Curto a
revista Superinteressante, que nem parece da Editora Abril, mesma da Veja. Mas a última capa serve de exemplo pra falar um
pouco de ideologia, especialmente sobre a predominante, essa que
muita gente nem repara, porque se encontra completamente mergulhada
nela.
Pois bem.
Vamos ao título na capa da revista: “Transforme seu stress em algo bom”. Parece uma dica legal, né? Só que não. Vou
explicar os motivos.
A matéria
não fala sobre o que poderíamos fazer para mudar as causas do
estresse. Pelo contrário, o texto já parte da ideia de que viver
uma rotina constante de estresse é inevitável. Também é
superinteressante notar que a própria autora reconhece o imenso
impacto da área profissional, das relações de trabalho, na origem
do estresse: a maioria dos exemplos utilizados diz respeito ao
trabalho, as fotos na parte interna são de um homem de terno e já
no subtítulo se fala em aumento da produtividade.
O texto da matéria não se afasta do título e não deixa dúvidas sobre a
mensagem principal: é destino de todos ter uma rotina de
trabalho exaustiva, estressante, e é o indivíduo - sozinho,
isoladamente - que deve se adaptar para tirar proveito disso.
Por que a
matéria não aborda as causas atuais do estresse? Por que não fala
de possíveis soluções para mudar a estrutura que gera a rotina
massacrante? A matéria só oferece duas opções: sofrer mais com o
estresse (se não se adaptar) ou sofrer um pouco menos, “curtindo o
lado bom dele”. Não existem no texto alternativas que cheguem à
raiz do problema. É como uma questão de múltipla escolha, que já
parte de opções pré-determinadas e reflete muito bem a ideologia,
na medida em que reduz as opções, fecha-se numa moldura estreita, e
interdita o diálogo e a criação que são permitidas nas questões
discursivas.
Aí se vê
claramente que essa rotina estressante - que faz parte de um modo de
produção que explora coletivamente - é mostrada como destino
inevitável. Não dá para ignorar que a palavra coletividade sofre
um bloqueio ideológico. O estresse é a consequência de um sistema
de trabalho imposto (e o texto reconhece isso nos exemplos), que
afeta a maioria das pessoas, ou seja, a sociedade, a coletividade.
Mas é o indivíduo, sozinho, que deve fazer alguma coisa: e sozinho ele só pode aceitar e se adaptar - nunca atingir a causa.
Daí as praças e sindicatos vazios e os consultórios de
psicólogos e psiquiatras cheios. Os problemas vêm de sistemas,
estruturas, que afetam todos, mas a ideologia predominante é de
fragmentação e individualização.
Nesse
contexto, o discurso que se repete é: “você tem que ser adaptar!
Você tem que se moldar, se transformar! É preciso resiliência!”. Típico
discurso raso de “auto-ajuda”. Nada é falado sobre as estruturas, é o indivíduo que tem que se
encaixar ali, se transformar em mais uma engrenagem, e não tentar
transformar a máquina. O indivíduo tem que abrir mão do seu tempo,
dos seus desejos, da sua família, das suas características para se
encaixar no modo de produção massacrante, o que envolve, cada vez
mais, até o uso de medicamentos psiquiátricos, ou seja, uma
adequação química para “funcionar” e produzir bem nessa
realidade apresentada como imutável.
Por que
não há a sugestão de que as pessoas se unam e coletivamente tentem
formular mudanças nas causas do estresse? A solução da matéria
aponta para o indivíduo que, sozinho, é absolutamente impotente pra
isso. A estratégia coletiva - que é a única que pode atingir a
estrutura - é negada, sequer é cogitada.
Curioso
destacar que, enquanto essa capa individualista é exibida nas
bancas, é uma ação coletiva que consegue ter eficácia. Os
estudantes da rede pública do Estado de São Paulo se organizaram e
coletivamente impediram que a gestão do governador Geraldo Alckmin
impusesse o fechamento de várias escolas, sem qualquer tentativa de
diálogo e com evidente prejuízo aos jovens, que teriam que se
deslocar pra locais distantes e se submeter a salas superlotadas, o
que, muito provavelmente, levaria à evasão escolar.
Se cada
um daqueles jovens fosse seguir a dica da revista Superinteressante,
eles iam se adaptar às mudanças: aceitar, calar, nada fazer para
impedir e viver uma rotina massacrante pra chegar e voltar da escola.
Como os trabalhadores estressados. Cada um deles sofreria
individualmente as consequências. Mas eles se uniram e pra mim são
um coletivo de heróis; e só são heróis porque organizados
coletivamente. E aqui é importante chamar a atenção pros
super-heróis dos quadrinhos norte-americanos que, com raras
exceções, são indivíduos isolados, que usam seus superpoderes
contra supervilões, mas nunca atingem as estruturas que causam as
desigualdades no mundo. Mais um exemplo da ideologia das estratégias
individualistas (e por isso impotentes) pros problemas coletivos.
Muitos dizem que não há ideologia ou que só existem ideologias de esquerda, comunista etc. Como já coloquei acima, penso que isso acontece porque as pessoas estão mergulhadas na ideologia predominante (capitalista), o que dificulta muito a percepção. O termo capitalismo também sofre um bloqueio ideológico. É comum falarem no número de mortes causadas pelos regimes soviéticos, por exemplo, mas quantas vezes vemos sistema capitalista como causador de mortes? O fato é que a revista Superinteressante não nega a existência de ideologia, porque páginas depois da reportagem sobre o estresse, fala que o uso da maconha é barrado por motivos ideológicos (página 56).
Para revelar a ideologia é indispensável formular certas perguntas, como: por que esse esse tema e essa abordagem? E tal tipo de análise e questionamento pode ser utilizado para desvendar o que está por trás de diversos discursos e escolhas, inclusive das pesquisas científicas que são citadas na matéria, que tratam de situações isoladas de estresse e não envolvem os efeitos da submissão a rotinas estressantes contantes e a longo prazo, o que ocorre frequentemente com muitas pessoas.
Acredito que a autora do texto nem tenha pensado sobre as questões colocadas aqui. Penso que é provável que a ideia de escrever essa matéria tenha surgido diante da leitura de outros artigos que foram escritos sobre as novas pesquisas científicas acerca dos efeitos do estresse. Se foi assim, não há surpresa, já que faz parte da imersão da ideologia a reprodução dos discursos dominantes, sem grandes reflexões sobre as origens, raízes.
Por último, mas não menos importante, a matéria termina comparando pessoas “a máquina[s] de enfrentar dificuldades”. Nada melhor para a produtividade que máquinas. Mas não. Não somos máquinas e não estamos dispostos a nos transformar em máquinas e engrenagens para produzir melhor. Impossível negar a ideologia predominante. Vou enviar esse texto à revista e ver se tenho alguma resposta. Seria legal ler uma matéria falando sobre ideologia.
PS. O texto tem influência de dois autores de que gosto bastante: Bauman e Zizek.