quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Amor, liberdade e segurança

Segundo Bauman, “para ser feliz há dois valores essenciais que são absolutamente indispensáveis [...] um é segurança e o outro é liberdade. Você não consegue ser feliz e ter uma vida digna na ausência de um deles. Segurança sem liberdade é escravidão. Liberdade sem segurança é um completo caos. Você precisa dos dois. [...] Cada vez que você tem mais segurança, você entrega um pouco da sua liberdade. Cada vez que você tem mais liberdade, você entrega parte da segurança. Então, você ganha algo e você perde algo".

O sociólogo conhecido pelo termo “modernidade líquida”, ator de diversas obras sobre a fluidez da pós-modernidade, critica nossos tempos de total liberdade, na qual os laços são frouxos, abertos, além da reprodução das práticas de consumo nas relações pessoais, reificando humanos. No entanto, na minha interpretação, vejo Bauman como um saudosista, de certo modo conservador, tanto nos costumes quanto nas questões de estado e economia. Ele defende o Estado de bem-estar social pós-guerra, diante das suas experiência europeias, desconsiderando outros países e cenários periféricos numa visão eurocêntrica.

É claro que gosto muito do autor e mantenho minha admiração, especialmente nas críticas ao neoliberalismo e consumismo e também na cidadania, mas num aprofundamento não posso deixar de divergir, já que em uma sociedade patriarcal nunca houve igualdade de gêneros nem exclusividade imposta ao homem. Bauman critica a fluidez, mas é essa liberdade que reflete uma evolução no sentido de as pessoas não se submeterem a relações opressivas e expandir a capacidade de amar e construir novas formas mais abertas, como o poliamor. A questão é viver isso sem reificar. Bauman condena a liberdade, é um nostálgico dos laços perenes e exclusivistas.

Uma leitura do filme Her (2013, S. Jonze), numa perspectiva baumaniana, atinge “o paradigma de que são apenas as relações carnais que estão perdendo a força. Ao se apaixonar por um sistema operacional, Theodore parece suprir todas as suas necessidades dentro de um relacionamento. A forma virtual de se relacionar é a maneira que o protagonista tem de encontrar aquilo que realmente procura e idealiza, pois o sistema operacional se adapta cada vez mais às suas satisfações, tornando-se uma complementação do usuário.1

Nessa visão crítica da superficialidade virtual Bauman acerta em cheio, mas a verdade é que o filme não reflete a realidade, é uma hipérbole. Hoje ainda há pessoas por trás das máquinas, celulares e aplicativos: mensagens trocadas geram encontro entre pessoas reais. Desse modo, a internet e outras tecnologias não acabam com as relações.

Aqui proponho um diálogo entre o que colocações de Bauman e da psicanalista Regina Navarro Lins. Enquanto o sociólogo se fecha no passado, Navarro Lins já enxerga mudanças positivas e um futuro com outras configurações afetivas e familiares. Segundo a psicanalista “poliamor é a tradução livre para a língua portuguesa da palavra polyamory (Polyamory é uma palavra híbrida: poly é grego, e significa muitos , e amor vem do latim), que descreve relações interpessoais amorosas que recusam a monogamia como princípio ou necessidade. Por outras palavras, o poliamor como opção ou modo de vida defende a possibilidade prática e sustentável de se estar envolvido de modo responsável em relações íntimas, profundas e eventualmente duradouras com várias/os parceiras/os simultaneamente.”2

Regina Navarro Lins compreende a liberdade e a abraça; Z. Bauman vê com desconfiança, dando maior ênfase à defesa da segurança. Só tempo vai mostrar como a sociedade vai desenvolver o modo de se relacionar, mas desde já se veem novas modalidade de relacionamentos mais complexos. Na dança da vida, entre a liberdade e a segurança, as pessoas vão descobrir como querem amar.
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2 blogosfera.uol.com.br/2016/08/06/da-monogamia-ao-poliamor/

As Bahias e a Cozinha Mineira - Lavadeira Água (Áudio Oficial)

sábado, 10 de dezembro de 2016

Museu do amanhã

Um grande tatuí quase morto
À beira da baía de Guanabara,
Navio branco que passou do porto e
Das águas escuras com sua carapaça clara.

Fóssil novo e reluzente,
Exoesqueleto brilhante e alvo,
Prédio derrubado por acidente,
Gigante náufrago por acaso salvo.

Quase totalmente cercado de mar e mares -
Água suja, fétida, colorida de combustível -,
A ostentar suas estruturas triangulares,
Um corpo que se move de forma previsível.

Um homem que se aproxime da sua boca-entrada
O verá grande, amplo, desdentado e faminto;
Mas ao olhar para o lado, o verá como uma ossada
De um daqueles enormes navios extintos.

Para nada o seu exoesqueleto se move:
Um gasto de energia eterno e desnecessário.
Não voa, não nada, não anda, embora inove,
mudando e iluminando o velho cenário.

A velha e sombria praça do porto gigante
Agora - sem anteparos - encara o mar,
Mas inda guarda seus becos logo ali, adiante,
Às sombras de edifícios e morros a se abandonar.          
                                                          30/12/2015


sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Cry me a river: o choro dos manipulados

Cry me a river. Agora, os que foram manipulados podem chorar rios. O golpe se aprofunda e agora parte da classe média começa a sentir medo. Lutem ou chorem rios...

"Now you say you're lonely
You cried the long night through
Well, you can cry me a river
Cry me a river
I cried river over you
Now you say you're sorry
For being so untrue
Well, you can cry me a river
Cry me a river
Cause i cried, i cried, i cried a river over you...”

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

De olhos bem abertos aos dogmas (Kubrick, 1998)

Nunca homens e mulheres se aventuraram com tanta coragem em busca de novas descobertas, só que, desta vez, para dentro de si mesmos. Cada um quer saber quais são suas possibilidades, desenvolver seu potencial. O amor romântico propõe o oposto disso, pois prega a fusão de duas pessoas. Ele então começa a deixar de ser atraente. Ao sair de cena está levando sua principal característica: a exigência de exclusividade. Sem a ideia de encontrar alguém que te complete, abre-se um espaço para outros tipos de relacionamento, com a possibilidade de amar mais de uma pessoa de cada vez”, diz a psicanalista e escritora Regina Navarro Lins.*

A exclusividade é um dogma. Por que o amor tem que se restringir a duas pessoas? Por que o amor não pode se expandir? O que acontece com os desejos? E se nos revelarmos? A revelação é o que acontece no filme “De olhos bem fechados” (1998), de S. Kubrick. Contém spoilers! Alice, personagem interpretada por Nicole Kidman, revela a seu marido, Dr. Bill (Tom Cruise), seu desejo sexual por outro homem.

A partir daí, Bill entra em um processo de desejos, fantasias e rituais. Vai parar num assombroso baile de máscaras em que várias pessoas transam livremente. A loja de máscaras e os diálogos dão a entender que vivemos no mundo do arco-íris e que o baile é além, um cenário pós-arco-íris. Um piano sombrio atravessa todo o filme. O fato é que na cena final, depois de toda busca frustrada de Bill, de todas as fantasias e máscaras caídas, Alice diz que eles tem que fazer uma coisa o mais rápido possível: “foder”. O diálogo final indica que o casal vai continuar se amando, construindo a relação.

Outro filme que trata da exclusividade de um modo criativo é Her (Ela, de Spike Jonze, 2013), ganhador do oscar de melhor roteiro original. No filme, que se passa num futuro não tão distante, Theodore, personagem de Joaquin Phoenix, se apaixona por Samantha, cuja voz é de Scarlett Johansson. Tudo normal para um cara que estava desolado com o fim de um longo relacionamento, exceto pelo fato de que Samantha é um novo sistema operacional.

Ela passa a acompanhá-lo durante todo o tempo, no computador, no celular, em qualquer tela, em fones de ouvido. Theodore trabalha escrevendo cartas pessoais comoventes para outras pessoas e Samantha o ajuda em tudo, desde a hora de acordar até seus sonhos. Ela não tem corpo, mas tem voz, expressa sentimentos, vontades e os dois passam a namorar.

Chegam até a viajar juntos para uma cabana. Tudo se abala no momento em que ele descobre que Samantha se relacionava com várias outras pessoas e sistemas operacionais ao mesmo tempo. A relação prescindiu de um corpo, mas foi enfraquecida pelo dogma da exclusividade. Theodore desaba quando descobre que não é o único. E por que agir assim se ela o amou de qualquer forma? O poliamor já é uma realidade, a liberdade e a felicidade não devem ser limitadas por dogmas.

Concluindo com as palavras de Regina Navarro Lins: “é provável que o modelo de casamento que conhecemos seja radicalmente modificado. A cobrança de exclusividade sexual deve deixar de existir. Acredito que, daqui a algumas décadas, menos pessoas estarão dispostas a se fechar numa relação a dois e se tornará comum ter relações estáveis com várias pessoas ao mesmo tempo, escolhendo-as pelas afinidades. A ideia de que um parceiro único deva satisfazer todos os aspectos da vida pode vir a se tornar coisa do passado.”

*Regina Navarro Lins (Rio de Janeiro30 de novembro de 1948) é uma psicanalista e escritora brasileira. Também é palestrante em assuntos como relacionamentos afetivos e sexualidade.




quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Fumaça, por As Bahias e a Cozinha Mineira



No colo da saudade, eu
Conduzi o braço do teu rio
As selar-me na boca o traço do vazio
Do seco, do seco, do seco na boca
Baseado da fumaça que ameaça
O vácuo da tua forma oca

Amor
Amor
Amor

Que vazio, que vazio
Saciou meu ventre com o regalo teu
Arregalou meus olhos
Arrebatou-me, meu Deus

Na fumaça da fumaça, dei a massa
Dei a massa consumida
Pela brisa da fogueira que a beira
De um beijo seu, se queimou
Wow

terça-feira, 22 de novembro de 2016

Legaliza! Chega de violência

"Não se tem notícia que a Argentina tenha se tornado um país de drogados por conta da liberação do uso de entorpecentes
Rafael Muneratti, defensor público do Estado de São Paulo
O direito ao prazer ainda está garantido na Constituição
Luciana Boiteux, representante da Associação Brasileira de Estudos Sociais do Uso de Psicoativos
Deixar de incriminar não afetará o consumo. Em países em que houve a descriminalização não houve aumento do consumo
Cristiano Avila Maronna, do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais
A criminalização ou o castigo ao usuário de drogas afeta o acesso à saúde, afeta o tratamento. O usuário, na maior parte das vezes, é uma vítima do seu vício
Pierpaolo Cruz Bottini, advogado e representante da ONG viva Rio
A lei antidrogas brasileira funciona como instrumento de criminalização da pobreza
Rafael Custódio, da Conectas" (el pais)
Gente, vamos pensar no assunto. A guerra contra as drogas nunca funcionou, só aumenta a venda de armas e a violência. 

Links sobre o tema:

http://www.diplomatique.org.br/editorial.php?edicao=2

http://g1.globo.com/sp/ribeirao-preto-franca/noticia/2012/10/composto-da-maconha-alivia-fobia-social-e-ansiedade-diz-estudo-da-usp.html

http://brasil.elpais.com/brasil/2015/08/19/politica/1440017854_649230.html

https://youtu.be/G-BFxtdQQE8

https://youtu.be/ZyFkUqkFM2A

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Reflexos obscuros da queda livre (Black mirror)

O tema é “Queda livre”, primeiro episódio da terceira temporada da série Black Mirror (Netflix). Não, esse texto não tem revelações da trama, é apenas uma leitura da ideia, especialmente do uso da tecnologia para avaliar pessoas e colocá-las em níveis ou classes diferentes. Mas é melhor ver primeiro e ler depois.

A primeira cena é de uma mulher correndo com um celular na mão, olhando pra tela o tempo todo. Daí em diante todos os encontros dela geram avaliações, notas de 1 a 5. Um esbarrão pode render notas baixas e um bom atendimento a troca de 5 estrelas marcadas rapidamente na tela. Vale pra tudo: fotos, postagens, atitudes, todos podem se avaliar, mas a nota dos mais bem avaliados (acima de 4.5) tem peso maior na pontuação. E essas notas determinam tudo na vida da pessoa: acesso a casas, financiamentos, serviços, empregos, pessoas com quem se relacionar etc. essa é a ideia. 

No Uber tem isso. Você faz a corrida e rola uma avaliação mútua. Então, isso passa a fazer parte de todos os atos. As pessoas tornam-se reféns (e algozes) das avaliações, dali vem o status de cada personagem. Reprovação social gera queda de pontos. Autoridades podem punir com perda de pontos. Como outros episódios de Black Mirror, esse causa um mal-estar. Ainda bem que é ficção, tento me aliviar. Mas, refletindo um pouco mais, fico assustado ao pensar que a realidade é parecida ou até pior.

O critério de avaliação atual baseia-se na desigualdade, construída historicamente, sendo evidente a dificuldade ou proibição do acesso de certas pessoas a determinados locais, serviços, relações sociais etc. E no episódio, a princípio, não se veem mendigos, pessoas famintas, trabalho escravo (talvez o fim revele como lidam com os desajustados); não se fala em desemprego e as pessoas parecem estar vivendo com conforto. No presente, na realidade, há miséria, pobreza e uma enorme restrição dessas pessoas a serviços essenciais de qualidade (educação, saúde etc.), concessão de crédito, empregos com maior remuneração etc. E ainda há avaliações, como a das roupas (moda), do modo de falar, da origem, da cor da pele, do gênero, marcas dos produtos que usa etc. Isso sem falar do individualismo, da falta de consciência de classe.

Como são avaliadas pessoas pobres, sem estudo formal, que não dominam mais línguas, sem a bagagem cultural exigida, sem a aparência imposta, que moram em locais discriminados? Como são dadas as oportunidades? A ficção não se esgota na trama de personagens distantes de nós, a fantasia, a imaginação apontam pra realidade. A ficção é um reflexo crítico da vida. Nossas avaliações, interações e acessos também estão sendo definidas por critérios falhos. E as pessoas, tão imersas nesse sistema, muitas vezes não veem suas estruturas.


quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Delação premiada é direito de todos?

Traficante preso preventivamente em Bangu, falando com seu defensor:

"Doutor, quero fazer minha delação premiada. Fui pego, tô no erro, doutor, mas quero fazer a delação pra me livrar da cadeia. Falo se me derem perdão total. Ou pode ser tornozeleira também. No máximo. Mas sem tranca, sem tranca. Se tiver tranca nem falo, nem vale a pena. E não vai ser tipo o esquema da lava jato, não, doutor. Na lava jato é o esquema de entregar parte da grana ou entregar alguém e aí ficar na boa. O cara que for cumprir pena é o otário, o último da fila, o que é mandado e que nem tem grana pra perder. Tá ligado? Começou com os empresários e aí eles deduraram, se livraram da tranca, deram grana, jogaram o problema no colo dos políticos. Agora os políticos tão aí... podem entregar outros e os pequenos. E adivinha quem vai pagar cadeia? Os pequenos. É claro! Os grandes já tão na rua, voltando. Herdeiros, milionários. Eu vejo TV, doutor. A gente vê eles com pena de nada, indo pra rua, pra casa. No meu caso, não vou entregar ninguém. Mas vou entregar a grana do crime e a droga escondida. Não dá pra entregar parceiro. É morte. Mas tenho o direito de ganhar prêmio, não tenho? Vou entregar e pronto, rua. Como é que isso? Porque a gente vê empresário rico livrando a cara em caso de mais de milhões. E aí, como é que faz com traficante pobre? Traficante pequeno, que é pego com drogas, rádio e um pente de balas, mas sem pistola, só o pente, como é que fica a delação? Tem prêmio de que? Sou primário, vou entregar tudo, quero perdão do juiz. Doutor, eu vendia mesmo, traficava, mas não faço maldade não, nunca fiz. Arma é pra defesa, intimidação e no caso só o pente, que não mata ninguém. Me disseram que tá na lei que entregar os produtos do crime é perdão, é rua direto. É verdade ou só tem delação premiada pra empresário rico?"

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Lucros ou impostos?

A elite, o poder econômico se escondem atrás do discurso ideológico de que são impostos que encarecem tudo, culpando o Estado. A direita fala da necessidade de cortar direitos, flexibilizar, reduzir encargos, "enxugar a máquina pública". Mas a margem de lucro no Brasil é uma das maiores do mundo e é bastante comum os estados concederem isenção fiscal, como no caso do Rio, que deixou de arrecadar algo em torno de 200 bilhões nos últimos anos. As empresas abusam e a conta é jogada pro povo. Capitalismo atuando. Vale muito a leitura dos textos da Carta e do Justificando:   


terça-feira, 8 de novembro de 2016

Calçadas, espaços e poder



Que tal pensarmos sobre calçadas? Sobre o espaço que temos pra andar nas calçadas? Você, leitor, já deve ter passado por um momento em que viu a calçada cheia e teve dificuldade de passar, de caminhar livremente, de seguir seu caminho no seu ritmo pela calçada. E isso pode ter acontecido pelos mais diversos motivos: um casal com um cachorro com a guia esticada; uma família numerosa que anda lentamente como se não existisse mais ninguém querendo passar por ali; um grupo de jovens conversando em voz alta e vindo em bloco no sentido contrário sem sequer perceber que esmaga pessoas que estão tentando caminhar, em festas populares etc.
O que você faz quando se vê numa situação assim? Pede licença? Vai pela rua, se arriscando? Tenta passar pelo cantinho, meio que esmagado? Como faz? Bom, essa é uma situação comum, em que o espaço nas ruas, o espaço público (físico) parece ser disputado entre as pessoas, cada uma delas com interesses diferentes, com ritmos, necessidades e intenções diversas. Na verdade, uma mesma pessoa pode apresentar interesses diferentes a cada dia: pode ser que um dia esteja caminhando lentamente com os avós e em outro queira correr, na mesma calçada.
A pergunta que faço é: como conciliar esses interesses diferentes e por vezes contrários? Como conviver naquele mesmo espaço, na calçada? Como andar a cada dia por ali sem se submeter aos interesses de grupos maiores, mais fortes, nem impor aos demais os seus interesses, suprimindo os direitos alheios? É a lei do mais forte que dever prevalecer? Como fazer no dia em que você estiver sozinho e um grupo grande o empurrar para a rua, pra cima dos carros em alta velocidade?
Fiz muitas perguntas. Pense nas respostas antes de prosseguir a leitura do texto. Tente refletir sobre essas situações: como você deve agir quando está num grupo grande e também quando está só, diante de um monte de pessoas que seguem pela calçada, criando um muro e sem perceber sua presença.
Pois bem. Isso foi uma metáfora para o fascismo, sobre o exercício do poder. Qual o critério estabelecer para definir quem terá prevalência sobre o espaço na calçada, na política, nos governos, na definição das normas, nas determinações do poder econômico? Na vida há grupos que esmagam outros. Há aqueles que são donos de espaços, que compram e dominam vastas extensões, oprimindo os mais pobres. E são eles que pedem menos ou nenhuma regulamentação, que pedem um estado mais fraco, reduzido, mínimo. A desigualdade ainda é imensa, mesmo com a retirada de milhões de pessoas da miséria.
A imposição de medidas neoliberais só aprofundam a desigualdade. Piketty demonstra a concentração de renda e patrimônio para um percentual mínimo da população, em detrimento das maiorias cada vez mais pobres (veja link abaixo). Com a ausência de regulamentação, não existiria calçadas, seria tudo propriedade privada, como já é no asfalto.
O foco da mídia e do senso comum geralmente se atem ao poder político, nada fala sobre o poder econômico. Vemos prevalecer o discurso de que os políticos são todos iguais, a retórica da corrupção generalizada, sem vinculá-la ao capitalismo. E no assassinato da política vemos mãos fascistas. O momento é de luta. As ocupações e manifestações estão aí.



sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Como o Brasil se deixa manipular pela elite

Falo do livro do professor Jessé Souza "A tolice da inteligência Brasileira ou como o país se deixa manipular pela elite". É muito bom. O livro trabalha com a desconstrução muito bem articulada da visão geral fundada em Freyre, Buarque e Faoro. A clareza dos argumentos corrói criativamente as mais de mil e quinhentas páginas de Casa Grande e Senzala, Raízes do Brasil e Os donos do poder, obras que até então eram sempre vistas como a verdade, como se dotadas de caráter sagrado. Jessé reconhece o valor das obras numa crítica profunda que atinge suas raízes, a sobrar pouco mais que o viés mitológico. O cerne é que a visão dos autores consagrados não é científica e se assemelha a uma forma de "racismo" (culturalismo), ao colocar-se sempre em posição de submissão ao modelo externo, além de atacar o Estado e defender o mercado, como se a corrupção se restringisse à esfera púbica e não fosse inerente ao capitalismo. 

"Nos bolsos do 1% mais rico da população brasileira está o resultado do trabalho dos 99% restantes. E assim é há muito tempo, diante do olhar passivo de toa a população subjugada que quase nunca levanta a voz contra esse estado de coisas é porque a violência física que antes permitia um desigualdade tão grande e uma concentração de renda tão grotesca foi substituída no Brasil formalmente democrático de hoje, por uma espécie de violência simbólica, que se disfarça de convencimento pelo melhor argumento e isso se faz com o sequestro da inteligência brasileira."  

Link para resenha do cafezinho:

Questões jurídicas envolvendo ocupações (site Justificando)


http://justificando.com/2016/11/03/um-breve-manual-sobre-questoes-juridicas-envolvendo-as-ocupacoes/

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Partidos de esquerda no Brasil

Já escrevi algumas vezes sobre a crise de cidadania, a falta de participação das pessoas nos processos coletivos, na construção dos partidos e na atuação dos governos. Tudo isso ligado ao discurso de falência da política que prevalece na grande mídia, ao qual me contraponho. Agora, vou falar um pouco sobre nossos partidos de esquerda (ou que são chamados assim), que também tem sido atacados pela retórica antipolítica.

Pra começar, nossos partidos à esquerda não são comunistas nem revolucionários. Os fatos de serem partidos na ordem jurídica vigente já os colocam como reformistas e com a nossa Constituição de 1988, que é capitalista e protetora da propriedade privada, não há como instaurar um regime comunista. Nossa esquerda partidária está mais para defensora do estado de bem-estar social, uma forma de capitalismo abrandado, que se fortaleceu no pós-guerra e vem sendo destruído pelas práticas neoliberais.

Os partidos de esquerda tem propostas de fortalecimento dos serviços essenciais do Estado e assim agem em cumprimento à nossa Constituição, que é nitidamente alinhada às políticas de bem-estar social. Um leitura das propostas da esquerda e das normas constitucionais deixa isso muito claro.

E essa ideia de serviços essenciais e de qualidade prestados diretamente pelo Estado é algo adotado em muitos países capitalistas desenvolvidos, como vemos na Europa e até nos EUA, onde a educação pública básica é frequentada também pela classe média, embora lá a saúde esteja privatizada e com acesso restrito.

Os partidos à direita - aqui e no resto do mundo - tem uma visão de redução do Estado, atingindo os serviços essenciais. Numa perspectiva de globalização, a direita quer fazer de tudo para reduzir o estado, a proteção dos trabalhadores, a tributação que mantém os serviços essenciais, e assim atrair as grandes empresas, que se instalam onde houver mais facilidades, menos custos. A nossa diferença é que muitas das empresas da elite brasileira obtém privilégios do Poder Público.  

E a direita sabe da importância de dominar também o Poder Judiciário, porque é dele palavra final sobre a interpretação das normas constitucionais. Com a nossa atual Constituição, fica complicado impor o estado mínimo e é por isso que os governos de direita fazem emendas e contam com a atuação do STF para esvaziar o conteúdo dos direitos assegurados na Lei Maior.

O mais curioso é que muitas pessoas que votam nos partidos de direita querem passar em concursos públicos e fazem uso dos serviços públicos de excelência, como nossas universidades e alguns órgãos ligados à saúde. E também pagam caro escolas particulares e planos de saúde, que muitas vezes oferecem serviços ruins.

Nossa tributação é injusta, mal feita, onera demais os mais pobres e a classe média, há muita sonegação, facilita pros ricos, e a arrecadação é baixa, comparada com outros Estados. Vale a pena pesquisar e se informar sobre o assunto. O discurso da grande mídia e da direita não aborda isso, defende cortes nos serviços, nos tributos e não uma reforma que promova justiça, melhor arrecadação e qualidade nos serviços. Na verdade, é a esquerda que tem defendido essa pauta e tem sido atacada com argumentos que não correspondem à realidade.

Na década de 1950, quando o Brasil era muito menos desenvolvido, era comum as pessoas de classe média estudarem em escolas públicas, junto dos mais pobres. Nas últimas décadas só os mais pobres permaneceram no ensino público. A classe média está pagando caro por ensino privado. Não seria mais justo pagar menos mensalidades, ter uma tributação mais justa e promover um ensino público de qualidade?

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Aos indignados - convite à cidadania

Muito se fala sobre crise de representatividade, mas penso que o problema é mais profundo. Não se sentir representado é mais uma consequência da crise de cidadania e da prevalência de um discurso de falência da política. A maioria das grandes empresas da mídia descrevem o Estado e os políticos como algo ruim, mau, como se todos estivessem envolvidos com corrupção, como se só existisse a politicagem. Essa visão de que tudo é corrompido, de que só existe politicagem liga-se ao fascismo. Falta nas escolas educação para formar cidadãos, para que as pessoas desenvolvam senso crítico e se interessem e participem da política.

A maioria das pessoas demonstra raiva dos políticos, compartilha reportagens sobre corrupção, xinga, grita, fica indignada. Mas grande parte dessas pessoas nunca colocou os pés numa reunião de um partido, nunca tentou participar, ver como funciona a escolha das propostas, dos candidatos, dos programas. Querendo ou não, gostando ou não, é dos partidos que virão os nossos representantes. O modo de vida consumista contamina tudo. Escolher candidatos, atuar para a construção dos governos, não é como ir ao supermercado ou shopping escolher produtos.

Mas é assim que muitos agem: de dois em dois anos ficam surpreendidos e indignados com as escolhas que tem de fazer, como se os candidatos fossem produtos ruins numa prateleira de uma loja arcaica. A mesma coisa acontece com os sindicatos e outras organizações coletivas: as pessoas não participam e depois ficam reclamando, cheias de raiva, como se fossem meras vítimas de um processo macabro e misterioso. Não é assim. Há processos deliberativos, votações, assembleias e muitos não vão, não se informam, não querem saber e depois ficam reclamando, reforçando padrões individualistas, frustrantes e ineficazes.

Se você está surpreso com os candidatos é porque não acompanha a política, não participa de nenhum partido, e uma parcela na restrição de escolhas é responsabilidade sua também. Os partidos são construídos por pessoas e se você fica afastado contribui para sua surpresa e indignação. Sei que é cansativo, desgastante, que a gente trabalha demais, que tem família, outras coisas pra cuidar etc. mas, se a gente não praticar cidadania, não respirar política, vai ser difícil se sentir representado...  

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Ocupação das escolas públicas: aspectos jurídicos (texto resumido)


O presente artigo trata da ocupação das escolas públicas pelos alunos, analisando seus aspectos jurídicos bem como as consequências perante o Estado, tendo em vista a relevância e repercussão das aludidas manifestações a partir do ano de 2015 até junho de 2016.
        Com efeito, é de suma importância compreender o enquadramento atribuído ao movimento do corpo discente da rede pública de ensino no Rio de Janeiro e em São Paulo, verificando-se as diferentes interpretações e seus efeitos no tocante à interação com o Poder Público. Embora os protestos tenham se espalhado pelo país, o presente trabalho aborda apenas as mobilizações realizadas nos Estados fluminense e paulista.
       Na hipótese, destacam-se duas interpretações jurídicas antagônicas acerca das ocupações, quais sejam: (i) são atos ilegais e devem, portanto, ser reprimidos, classificando-os como invasão de bens públicos; (ii) trata-se de exercício de direitos previstos na Constituição da República de 1988, razão pela qual as ocupações devem ser respeitadas.
         Pretende-se no presente trabalho expor e analisar a origem e as causas da aludida ocupação das escolas públicas, investigando seus aspectos jurídicos, as diversas perspectivas e interpretações, assim como suas consequências perante o Estado.

NOTAS SOBRE A ORIGEM DA OCUPAÇÃO DAS ESCOLAS PÚBLICAS
De acordo com as informações obtidas nos principais veículos de comunicação, verifica-se que, a partir do segundo semestre de 2015, estudantes secundaristas da rede pública de ensino deram início à ocupação das escolas.
Em São Paulo, onde começou o aludido movimento, os alunos, a princípio, manifestaram-se contra o que se chamou de “reorganização escolar”, plano que o Poder Executivo do estado paulista pretendia implementar, com mudanças radicais no ensino público, remanejando alunos e funcionários, de modo a reduzir o número de colégios, concentrando em determinados locais as unidades de educação, com o consequente fechamento de diversas escolas. O projeto do Governador Geraldo Alckmin (PSDB/SP) objetivava transferir trezentos mil alunos e fechar noventa e dois colégios. Tais medidas, evidentemente, dificultariam o acesso de milhares de estudantes à rede de ensino público e gratuito do Estado.
O movimento dos alunos de São Paulo se inspirou na experiência dos secundaristas chilenos, os quais ocuparam centenas de escolas no ano de 2006, a fim de reivindicar passe livre e melhoria da educação pública. A manifestação no Chile, que ficou conhecida como “revolução dos pinguins” (referência ao uniforme escolar no país), levou à criação do manual “como ocupar um colégio?”, que orientou a manifestação dos estudantes brasileiros.
Inicialmente, os alunos paulistas, acompanhados de seus pais e professores, protestaram contra o plano do governo estadual por meio de passeatas. No entanto, como as manifestações não estavam atingindo o resultado esperado, já que o governo continuou distante do diálogo, os secundaristas decidiram ocupar escolas, seguindo as instruções da cartilha chilena.
Percebe-se que a ocupação das escolas é uma estratégia de mobilização que surge como alternativa às passeatas e manifestações em ruas e praças. Tendo em vista que os meios de protestos mais tradicionais se mostraram ineficazes e até perigosos - diante da truculência da polícia -, os alunos decidiram ocupar as unidades de ensino, de modo pacífico.
Diante das medidas anunciadas pelo governo estadual de São Paulo bem como da desordem do ensino público no Rio de Janeiro, a mobilização dos estudantes surgiu como resposta, em uma clara tentativa de resguardar direitos que vêm sendo diluídos por políticas de cortes e crescentes privatização e precarização de serviços essenciais e prestações positivas do Estado, as quais se relacionam à promoção da igualdade material (direitos fundamentais de segunda dimensão).

    FATOS E INTERPRETAÇÃO: PROBLEMÁTICA
Não há dúvida de que a aplicação do direito está vinculada à interpretação, construindo-se uma relação entre os fatos e as normas que incidirão na hipótese. De acordo com Ferraz Junior (2006, p. 14-35), o ato interpretativo é problemático, tendo em vista que há múltiplas vias que podem ser escolhidas, existindo para o intérprete um espaço de liberdade, que é um pressuposto da hermenêutica jurídica.
Com base na análise das decisões judiciais e dos atos da Administração Pública, pretende-se verificar qual o enquadramento jurídico acerca da ocupação das escolas pública foi predominante, constatando-se, já de início, um conflito aparente entre a aplicação da norma do Código Civil - que levaria à retomada da posse pelo Estado sem intervenção do Poder Judiciário - e a prevalência do exercício dos direitos de reunião e de manifestação, assegurados no artigo 5º, incisos XVI e IV, da Constituição da República.
E desse processo hermenêutico - ato problemático - surgirá o enquadramento do protesto e seus efeitos.

INTERPRETAÇÃO DE NATUREZA PRIVATISTA, COM NUANCES DE DIREITO ADMINISTRATIVO
Ao que tudo indica, a primeira exegese de caráter jurídico foi a realizada na decisão em relação a ação de reintegração de posse proferida pelo Juízo da 14ª Vara da Fazenda Pública da Comarca da Capital/TJSP, nos autos n. 101946387.2016.8.26.0053. Em síntese, tal decisão impôs condições para o cumprimento da liminar para “cessação de esbulho” supostamente ocorrida na sede do CEETPS, como o uso de força policial desarmada e pessoalmente comandada pelo Secretario de Segurança Pública.
Certo é que esta decisão foi atacada por via de mandado de segurança, que teve sua liminar deferida. A decisão original, de 04/05/2016, fazia menção, em sua fundamentação, no sentido de que o Estado pode se valer do “desforço imediato na defesa da posse, diante da ocupação ilícita”.
Em seguida, Procuradoria-Geral de São Paulo (PGE/SP) elaborou o Parecer nº 193/20161, atendendo a consulta da Secretaria Estadual de Segurança Pública, indicando como solução prioritária a utilização do desforço necessário, mecanismo de autotutela previsto no artigo 1.210, parágrafo primeiro, do Código Civil (doravante, CC/02), tendo em conta também a autoexecutoriedade nos atos administrativos em geral e notadamente das medidas de policia administrativa, vinculando o procedimento ao Secretário de Segurança Pública.
Na interpretação dos fatos, entendeu o órgão do Estado responsável por sua atuação jurídica, em consonância com o governo do Sr. Geraldo Alckmin, por desconsiderar totalmente o caráter de manifestação dos alunos e consequentemente negar a via exegética que levaria à incidência de direitos fundamentais, previsto na Constituição da República Federativa do Brasil – CRFB/88.
O aludido Parecer nº 193/2016 tratava a mobilização estudantil como uma mera invasão de propriedade privada e ainda sugeriu o emprego de força policial proporcional ao agravo. Sendo ato do governo estadual, a polícia a atuar na repressão seria a Polícia Militar de São Paulo, órgão ligado à Secretaria de Segurança Pública do Estado, conhecido por sua violência.
Outro efeito da interpretação da PGE/PS, não menos importante que o primeiro, era a de que a retomada da posse não deveria ser submetida à chancela do Poder Judiciário, seria, portanto, uma ato imediato, a ser autoexecutado. Logo, bastaria ao Poder Público agir: convocar a polícia militar e ingressar nas escolas, como se fossem simples prédios, expulsando os invasores, usurpadores ilegítimos da posse; não haveria sequer necessidade de ajuizar ação de reintegração de posse com pedido liminar.
O tema gerou ampla divergência e, ao mesmo tempo em que o Governo de São Paulo agia para reprimir com a polícia as ocupações, novas vozes se destacaram no cenário interpretativo.

INTERPRETAÇÃO NO SENTIDO DA NECESSIDADE DE JUDICIALIZAR A QUESTÃO
Uma segunda interpretação sustentou que se fazia indispensável a propositura de ação de reintegração de posse para que se colocasse fim às ocupações escolares. Tal exegese restringiu-se à formalidade, não se manifestando sobre a natureza da norma a ser aplicada no caso concreto; verifica-se, portanto, que se tratava de questão procedimental, no sentido de que o Estado de São Paulo deveria pleitear a retomada da posse perante o Poder Judiciário, e aí caberia ao juízo analisar o caráter da mobilização, interpretando-o, e aplicar a norma material de modo a apaziguar o conflito.

INTERPRETAÇÃO DE NATUREZA CONSTITUCIONAL
De acordo com a aplicação nas normas constitucionais, a ocupação das escolas deveria ser respeitada, sendo imprescindível a atuação do Poder Judiciário, de modo a assegurar a prevalência do exercício dos direitos de reunião e de manifestação, previsto no artigo 5º, incisos XVI e IV, da Constituição da República.
Consoante essa interpretação, a ocupação é protesto legítimo dos estudante e deve ser analisada levando-se em conta as normas constitucionais e não o Código Civil. A Constituição é a Norma Fundamental do Estado e ocupa o ápice da pirâmide de Kelsen, ou seja, há hierarquia entre os atos normativos, figurando a norma constitucional sobre todas as outras, como afirma PADILHA (2011, p. 3). Assim, é relevante observar como as normas foram aplicadas no que se refere ao movimento estudantil, já que se está diante de direitos e garantias fundamentais. Acerca da extensão da interpretação que se atribui a direitos dessa índole, SARLET (2012, p. 455) aduz que:
o âmbito de proteção da liberdade de expressão deve ser interpretado como o mais extenso possível, englobando tanto a manifestação de opiniões, quanto de ideias, pontos de vista, convicções, críticas, juízos de valor sobre qualquer matéria ou assunto e mesmo proposições a respeito de fatos.
Assim, é indispensável que se verifique se o que está em jogo é uma simples invasão de propriedade ou se é uma ocupação decorrente do exercício dos direitos constitucionais de liberdade de expressão e de reunião. No caso da ocupação das escolas públicas não há dúvida de que o movimento se insere na segunda hipótese, dada a sua organização, suas legítimas reivindicações, bem como o modo pacífico pelo qual se fez.
Ou seja, trata-se de um Estado Democrático de Direito, embora muitas vezes alguns juristas e intérpretes das normas deixem de lado o termo “democrático”, dando ênfase ao Direito sob uma perspectiva legalista (positivista) e infraconstitucional.
É evidente o anseio democrático dos estudantes que ocuparam as escolas, uma vez que, entre suas propostas, está a maior participação na administração, inclusive com eleições diretas para a direção das instituições.
A mobilização, tal como a do Chile (Revolução dos Pinguins), lutava contra medidas neoliberalistas que afetavam a rede de ensino público. Os alunos protestavam contra um processo global, em que as instruções neoliberais acatadas por governos enfraquecidos perante a financeirização, o capital especulativo, bem como as transnacionais, o poder econômico, em suma, em sua versão não produtiva.
Trata-se de uma tentativa de resgate da cidadania e de reduzir as desigualdades, cada vez maiores. No Brasil, a maioria pobre não conseguia ter acesso a escolas com qualidade. Acerca do tema, BAUMAN (2000, pág. 84) destaca que a “passagem para o estágio final da modernidade ou para a condição pós-moderna não produziu maior liberdade individual (...). Apenas transformou o indivíduo de cidadão político em consumidor de mercado”.
Do mesmo modo, a legitimidade e a forma do movimento, além de serem resguardas pelos direitos constitucionais, são justificadas, já que o direito à cidade decorre do movimento político, como afirma HARVEY (2013, p. 34) no sentido de que “…repousa sobre a capacidade de forçar a abertura de modo que o caldeirão da vida urbana possa se tornar o lugar catalítico de onde novas concepções e configurações da vida urbana podem ser pensadas e (…) ser construídas.”
A interpretação do Parecer nº 193/2016 (PGE/SP) sustenta uma interpretação infraconstitucional positivista, na medida em que defende a aplicação do Código Civil. Tal exegese se choca com o chamado pós-positivismo, que consagra verdadeiro avanço, tendo em vista que o positivismo permitiu as atrocidades cometidas pelos regimes nazista e fascista, cujos atos se deram de acordo com as leis então vigentes. As constituições do pós-guerra, com a tutela dos direitos humanos e de minorias impede que maiorias criem leis de extermínios de grupos de menor representatividade.
Neste contexto, o surgimento dos regimes constitucionalistas decorre e agrava a decadência do positivismo. Os movimentos da direita, de caráter militar, “ascenderam ao poder dentro de um quadro de legalidade vigente e promoveram a barbárie em nome da lei,” como afirma BARROSO (2006, p. 325).
Com efeito, o direito à cidade, interligado ao direito à liberdade de expressão e de reunião, não é apenas algo formal, distante da realidade, mas um direito de fruição, que envolve o uso da infraestrutura da municipalidade, dos equipamentos e dos serviços públicos, abarcando, evidentemente, outros direitos previstos na Constituição, como saúde, lazer, assistência social, educação, dentre outros. E há de se observar a efetividade das normas constitucionais, na concepção de BARROSO (2006, p.105/222).
No caso da ocupação das escolas sobressai o direito à educação e não apenas como um currículo básico a ser cumprido. Trata-se de um direito que exige uma prestação do Estado e por se dar em locais específicos, há de se ter em vista a função social da propriedade, tanto privada quanto pública, como se verifica na hipótese do ensino público.
Dúvida não há sobre a natureza constitucional do conflito, razão pela qual cabe ao Estado cumprir o disposto na Lei Maior. No caso da ocupação, respeitar a movimento estudantil em sua forma pacífica de democrática de se manifestar, abrindo-se ao diálogo.


DECISÕES JUDICIAS E POSTURAS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Submetida a ocupação das escolas ao Poder Judiciário nos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro, verifica-se que houve decisões em sentidos divergentes, sendo que parte dos órgãos julgadores de primeira e segunda Instâncias entendeu pelo caráter de protesto legítimo e parte decidiu no sentido de determinar a reintegração do Estado.
O Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu no dia 23 de novembro, por unanimidade, que não deveria haver nenhum tipo de reintegração de posse. O entendimento do TJ-SP é que o objetivo das ocupações não é tomar posse do prédio público, mas promover um diálogo com o Estado.
Todavia, mencionada decisão não tem poder vinculante em outras ações e só é válida para as escolas citadas no processo (todas da capital). Em seis cidades do interior, os juízes locais já decidiram no sentido contrário e ordenaram a reintegração, inclusive com autorização do uso de força policial contra os estudantes. Em seguida, a Defensoria Pública (que tem atuado na defesa dos interesses dos estudantes contrários ao fechamento) entrou com recursos em varas locais anexando a decisão do TJ como argumento.
A estratégia surtiu efeito: em seis cidades onde ocorrem ocupações das escolas, os juízes de primeira instância suspenderam as reintegrações após ter sido juntado no processo a decisão do Tribunal de Justiça por via recursal.
É importante ressaltar o entendimento que prevaleceu no Poder Judiciário Fluminense, noticiado no sítio eletrônico do TJRJ:
Vara da Infância inicia negociação entre Estado e estudantes. Notícia publicada pela Assessoria de Imprensa em 10/05/2016 21:51. Representantes da Secretaria estadual de Educação (Seeduc), da Defensoria Pública do Rio de Janeiro e lideranças do movimento estudantil “Ocupa” participaram de uma audiência de conciliação realizada pela juíza Glória Heloiza Lima da Silva, titular da 2ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da Capital, nesta terça-feira, dia 10. O objetivo foi abrir caminho para uma negociação entre o governo do Estado e os estudantes insatisfeitos com a gestão do ensino que ocupam escolas da rede pública estadual desde o início deste ano como forma de protesto. (…) A juíza determinou que a Secretaria de Educação realize, no prazo de sete dias, o crédito retroativo dos valores referentes às passagens dos alunos até 1° de maio, já que no dia seguinte a pasta publicou uma resolução que antecipava as férias escolares na rede estadual por conta das escolas ocupadas. (…) Na decisão, a magistrada: determinou a adequação da merenda escolar ao cardápio informado no site da Secretaria estadual de Educação no prazo de sete dias. (...) Sobre a falta de material didático, a Justiça determinou que a Secretaria disponibilize os livros que não estão sendo usados até o dia 2 de junho, quando retornam as aulas. Em caso de descumprimento da decisão judicial, a multa diária é de R$ 5 mil. (…) a magistrada também proibiu a Secretaria de Educação de fazer postagens em suas redes sociais fomentando o antagonismo entre estudantes ao estimular o movimento “Desocupa”, composto por alunos contrários à ocupação dos colégios como forma de protesto. Em caso de descumprimento da decisão judicial, a multa será de R$ 10 mil por postagem. (…) Juíza proíbe que integrantes das ocupações sejam punidos. A juíza determinou ainda que todas as escolas da rede estadual coloquem em prática a resolução que institui os Grêmios Estudantis, possibilitando a participação dos alunos nas decisões junto à direção dos colégios. Em sua decisão, a magistrada ressaltou que não poderá haver punição ou perseguição aos alunos que aderiram ao movimento estudantil “Ocupa” e que o currículo escolar terá de ser readaptado, com reposição das aulas dos dias letivos prejudicados. Por sua vez, os integrantes da ocupação estão obrigados a liberar o acesso de demais estudantes e funcionários aos espaços das escolas para expedição de documentos. (…) Processo: 0105730-36.2016.8.19.0001”.

No tocante aos órgãos do Poder Executivo no Rio de Janeiro e em São Paulo, constata-se que em um primeiro momento houve esforço de retomar a posse, de forma violenta, como é comum agirem em relação a protestos. Aliás, a própria ideia original de ocupar colégios decorre da necessidade de evitar as passeatas nas ruas, reprimidas violentamente pela polícia.
A Secretaria de Educação do Rio de Janeiro inicialmente entendeu que o movimento era ilícito e ilegítimo e deveria, portanto, ser desfeito de imediato, com auxílio da polícia. Posteriormente, a mesma Secretaria mudou sua interpretação dos fatos e reconheceu a legitimidade da mobilização, abrindo-se ao diálogo. Essa postura decorreu evidentemente da atuação da Defensoria Pública e do Ministério Público.

CONCLUSÃO

À luz do que precede, cabe ressaltar que, sob a égide de um Estado Democrático de Direito, no qual a Constituição é a manifestação formal da vontade do povo e vincula a todos, inclusive e principalmente o Estado, deve o Poder Público atuar de acordo com o que lhe impõe a Carta Magna.
Como já mencionado, trata-se de profunda crise política: a cidadania vem sendo fragmentada e reduzida, para limitar-se aos papéis individualistas de consumidores e condôminos. Quando estudantes do ensino médio das escolas públicas de dois dos mais populosos estados do Brasil passam a se organizar e exercer seus direitos de liberdade de expressão e reunião, ocupando as suas escolas a fim de reivindicar a manutenção e melhora de serviço essencial, vê-se a ruptura do papel de mero consumidor-individualista para agir coletivamente e na esfera política.
Os direitos fundamentais apresentam ampla aplicação, inclusive no tocante às relações privadas, adotando a eficácia horizontal de referidos direitos e garantias constitucionais. Também vale ressaltar o crescimento da corrente do Direito Civil Constitucional, que enriquece a leitura da Lei, compatibilizando-a com o sistema jurídico e a preponderância das Normas Fundamentais. Desse modo, evidencia-se o dever do Estado de reconhecer e respeitar o legítimo exercício dos direitos consagrados na CRFB/88.
Verificou-se a divergência do Poder Público e órgãos do Poder Judiciário ao depararem com a ocupação das escolas pelos alunos. Decisão de juiz de primeiro grau bem como o governo paulista entenderam, em um primeiro momento, que seria legítimo o exercício do desforço necessário, com base na Lei Civil e na autoexecutoriedade relativa à Administração Pública.
Contudo, não foram estas as decisões finais. Além das mobilizações, com adesão da sociedade, houve a atuação da Defensoria Pública e do Ministério Público, pleiteando em tutela coletiva, bem como o confronto entre as posições adotadas em Primeira e Segunda Instâncias do Judiciário de São Paulo.
No Rio de Janeiro, houve a realização de um acordo entre o governo e os manifestantes. No Estado paulista o governador desistiu da proposta inicial de fechar escolas e demitir professores. Houve diálogo, tutela dos direitos, participação cidadã, visando à melhoria de um serviço público essencial.
Como deve ser, as normas constitucionais prevaleceram sobre a legislação infraconstitucional, no caso, o Código Civil, que deve ser aplicado apenas nas hipóteses de conflito entre particulares e não quando se tratar de situação que envolva o Estado e adolescentes, estudantes, usuários diretos do serviço de educação pública, que vem sendo reduzido desde a ditadura militar iniciada em 1964. O ensino público perdeu qualidade e houve uma aprofundamento da cisão entre os mais pobres e a classe média no que se refere ao uso do serviço, do compartilhamento deste ambiente de construção social.
Certo é que o Estado moderno, na forma em que se manifesta, surge como criação vinculada ao capitalismo e não é, nem nunca foi, algo pronto, perfeito, acabado, dada a sua própria natureza; sendo assim, há que se reconhecer a legitimidade das mobilizações com intuito de moldá-lo.
Em tempos de grande retrocesso, de golpes parlamentares, sanções sem infrações, repressão, criminalização de movimentos sociais, fundamentalismo religioso, é mais do que relevante estudar, analisar, promover diálogo, sobretudo quando se está diante de protestos legítimos, de filhas e filhos dos cidadãos mais pobres do país.
Os estudantes exerceram seus direitos e o diálogo foi possível, a Administração Pública cedeu, trocou informações e houve a aproximação de uma solução pacífica e aparentemente satisfatória. Para os alunos, o governo e a sociedade como um todo, na medida em que a formação de cidadãos exige maior participação e capacidade crítica, como mostraram os estudantes mobilizados no Rio de Janeiro e São Paulo.

Processos judiciais que começam pelo final

A decisão do Min. Barroso na medida cautelar no Mandado de Segurança (MS) 34.448 DF vai além da análise cabível numa liminar (início do litígio). Nesse momento, o magistrado não deve se aprofundar acerca do mérito, que deve ser analisado no final do processo. No entanto, é cada vez mais comum vermos liminares com conteúdo de sentença. Na esfera criminal, algumas decisões de prisão preventiva já condenam o réu logo num primeiros atos do processo. No caso do MS contra a tramitação da PEC 241, o Min. Barroso analisou o mérito e se manifestou a favor do conteúdo da emenda. Mais uma vez a Constituição é rasgada. O processo, com todas as suas garantias, não pode ser encerrado no início. 

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Golpes

Afastaram uma presidente sem crime de responsabilidade. Muita discussão sobre o tema, dúvidas mil, o que por si só já demonstra a fragilidade do impedimento. Muitos se calaram, talvez pela complexidade do tema, talvez por questões de ordem prática, tendo em vista a dificuldade de governar diante da composição do Congresso (o mais conservador desde 1964). Depois o STF mexeu na presunção de inocência, mudando a interpretação do "trânsito em jugado". Muitos se calaram. De novo, argumentos de ordem prática, violando questões jurídicas. Agora veio a PEC 241, com tramitação acelarada, pouco debate. 20 anos de cortes. Protestos violentamente reprimidos no Rio. Hoje, o STF, depois de anos de inércia, decide restringir o direito de greve no serviço público. Justamente na hora das mobilizações contra esta PEC maldita. E tem mais retrocessos, como a MP do ensino médio, a reforma da previdência etc. É golpe, sim. E não é só do parlamento ou de um ou dois partidos. Está cada vez mais claro.  

Greve no serviço público: STF suprimindo direitos

A PEC 241 (congelamento por 20 anos) passou pela Câmara. Agora vai para o Senado. O STF, depois de anos, resolve julgar processo sobre greve no serviço público e decide que o servidor pode fazer greve, mas seu salário será cortado imediatamente. É evidente que o Judiciário está agindo para travar a as mobilizações contra as medidas neoliberais que este governo quer impor. Não existe lei regulamentando a greve do servidor público, pois o Congresso nunca legislou sobre este tema. Mais uma interpretação do STF que suprime direitos...

http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/10/1826934-stf-decide-que-poder-publico-deve-cortar-salarios-de-servidores-grevistas.shtml

Revolta dos pinguins (movimento chileno que inspirou a ocupação das escolas no Brasil)

Documentário sobre o movimento chileno que inspirou nossas ocupações:



quarta-feira, 26 de outubro de 2016

A banda (conto)



I. Arte

“Na bateria (solo de bateria): Baixinho!

No baixo (solo de baixo): Dedão!

Backing vocals (dois solos vocais seguidos): as Carpideiras – Lúcia e Julie!

Na guitarra solo (solo de guitarra): Ligeirinho!

Na guitarra base e no vocal: Leo Bajá! Somos a Banda Subsolo!” - apresenta-se o vocalista, curvando-se diante da plateia.

Platéia minguada; palmas e gritos esparsos. As mais aplaudidas sem dúvida foram as backing vocals, muito mais pela forma (e por serem as únicas mulheres por ali) do que pelas vozes, embora as meninas cantassem bem.

A apresentação chegava ao fim no bar do Zé Podrão, mecenas pós-moderno da baixada fluminense. O apelido não era por causa dos dentes amarelos que ostentava, nem por causa do cheiro rançoso que exalava; era “podrão” por causa da mania comer cachorro-quente de barraquinha improvisada, com tudo que tinha direito.

Amante de rock progressivo, punk rock, heavy metal, grunge etc. (ele achava uma babaquice essa mania de classificar o rock assim; dizia sempre, “eu ouço música, essas classificações imbecis só servem pras gravadoras e babacas de plantão”), Zé era dono de três bares: um em Niterói, um em Duque de Caxias e outro em São João de Meriti.

Como fazia questão de afirmar, quando lhe perguntavam o que fazia da vida: “sou dono de caixinhas de música pra iniciados, porra!”; ou então: “procure rock de verdade e descobrirá no que trabalho!”; ou ainda: “sou um mecenas pós-moderno!” (isso ele só dizia pros metidos a intelectuais). E se o objetivo era pegar um empréstimo: “sou empresário, ramo de gastronomia e artes”.

Assim que a banda Subsolo desceu do palco (degrau de cimento cru), Zé se aproximou deles:

- Mandaram ver! Porra, que solo foi aquele, Ligeirinho-ligeiro-ligeiresco-ligeirudo-lígio! Arrebentaram!
- Valeu, Podrão! Eu tava inspirado hoje, e tu parece que tá um tanto aspirado; estica uma pra mim, pobre-podre-puto-Podrão? – respondeu Ligeirinho.
- Tô aspirado porra nenhuma! É álcool puro mesmo! Eu lá tô com grana pra dar teco! Não sou homem de dar um tequinho só. Só compro pó quando tenho grana pra cheirar 2 dias e duas noites, pelo menos! Sem contar o das putas...
- Por falar em grana - já foi cobrando o Leo – quanto a gente tira hoje, Zé?
- Hoje o movimento foi uma merda! Preju total! Paguei pra casa abrir hoje, porra! Quase ninguém veio: olhaí essa merda, tudo vazio. Um ou outro bebendo uma cerveja. Só a bebida que vocês da banda consumiram já me fodeu...
- Porra, Zé! De novo! - disse Ligeirinho - Tu cheira a grana do fim de semana e dá nessa merda. A gente sempre toca de graça, por cachaça; e você é tão filho-da-puta que nem o pó tu põe na roda. Tu é foda!
- Palavra de honra! Se eu tivesse uma carreirinhazinha que fosse, colocava! E tô puro de grana. Prometo que quando entrar pago o show de hoje! Hoje é quarta; é essa merda mermo. Se vocês tocarem sábado eu compenso!
- Porra, Zé, nem cinquentinha?
- Tô liso, tô duro. E não bota banca, não, caralho, porque vocês vivem bebendo de graça nessa merda; e o principal: vocês tocam aqui o que querem: músicas da banda, não são obrigados a ficar agradando público, fazendo cover...
- Tá bom, Zé - acalmou Ligeirinho -, a gente acerta no sábado. Mas quero dinheiro. Não adianta querer pagar com pó malhado, não!
- Tô devagar, quase parando. Pó é foda...
- Tá bom! Com esse nareba nervosa?! É mais fácil minha vó começar a trincar que você parar com a branquinha, gordo safado!
- Hahahaha! – gargalhou Zé e deu uma porrada com a mão aberta na mesa cheia de garrafas de cerveja vazias.

A banda bebeu mais um pouco; depois, arrumaram a tralha e seguiram para casa, divididos num caravan e num fusca velhos (de oitenta e poucos), ambos caindo aos pedaços.

Antes de fechar o bar, Podrão, agora sozinho, esticou, meticulosamente, num espelhinho, que tirou de dentro da gaveta da grana, uma carreira do tamanho dum dedo mindinho de mulher alta e magra. Estalou a língua, tlac - sempre dava uma estalada antes de cheirar -, e com uma nota de cem reais enrolada em forma de canudo (nunca cheirava com nota menor, segundo ele dava azar) meteu a naba, sugou num estalo o pó batido; levantou a cabeça como se fosse um chicote, fungando tudo pra dentro, os olhos arregalados. Não demorou um minuto, apagou as luzes e se meteu debaixo do balcão, convicto de que a polícia ia entrar no bar a qualquer momento.

Ficou atrás do balcão, com as baratas lhe percorrendo as mãos espalmadas no chão (estava de quatro) até se acalmar, o que só aconteceu quando deu umas boas tragadas na cachaça que guardava ali. E, a cada vez que se acalmava, levantava, fumava um cigarro e dava um novo teco, que o fazia apagar a luz, ir pro chão, cheio de neura e repetir todo o processo.

Zé só conseguiu sair do bar às cinco e pouco da manhã, quando os passarinhos já vaticinavam o dia, depois de matar a garrafa de cachaça e fumar um baseado.

II – Trabalho

“Veneno! Veneno!
A gente vive pra quê?
Pra depois morrer!
‘Cadáveres adiados’,
Que eternos julgam ser.

Mil deuses e teorias criam,
Pra fugir dos vermes,
Pra fugir do subsolo,
Pra fugir do fim.
Pra fugir, pra fugir, pra fugir.
Imbecis, os vermes são tão
Vivos quanto nós:
Deixam nossos ossos
Brancos como lençóis.

Veneno, veneno...”

- Valeu, valeu! Por hoje tá legal; até que o ensaio rendeu hoje – disse Leo.
- Porra, a gente tem que se livrar das Carpideiras; nosso som flui muito melhor sem elas! – falou Ligeirinho.
- Não, eu discordo – respondeu Leo. – Nosso som tá diferente justamente por causa delas.
- Qual é, Leo! Você insiste porque tá comendo a Lúcia – rebateu Ligeirinho.
- Não, não é nada disso! Eu nunca deixaria alguém atrapalhar nosso som por esse motivo; você sabe muito bem disso – se defendeu Leo.
- Tá certo, tá certo; mas eu acho que as meninas atrapalham mais que ajudam. Mas pelo visto tô sozinho nessa...

Ensaiavam na casa do Baixinho, pois a bateria era o centro de gravidade da banda, para onde todos eram atraídos na hora de ensaiar. Nada mais natural: a bateria, o instrumento mais pesado, mais chato de carregar e de montar ficava no seu lugar sempre, o resto da banda que fosse até lá; e assim faziam, pelo menos, duas vezes por semana.

Terminaram de arrumar o equipamento e marcaram um encontro no dia seguinte às 11 horas na praça XV.

Dia seguinte, praça XV, onze e meia da manhã; Leo e Ligeirinho de pé, debaixo do elevado da Perimetral, conversando.

“Impressionante! Essas piranhas nunca chegam na hora!”, disse Ligeirinho. “Dedão já ta lá na Rio Branco há meia hora...”
“Tão chegando, tão chegando; olha ali”, apontou Leo para as meninas - Lúcia e Julie -, que emergiam do subsolo (mergulhão).

As meninas passaram perto deles, sem cumprimentá-los. Os dois continuaram conversando por mais uns cinco minutos e depois desceram em direção à avenida Rio Branco, pela rua da Assembléia. As meninas haviam tomado o mesmo sentido, mas, contornando o Paço, seguiram pela rua Sete de Setembro (paralela à rua da Assembléia).
Ao chegar na esquina da rua da Assembléia com avenida Rio Branco, Leo se separou de Ligeirinho, sem se despedir, e seguiu na mesma calçada (sentido Av. Presidente Vargas) até entrar num banco. Ligeirinho atravessou a avenida e caminhou no sentido inverso (foi à Carioca comprar cordas pra guitarra e depois iria esperar perto do carro, estacionado lá na Lapa, pra não pagar flanelinha).

Dez minutos depois, Leo saiu de um banco e parado entre uma árvore e uma banca de jornal fez uma ligação de seu celular. “Fala. Olha, acabei comprando uma calça preta - ele é jovem -, e uma camisa azul - ele é moreno. Sozinho, é claro. Esquina com Sete de setembro. Médio, um e setenta. Estarei atrás, três metros. Beijo”.

As meninas, que estavam numa livraria perto dali, foram em direção à Rio Branco. Pararam num camelô, afetando interesse nas bolsas que expostas no chão. Não demorou cinco minutos para que vissem o homem descrito e Leo, atrás.

Quando o homem de calça preta e camisa azul se aproximou, Julie, olhando-o, abriu um sorriso e comentou qualquer coisa com Lúcia, que deu um risinho, levantando os ombros e olhando de rabo de olho para o rapaz.

O homem viu tudo: olhar, comentário e sorriso. Assim que passou por elas, virou a cabeça para vê-las mais uma vez, mas para sua surpresa um homem estranho mexia grosseiramente com as meninas, que estavam com cara de medo, pânico e que, fugindo das grosserias, se aproximavam dele. Ele percebeu tudo e, reduzindo a velocidade, lhes concedeu proteção. O homem estranho se afastou em seguida.

Julie agradeceu e puxou conversa. “Cada maluco que aparece! Se não fosse você...”. Pouco tempo depois eles estavam sentados numa lanchonete, conversando. O papo não durou muito; as meninas disseram que tinham uma entrevista de emprego meio-dia e meia. Ele pagou a conta e deixou o número do seu celular com elas; Julie lhe deu o dela.

III. Dinheiro

Meia hora depois a banda quase completa - só faltava o Baixinho - ia à casa de Leo, apertados no caravan.

- Hoje foi moleza. Resolvemos tudo no primeiro. Mi menor, si menor, mi menor; lá menor, ré, sol. Já ouvi essa seqüência em algum lugar. 1, 4, 1, 2, 8, 3: deve ser data de aniversário: 14/12/83. Tenho quase certeza que é MPB. Mi menor, si menor, mi menor; lá menor, ré, sol. Os idiotas colocam som nas teclas dos caixas eletrônicos: cada senha é uma música, e cada música é dinheiro; money, get away... – disse Leo, cantarolando no fim.
- Mi menor, si menor, mi menor; lá menor, ré, sol? Em casa a gente toca e confere; se não for de ninguém, a gente pode tentar compor qualquer coisa... O que importa é que arrumamos mais uma fonte de grana. – falou Ligeirinho.
- O susto quase sempre dá certo. Hoje foi perfeito: cheguei perto das meninas quando o otário virava o rosto para azarar. Tiro e queda. Nada como um inimigo comum para aproximar pessoas... – vangloriou-se Dedão.
- E ele pagou com o cartão - completou Julie. - Baixinho já dever estar com o molde pronto; agora, é só esperar ficar pronto e partir pros saques. Com esse, já são quantos?
- Estamos com 26. - respondeu Leo. - Chegamos a 29, mas três já trocaram de senha ou cartão. O negócio é sacar um pouquinho de cada vez, pra não dar mole...
- O Baixinho é perfeito pro negócio – disse empolgado Ligeirinho. - O filho-da-mãe, além de pegar o molde dos cartões (pois trabalha naquela lanchonete), ainda é o sacador oficial da banda, porque é tão baixinho que a câmera do caixa não filma o seu rosto.
- Cada um faz o que pode: o show não pode parar – disse Leo. - Minhas habilidades musicais tão rendendo bem. Furto sem uma gota de sangue, quase sem risco. E o melhor: tempo pra música, tempo pra arte. Porque ser músico profissional, ter que tocar pra comer, é uma merda: você acaba tocando em festas - de casamento, de quinze anos, de aniversário (tudo uma merda: um bando de idiotas pedindo musicas de rádio) -, em restaurantes e churrascarias (deprê total!), ou vai pra publicidade, marketing, fazer aquelas merdas de jingles, pra ganhar merreca.
- Que saudade dos mecenas! – ponderou Lúcia.

- É isso aí. Todo mundo fica falando na extinção dos bichos – arrematou Ligeirinho. - Fodam-se os bichos! Eles não servem pra porra nenhuma! Da pior extinção, a extinção dos mecenas, ninguém fala nada...