segunda-feira, 31 de maio de 2010

Machado de Assis e Woody Allen: Tudo pode dar certo



Se você, leitor, acha que vai encontrar aqui uma resenha do filme de Woody Allen, pode parar de ler agora! Não vou falar que esse longa foi o retorno do cineasta a N.Y., depois do exílio na Europa, nem que o ator principal encarnou os trejeitos do diretor.

É mais ou menos isso que Boris, protagonista de “Tudo pode dar certo”, faz no início do filme: ele é um narrador-personagem que fala diretamente com o público. Comuns em literatura, narrativas em primeira pessoa são raras no cinema. 

Boris brinca com sua onisciência de narrador, gabando-se de sua visão do todo. Ele quebra a quarta parede e, enquanto fala com o público, as outras personagens acham que o rabugento tá resmungando sozinho...

Esse início do longa - em primeira pessoa, com justificativas irônicas e  "rabugens de pessimismo" - me lembrou “Memórias póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis (abaixo, a linda edição recém-laçada pela Antofágica, com ilustrações de Portinari e perfil do autor escrito pelo Ale Santos @savagefiction). No romance, o  defunto narrador esclarece ao leitor que escreveu a obra com "a pena da galhofa e a tinta da melancolia”.

Outra semelhança, além dos nomes (Boris e Brás), é a forma irônica como eles tratam a morte. As tentativas de suicídio de Boris e seu pânico diante da ideia do fim da vida, fazem da morte motivo de riso, o que também acontece quando Brás Cubas dedica suas memórias “ao verme que primeiro roeu as frias carnes do [seu] cadáver”, havendo no longa um diálogo mencionando os mesmos parasitas. E, ainda, a hipocondria, que  é combatida pelo "emplasto Brás Cubas" e consome as energias de Boris. 

Não é segredo que W. Allen admira Machado, seu “ídolo brasileiro” como revelou em entrevista: “Li (…) ‘Epitaph for a Small Winner’ [‘Memórias Póstumas...] (…) e fiquei muito impressionado. (...) Achei Machado de Assis excepcionalmente espirituoso, dono de uma perspectiva sofisticada e contemporânea, o que é incomum, já que o livro foi escrito há tantos anos. Fiquei muito surpreso. É muito sofisticado, divertido, irônico.” (Link: entrevista completa).

Parece que o cineasta se inspirou no nosso Bruxo do Cosme Velho. Boris conta sua própria história e o faz depois de quase morrer: um narrador quase-finado que, como o falecido Brás, zomba da existência e não perde a chance de relembrar e reclamar, mesmo sem conhecer sua plateia...



quinta-feira, 20 de maio de 2010

Quincas Berro Dágua

Quem me conhece sabe o quanto eu gosto de Jorge Amado e especialmente de sua novela A morte e a morte de Quincas Berro Dágua. Tenho inclusive duas edições dela: uma com um interessante prefácio do Vinicius de Moraes e outra na qual, além dessa novela, há ainda Capitão-de-longo-curso, outra deliciosa história do saudoso baiano.

Há algum tempo me avisaram que o livro ia virar filme; hoje, para minha surpresa e alegria, descobri que estréia amanhã no cinema. Sem dúvida, a trama já valeria a ida ao cinema; mas me aparece (apesar de não ter visto uma cena do filme - só vi o trailer depois de escrever) que há outros bons motivos para assistir à comédia: Paulo José "encarna" o morto mais vivo já visto nas ruas de Salvador e Marieta Severo, a sua amada.

Nas palavras do narrador, "Quincas [é] um recordista da morte, um campeão do falecimento", visto que morreu três vezes: a primeira morte foi moral (quando Quincas Berro Dágua se libertou do que restava do Sr. Joaquim Soares da Cunha); a segunda, a atestada pelo médico, pela manhã (defendida pela família como a verdadeira); e a terceira, a da noite, na qual Berro Dágua, "por livre e espontânea vontade," decidiu partir, dizendo (atenção às suas derradeiras palavras):

- "Me enterro como entender na hora que resolver. Podem guardar meu caixão pra melhor ocasião. Não vou me deixar prender em cova rasa no chão!"

Para os que acreditam que a morte é o fim, o filme é obrigatório. Talvez Quincas tenha "vivido" muito mais na sua última noite do que muita gente em toda a vida.