quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Muros e pontes



Em vez de pontes, constroem-se muros. Bauman, sociólogo contemporâneo reconhecido pela profunda análise que desenvolve sobre a fluida pós-modernidade, escreve sobre a construção desses muros.

Em “Modernidade Líquida”, ao discorrer sobre “tempo/espaço”, o sociólogo descreve a cidade dos sonhos de G. Hazeldon - arquiteto inglês estabelecido na África do Sul -, a qual seria uma “versão high tech da aldeia medieval que abriga detrás de seus grossos muros, torres, fossos e pontes levadiças uma aldeia protegida dos riscos e perigos do mundo”.

Qualquer semelhança com nossos condomínios não é mera coincidência: trata-se do mesmo fenômeno. Segundo o arquiteto, a principal questão hoje é a segurança; portanto, nada melhor que morar numa fortaleza segregada do mundo violento por “cercas elétricas de alta voltagem, vigilância eletrônica, barreiras e guardas armados por todos os lados;” e dentro da cidade nada faltará: haverá lojas, igrejas, restaurantes teatros, áreas de lazer, florestas, playgrounds etc. e “há espaço livre suficiente para se acrescentar o que quer que a moda de uma vida decente possa demandar no futuro”. É tudo bem simples: comprando uma casa no Heritage Park (nome da cidade de G. Hazeldon) ou em um supercondomínio da Barra, você viverá em paz e será feliz.

Tornar-se proprietário de uma unidade dentro desses oásis de segurança é a suposta solução para o problema. Mas de onde vem realmente a insegurança que sentimos? A solução é mesmo morar numa fortaleza, cujo acesso só é permitido a alguns? Não seria isso a redução do cidadão a mero condômino?

A “paz sem voz não é paz, é medo”. Cidadania diz respeito aos direitos políticos que permitem ao cidadão - habitante da cidade (do latim civitas) - intervir na direção do Estado, a fazer uso da voz, participando de modo direto ou indireto na formação do governo e em sua gestão. A palavra “política” origina-se do grego antigo “politeía”, que tratava dos procedimentos relativos à polis, cidade-estado da Grécia antiga.

Como já alertado por muitos, a propagação do medo - fomentada pelas notícias sobre o perigo em cada esquina - é proporcional ao vertiginoso crescimento da indústria da vigilância. Será que a causa do nosso problema é mesmo a sempre acusada violência? A violência não seria uma conseqüência, um sintoma? Toda a insegurança que sentimos vem da violência?

Ao acreditar que o problema é a insegurança (cujas causas não são analisadas com clareza pela maior parte das pessoas) e, assim, aceitar a “solução” proposta, que consiste em se proteger do mundo segregando-se voluntariamente em um “espaço seguro”, o papel de cidadão é substituído pelo de condômino. Nesse contexto, a resolução do problema, que deveria advir da política (esfera pública) - atentando-se para as verdadeiras causas da insegurança -, passa à esfera individual: basta comprar um espaço seguro. Ao adquirir um apartamento numa fortaleza posso acabar com a MINHA insegurança. (Mas a insegurança não seria NOSSA?). Os condomínios-fortaleza são uma pseudo-solução individual para um problema coletivo.

Reduzir o problema a um de seus sintomas é negar a realidade e, desta forma, obstruir o caminho que deve ser tomado para alcançar uma verdadeira mudança. O discurso de que a violência é a causa de todos os males apenas aprofunda o abismo da segregação e reforça a pseudo-solução individualista. A solução eficaz não pode ser comprada; ela não está à venda no supermercado ou no shopping: a solução está além dos muros e fossos dos condomínios; a solução é construir pontes, tarefa que só pode ser executada por cidadãos.

A primeira foto (acima) decompõe-se em duas imagens, que representam, respectivamente, a segregação voluntária (condomínios de luxo) e segregação compulsória (favela):



Muros e pontes



Em vez de pontes, constroem-se muros. Bauman, sociólogo contemporâneo reconhecido pela profunda análise que desenvolve sobre a fluida pós-modernidade, escreve sobre a construção desses muros.

Em “Modernidade Líquida”, ao discorrer sobre “tempo/espaço”, o sociólogo descreve a cidade dos sonhos de G. Hazeldon - arquiteto inglês estabelecido na África do Sul -, a qual seria uma “versão high tech da aldeia medieval que abriga detrás de seus grossos muros, torres, fossos e pontes levadiças uma aldeia protegida dos riscos e perigos do mundo”.

Qualquer semelhança com nossos condomínios não é mera coincidência: trata-se do mesmo fenômeno. Segundo o arquiteto, a principal questão hoje é a segurança; portanto, nada melhor que morar numa fortaleza segregada do mundo violento por “cercas elétricas de alta voltagem, vigilância eletrônica, barreiras e guardas armados por todos os lados;” e dentro da cidade nada faltará: haverá lojas, igrejas, restaurantes teatros, áreas de lazer, florestas, playgrounds etc. e “há espaço livre suficiente para se acrescentar o que quer que a moda de uma vida decente possa demandar no futuro”. É tudo bem simples: comprando uma casa no Heritage Park (nome da cidade de G. Hazeldon) ou em um supercondomínio da Barra, você viverá em paz e será feliz.

Tornar-se proprietário de uma unidade dentro desses oásis de segurança é a suposta solução para o problema. Mas de onde vem realmente a insegurança que sentimos? A solução é mesmo morar numa fortaleza, cujo acesso só é permitido a alguns? Não seria isso a redução do cidadão a mero condômino?

A “paz sem voz não é paz, é medo”. Cidadania diz respeito aos direitos políticos que permitem ao cidadão - habitante da cidade (do latim civitas) - intervir na direção do Estado, a fazer uso da voz, participando de modo direto ou indireto na formação do governo e em sua gestão. A palavra “política” origina-se do grego antigo “politeía”, que tratava dos procedimentos relativos à polis, cidade-estado da Grécia antiga.

Como já alertado por muitos, a propagação do medo - fomentada pelas notícias sobre o perigo em cada esquina - é proporcional ao vertiginoso crescimento da indústria da vigilância. Será que a causa do nosso problema é mesmo a sempre acusada violência? A violência não seria uma conseqüência, um sintoma? Toda a insegurança que sentimos vem da violência?

Ao acreditar que o problema é a insegurança (cujas causas não são analisadas com clareza pela maior parte das pessoas) e, assim, aceitar a “solução” proposta, que consiste em se proteger do mundo segregando-se voluntariamente em um “espaço seguro”, o papel de cidadão é substituído pelo de condômino. Nesse contexto, a resolução do problema, que deveria advir da política (esfera pública) - atentando-se para as verdadeiras causas da insegurança -, passa à esfera individual: basta comprar um espaço seguro. Ao adquirir um apartamento numa fortaleza posso acabar com a MINHA insegurança. (Mas a insegurança não seria NOSSA?). Os condomínios-fortaleza são uma pseudo-solução individual para um problema coletivo.

Reduzir o problema a um de seus sintomas é negar a realidade e, desta forma, obstruir o caminho que deve ser tomado para alcançar uma verdadeira mudança. O discurso de que a violência é a causa de todos os males apenas aprofunda o abismo da segregação e reforça a pseudo-solução individualista. A solução eficaz não pode ser comprada; ela não está à venda no supermercado ou no shopping: a solução está além dos muros e fossos dos condomínios; a solução é construir pontes, tarefa que só pode ser executada por cidadãos.

A primeira foto (acima) decompõe-se em duas imagens, que representam, respectivamente, a segregação voluntária (condomínios de luxo) e segregação compulsória (favela):



sexta-feira, 11 de setembro de 2009

11 de setembro

11/09 é de fato uma data marcante.

Principalmente para os chilenos. Hoje, 11/09/2009, faz 36 anos que os EUA derrubaram Salvador Allende, promovendo a ditadura de Pinochet, que matou muito mais pessoas inocentes que o atentado de 2001. Um erro não justifica o outro; mas não devemos menosprezar os danos causados pelo terrorismo de Estado que os EUA promoveram na América Latina.

Não foi um ato isolado como o sequestro dos aviões, mas uma ditadura que durou décadas e matou e torturou os cidadãos de um Estado que até então era democrático.

Porém o 11/09/1973 foi esquecido. O terrorismo de Estado (v. Chomsky) parece não ter o mesmo efeito que o terrorismo perpetrado por grupos e pessoas.

Hoje os EUA, na posição de "vítimas" do terrorismo, justificam a invasão de outros Estados, que julgam fracassados, autoritários; o discurso que os "legitima" é a "promoção da democracia".

Lembremos que hoje faz 36 anos que os atuais "promotores mundiais da democracia" derrubaram Salvador Allende, implantando a ditadura e causando a morte de inocentes.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Chuva de imagens

Italo Calvino começa sua conferência sobre a visibilidade citando um verso de Dante no “Purgatório” (XVII, 25): “Chove dentro da alta fantasia”.* Neste trecho de “A divina comédia”, a personagem percorre o círculo dos coléricos, onde “contempla imagens que se formam diretamente em seu espírito, e que representam exemplos clássicos e bíblicos de punição da ira; Dante compreende que essas imagens chovem do céu, ou seja, que Deus as envia.”

E, no começo do Canto XVII - antes da projeção direta de imagens em sua mente -, Dante descreve a cegueira causada por uma “névoa densa”, a qual teve que atravessar:

“Se alguma vez, leitor, em alguma alpina cordilheira foste surpreendido por névoa densa, através da qual não podias enxergar, igualados que ficaram teus olhos aos da toupeira, recorde-te de que ao principiar a descerrar-se a cortina úmida e espessa iam-se infiltrando débeis raios de sol.”

Esta cegueira causada pela névoa espessa - e a ansiedade de atravessá-la - seguida pela projeção de imagens assemelha-se muito ao que sinto quando vou ao cinema: a escuridão que antecede a projeção do filme é como a névoa densa, e a luz que me liberta desta cortina é a que revela as imagens na tela.

As cenas projetadas são como os pensamentos, os sonhos; o cinema tem essa capacidade de apresentar sequências de imagens e de manipular o tempo, tal qual fazemos ao imaginarmos. Quando lembramos de algo, fantasiamos sobre um desejo ou pensamos sobre uma estória, projetam-se cenas em nossa mente. Geralmente controlamos nossos pensamentos e escolhemos por onde seguiremos. Algumas vezes, no entanto, enveredamos por caminhos que não são tão agradáveis de percorrer, mas mesmo assim seguimos, apesar do mal estar que certas cenas (que existiram de fato ou que criamos) nos causam; não é sempre que conseguimos dirigir nossos filmes internos.

Embora seja óbvio, vale a pena ressaltar que as palavras “imaginação” e “imagem” pertencem à mesma família etimológica; ou seja, a língua não ignora que fantasiamos por meio de imagens.

Quando lemos ou assistimos a um filme, aderimos à seqüência de imagens sugerida por outrem. Ao ler um romance, as palavras despertam imagens dentro de nós, a tela onde se projeta a estória é interna. Essa relação entre as imagens e as palavras é muito interessante, pois o escritor, ao descrever um fato, transforma sua representação interna em palavras, e o leitor, ao se deparar com as descrições, transforma aquelas palavras em imagens dentro de si.

O cinema, por sua vez, parte da imagem; portanto, assistir a um filme parece ser o que mais se aproxima da experiência de vislumbrar um sonho alheio. Chovem imagens na tela e as nuvens das quais elas caem são formadas pela imaginação do cineasta, que escolheu como criar as cenas; as câmeras as condensam e o projetor as precipita. A chuva de cenas irriga nossos pensamentos, desperta emoções, traz lembranças, nos leva a refletir sobre a estória, a nos identificar etc.

Ir ao cinema pode ser tão catártico como tomar um banho de chuva no verão. Quem já passou uma tarde de fevereiro brincando ao ar livre, sob o sol escaldante e, no fim da tarde, suado, foi surpreendido por uma torrencial chuva de verão, cujos primeiros pingos parecem evaporar antes mesmo de tocar o chão - você se lembra do cheiro desse vapor? -, sabe do que estou falando.

Para mim, a música que melhor representa o fascínio que o cinema pode causar é “Cinema Olympia” (Caetano), na versão de Elis, ao vivo.

Não há por que me estender em comentários sobre a letra; basta-me salientar a ligação da música com a letra: Elis começa cantando lentamente sobre as tardes sem cinema, normais e em seguida vai acelerando. Na estrofe seguinte canta sobre o que quer a fim de fugir do marasmo, e no refrão chega ao êxtase ao falar do lugar onde encontrará “gargalhada geral do meio dia até o anoitecer”. A interpretação de Elis é tão incrível que torna minhas análises sobre “Cinema Olympia” inúteis. Para sentir o deslumbramento cantado por Elis, só há uma forma: ir ao cinema e se deixar encharcar pelas imagens que chovem na tela.

Nota

* CALVINO, Italo. Seis Propostas para o próximo milênio. Tradução: Ivo Barroso. 3ª edição, São Paulo: Companhia das Letras, 2002. Pág. 97.