtividade, elas ficam de fora, largadas à própria sorte, já que o Estado deve ser mínimo.

Porém, ao contrário de Alex - que pediu pra sair da armadura -, muitos estão presos em suas carapaças, com o visor abaixado, trabalhando. Eles confundem poder de consumo com liberdade, morrem de medo dos criminosos e aplaudem o sucesso dos empresários famosos. Veem o capitão Nascimento como herói e acham a armadura do Robocop o máximo.