sábado, 7 de outubro de 2017

Velhas telhas

As velhas telhas
deixam entrar a chuva
mas também o sol.

Barca ao sol

A barca segue
pela água brilhante
lotada de sol.

Natureza urbana

Chovem gotas de ar condicionado;
Rugem carros e motos e caminhões.
À sombra do prédio descansa um cão
Magro, estendido como morto;
Sobrevoam o corpo inerte aviões e urubus.
O vento espalha folhas de papel
E faz dançarem sacos plásticos.

quarta-feira, 4 de outubro de 2017

pelas janelas da barca

o mar pelas janelas da barca mal se vê. se vê de longe o que é tão próximo como um paradoxo dessas janelas pequenas. o mar que mal se vê é cinza como chumbo e dele se veem brotar as patas da ponte, como uma centopeia atravessando uma poça de água suja. o barulho do motor e a trepidação lembram a respiração de um bicho, que atravessa o mar meio cansado levando parasitas em sua carcaça. de longe os guindastes parecem insetos, louva-a-deus, prontos pra mexer seus braços mecânicos e carregar estômagos de navios com contêineres, parasitas a serem levados por aí, singrando o mar cinza-chumbo. já perto do destino cruza o céu um inseto branco alado e barulhento, a pousar do lado esquerdo, rápido e duro como um besouro com rodas. ao redor o mar chumbo é como uma bacia de cinzas de uma fogueira queimando há séculos. pelas pequenas janelas da barca mal se vê.

terça-feira, 3 de outubro de 2017

À distância

Da minha janela
Sempre vi a montanha de longe,
Sua plácida silhueta cinza azulada:
A imagem da eterna solidez.

Essa imagem se manteve
Até o dia em que resolvi me aproximar;
Nesse dia aquela imagem de outrora –
Uniformemente azulada –
Tornou-se múltipla, fragmentada e colorida.
Estava quebrado o primeiro quadro.

O silêncio que lhe atribuía transformou-se
Em ruído intermitente.
De perto vi toda a vida e movimento que de longe
Sequer imaginava.

O vento movia todas as folhas de todas as árvores,
As quais eram pedras, quando olhava da minha janela.
A vida revelou-se pela proximidade.
Decidi tocar a montanha, já não me bastava vê-la e ouvi-la.
Entranhei-me nela;
Uma vez mais a imagem anterior tornou-se mera lembrança.

Na trilha que levava ao cume senti a sombra,
A umidade, o cheiro das folhas putrefatas;
Ouvi todos os intermitentes e infindáveis sons;
E toquei seus fragmentos.

Eu perdi a montanha ao adentrar na montanha.
Eu a possuía inteira e agora já não tenho aquele
Recorte cinza azulado – e não a ter é uma forma
Oblíqua de não me ter a mim.
Estou perdido dentro de nova e densa imagem.
Nada é plácido de perto.
O sol é belo à distância.
O outro é belo à distância.

Exausto, segui na trilha tortuosa e mal sinalizada –
O rio pelo qual tive que passar era frio e perigoso.
Mas insisti: queria chegar ao cume. E parecia faltar pouco
Para tanto: minhas pernas tremiam,
Meus braços estavam lanhados; minha roupa, gelada, fundida ao corpo.

Cheguei. Novamente a imagem se desfez. Tornei-me alívio e cansaço,
E senti a grandeza efêmera que é emprestada
Aos pequenos aos quais de repente se concede o poder de olhar bem longe.
Perscruto a paisagem. Vejo a placidez das pequenas casas à distância.
Vejo minha vila - eterna e sólida - e imagino minha casa.
Ela está incrustada lá, mas não consigo separá-la do todo,
Como não se consegue discernir uma árvore numa floresta observada à distância.
Imagino minha casa e a janela de meu quarto;
A janela pela qual sempre vi a montanha.
Imagino-me em casa, à janela, admirando a placidez da montanha.
Ah, como eu sou plácido e íntegro vislumbrado assim!
Sou uma como uma folha de uma árvore na montanha distante!

Porém, tal qual uma montanha,
De perto sou fragmentado, tortuoso e quase inescrutável.
Não tenho sequer trilhas dentro de mim; e meus rios são muitos.
Só eu me arriscaria a adentrar. Mas não sei se chegaria ao cume.

domingo, 1 de outubro de 2017

Pequeno (conto)


Chovia. Mas ali dentro – na ACE (Ala de Cuidados Especiais) da clínica psiquiátrica L.L. – pouca diferença fazia o tempo lá fora, já que a claridade entrava somente pelos tijolos vazados - do tipo cogobó -, que ficam do lado direito do prédio de apenas um pavimento, localizado nos fundos da clínica. Os tijolos vazados eram como grades, permitindo ver apenas parte do jardim, com uma árvore enorme bem na frente. Quando o sol está forte passa pelos buracos, projetando pequenas esferas de luz no chão e nas paredes. Mas naquele dia não havia sol, era um domingo chuvoso, e o fato de ser domingo parecia deixar tudo mais cinza, lento e úmido. Como uma lesma. Pode ser por que as pessoas em geral têm esse sentimento de modorra em relação ao domingo, esse sentimento de que a segunda já vem chegando, uma visão negativa do final dos dias de descanso e da iminente volta à rotina de trabalho.

Porém, no caso da clínica, esse sentimento era agravado pelas poucas atividades nos finais de semana, especialmente para quem estava no nível 1. Explico: na ACE ficavam pacientes de 4 níveis. Os de nível 1 só saem para consultas individuais com psiquiatras e psicólogos; os de nível 2 saem quando profissionais vêm buscar para atividades específicas, inclusive educação física, arteterapia etc.; os de nível 3 saem às 7:30 h da ACE e podem circular pela clínica até as 17 h; e por fim os de nível 4, que também saem às 7:30 h e podem retornar à ACE até as 20 h. Além desta ala, há mais cinco casas com vários quartos coletivos - três setores masculinas e dois femininos -, onde os pacientes têm maior liberdade para circular pelo espaço da clínica.

Para os pacientes da ACE, domingo era um dia com poucas atividades para os de maior nível e pior ainda para os de menor. Hélio, paciente de nível 1, não tinha muito o que fazer, já estava cansado de reler o exemplar de “Os velhos marinheiros”, de Jorge Amado, que tinha trazido pra clínica na pressa de sair de casa. Ele estava internado há oito dias na clínica, desde o início na ACE. O diagnóstico dele era dependência química e transtorno bipolar, e estava internado porque havia abusado dos seus remédios psiquiátricos, o que a família dele havia entendido como uma tentativa de suicídio. O dia demorava a passar. Proibidos os relógios, eram as refeições que marcavam as horas, mas não era o café da manhã que iniciava o dia e sim o banho obrigatório às 6:30 h. Para tomar café, era necessário, antes, enfrentar o banho, o que Hélio fez logo que o enfermeiro de plantão o acordou naquele dia.

Após, Hélio comeu o que lhe cabia: dois pães franceses pequenos recheados cada um deles com fatias generosas de queijo prato e presunto e dois copos de café com leite, já que o café puro era proibido. Depois do desjejum, Hélio assistiu à TV, que ficava trancada numa pequena cela, na única sala coletiva da ACE, onde também eram servidas todas as refeições. Uma TV para todos os treze pacientes: ele assistiu a um programa jornalístico seguido por um jogo de futebol. No meio da manhã, serviram fatias de melão. Perto da hora do almoço a sala ficou cheia: era mais falta do que fazer do que fome. Ele comeu macarrão, arroz, feijão, carne moída, salada de alface com tomate e gelatina de sobremesa. Hélio comeu rapidamente e foi para cama dormir, como costumava fazer.

Quando acordou, Hélio se viu preso debaixo das cobertas: estava escuro e ele não se lembrava de ter coberto a cabeça. Tentou se libertar do cobertor, mas não estava conseguindo; sentiu-se preso e passou a se mover desesperadamente; demorou a perceber que tinha diminuído: agora ele tinha em torno de 15 centímetros. Pensou em gritar, mas desistiu. Tudo indica que ele preferiu aproveitar o tamanho reduzido para fugir da clínica. Talvez ele não tenha chamado ninguém com receio de ser tachado de louco. (Ele tinha dúvidas, seria uma alucinação?). 

Pequeno, tudo se tornou mais arriscado. Descer da cama era perigoso. A própria coberta pesava sobre o corpo dele, obrigando-o a rastejar até a beirada da cama, de onde podia observar se era possível descer sem se machucar. Ao achar um lugar no qual o cobertor estava bem próximo do chão, desceu, segurando-se nas reentrâncias do tecido.

Não foi fácil e quando chegou ao chão a proporção das coisas pareceu assustá-lo; talvez ele tenha ficado envergonhado por sua nudez ou foi simplesmente o medo de se lançar na fuga. Correu por baixo da cama e se escondeu atrás de um dos pés do leito de ferro. Um enfermeiro entrou no quarto, mas procurava outro paciente e sequer olhou pra cama de Hélio, que se manteve escondido. A porta do quarto estava entreaberta; quando o enfermeiro saiu, ele correu em seu rastro e saiu para o corredor, não sem antes verificar se vinha alguém. Hélio parecia buscar a saída da ala e, correndo, entrou debaixo das mesas do refeitório. Poucos pacientes assistiam à TV; ele tentou passar longe deles.

Estava indo muito bem, até que um dos pacientes levantou pra pegar água e, sem vê-lo, quase pisou nele. Hélio se escondeu atrás do pé de uma das mesas e ficou ali até o outro paciente sair de perto. De lá, Hélio conseguiu passar para outra mesa e depois correu até a parede, ficando mais perto da porta, atrás da lata de lixo. Era o lugar mais perto que conseguia ficar da porta de saída da ala sem ser visto.

Com um barulho seco a fechadura da saída principal estalou, a porta se abriu e um médico entrou. Hélio chegou a se mover, porém pareceu não ter coragem para fugir naquela oportunidade. Continuou ali parado, tenso, vigiando a porta. Não demorou muito e um enfermeiro se aproximou da porta, que estalou, se abrindo. Hélio correu; o enfermeiro já havia passado quando ele chegou mais perto; a porta foi se fechando, ele correndo, o espaço para passar se estreitando. Hélio correu o máximo que pôde e pulou, na tentativa de atravessar pela fresta.

Quase conseguiu fugir. Foi por pouco. A porta o cortou ao meio.