sábado, 25 de julho de 2009

"O meu pensamento tem a cor de seu vestido"

Um amor não realizado é um dos sentimentos mais intensos que há. Perdoem-me pela frase feita, mas, tratando do tema, não consigo construir uma frase menos ordinária; talvez porque não haja de fato outra forma de falar da intensidade deste tipo de paixão.

Pode ser o mais estranho dos paradoxos, porém a verdade é que quando a paixão se realiza - quando se é correspondido - a intensidade do sentimento se transforma: as expectativas e os sonhos inerentes ao momento anterior ao início da relação perdem seu caráter místico para dar espaço à realidade.

É no momento que antecede a vivência (paixão ainda idealizada) que a intensidade e o desejo - e toda a fantasia que os acompanha - são mais fortes. Muito semelhante é o que ocorre com o amor que começou a se realizar, mas foi interrompido abruptamente na fase inicial; neste caso, é como se não houvesse realização e a fantasia preenche esta lacuna deixada pela frustração.

A dúvida é crucial neste processo. A princípio, nunca sabemos se seremos correspondidos, se o outro está sentindo o mesmo que nós; e é esta incerteza que fundamenta toda a fantasia sobre o futuro, que mais parece sonhar acordado. Esta mistura de medo e desejo é indescritível; somente a experiência da paixão é capaz de proporcionar tal sensação; as palavras (meros símbolos) ficam aquém do sentimento (como sempre); no entanto, mesmo tendo consciência da inutilidade das palavras diante da vida, insistimos em usá-las para expressar o inefável (mais um paradoxo que se impõe).

Nosso pensamento fica encharcado do intenso sentimento que o ser pelo qual estamos apaixonados provoca. Tudo nos faz lembrar dele; na verdade, não o esquecemos um minuto sequer – é mesmo como um vício; e esta obsessão (podemos chamá-la assim) não é tanto pelo outro, mas pelo que ele (ser amado) desperta dentro de nós, o que faz da paixão algo muito próximo do narcisismo.

Com efeito, queremos encontrar o objeto da paixão a toda hora, desejamos ouvi-lo, tocá-lo, senti-lo; os limites entre nós e ele perdem-se e nossa vontade predominante é de fusão. Contudo, não é o outro em si o que desejamos em última instância; queremos sentir dentro de nós o que aquele ser desperta. Como assevera Nietzsche: “em última análise, amam-se os nossos desejos, e não o objeto desses desejos.”

Diante da paixão, passamos a ignorar a realidade da solidão, para acreditar que a separação (na verdade, invencível) é superável, desde que aquele ser específico nos acolha. A verdade (ou melhor, o que elegemos como verdade) torna-se o que sentimos pelo outro.

E é justamente este sofrimento, causado pela paixão idealizada, o sentimento mais utilizado pelos artistas românticos como base para sua criação. O amor deve ser refutado, a realização deve ser impossível ou pelo menos postergada ao máximo; o que importa é a paixão que antecede (que almeja, mas não alcança) a relação fantasiada.

Segundo Nietzsche, “o amor é o estado no qual os homens têm mais probabilidades de ver as coisas tal como elas não são.” E, como sabemos, o filósofo destruidor de ídolos era um crítico severo do romantismo, que para ele seria a “plebe sensual”, na medida em que o artista digno não é aquele dilacerado e enfraquecido por suas paixões interiores, mas aquele que sabe cultivar “o ódio ao sentimento, à sensibilidade (...), o ódio ao que é múltiplo, incerto, vago...”.

Afirma Nietzsche que “o herói romântico é um doente, que acaba sempre morrendo jovem, corroído” pela contradição de suas forças internas. A verdadeira arte para o homem que declarou o óbito de deus seria a clássica, a qual refuta as emoções sentimentais; para ele são expressões do “grande estilo” - arte, portanto - o que fizeram os gregos, na antiguidade, e os franceses, no fim do séc. XVII.* E a arte, segundo o filósofo destruidor de ídolos, é essencial: ele a classifica como “força ativa” e chega a afirmar que “sem a música [arte], a vida seria um erro”.

Minha tendência é, tal qual Nietzsche, rejeitar o romantismo. Mas confesso que, em certos momentos, me identifico com a fraqueza, o vício, a obsessão, a doença inerente aos românticos, o que faz com que meu "realismo" caia por terra. Depois, quando volto ao normal (sim, porque a paixão é tudo menos normalidade), o "realismo" retorna ao comando e passo a observar a paixão de uma distância segura, ou seja, nos outros, não mais em mim.

Sobre o amor romântico, há uma música extremamente bela que representa perfeitamente o tema:

"Um Girassol da Cor de Seu Cabelo
(Márcio Borges e Lô Borges)

Vento solar e estrelas do mar
A terra azul da cor do seu vestido
Vento solar e estrelas do mar
Você ainda quer morar comigo

Se eu cantar não chore não
É só poesia
Eu só preciso ter você
Por mais um dia
Ainda gosto de dançar
Bom dia
Como vai você?

Sol, girassol, verde, vento solar
Você ainda quer morar comigo
Vento solar e estrelas do mar
Um girassol da cor de seu cabelo

Se eu morrer não chore não
É só a lua
É seu vestido cor de maravilha nua
Ainda moro nesta mesma rua
Como vai você?
Você vem?
Ou será que é tarde demais?

O meu pensamento tem a cor de seu vestido
Ou um girassol que tem a cor de seu cabelo?"

A primeira estrofe demonstra o quanto o ser amado torna-se uma obsessão, uma vez que o Eu-lírico ao ver uma imagem da terra azul a associa ao vestido de sua amada. Como eu disse acima, “tudo nos faz lembrar dele [objeto da paixão]; na verdade, não o esquecemos um minuto sequer – é mesmo como um vício.”

E a idéia da associação de todos objetos e cores ao objeto da paixão é retomada outras vezes na música:

"O meu pensamento tem a cor de seu vestido
Ou um girassol que tem a cor de seu cabelo?"

Estes versos expressam o quanto a paixão domina: nosso pensamento passa a ter a cor das vestes de quem amamos; o girassol passa a ter a cor do cabelo dela; ou seja, estamos imersos no que o objeto amado representa para nós.

Esta música tem um significado muito especial para mim, pois me lembra a época da separação dos meus pais (eu tinha uns 3 ou 4 anos), na qual imaginava que meu pai a cantava para minha mãe - o que transformou esta canção na expressão sonora do meu desejo infantil de ver meus pais unidos novamente.

Sonhava acordado com meu pai perguntando à minha mãe:

"Você ainda quer morar comigo?
(...)
Ainda moro nesta mesma rua
Como vai você?
Você vem?
Ou será que é tarde demais?"

E não era nada absurdo o meu sonho, pois meu pai é um poeta e ainda morava na mesma rua. Dentro deste contexto, emociono-me demais com a beleza dos versos: “Se eu cantar não chore não / É só poesia” e “Se eu morrer não chore não / É só a lua”. São perfeitos.

Já faz muito tempo que aceitei a separação dos meus pais e hoje não nutro qualquer desejo de vê-los juntos. Sei que o tempo deles passou e a vida os presenteou com outras relações, que lhes trouxeram a realização que não conseguiram juntos. Mas esta música, apesar de continuar evocando estas lembranças da infância (e nunca deixará de evocá-las), transformou-se com o tempo: eu passei a ser o Eu-lírico: não vejo mais meu pai cantando para minha mãe, mas eu mesmo cantando para minha amada:

"Você vem?
Ou será que é tarde demais?"

Nota:

* FERRY, Luc. Aprender a viver. Filosofia para os novos tempos; tradução Vera Lúcia dos Reis. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. Págs. 174 a 232.


sexta-feira, 17 de julho de 2009

Dança de Eleanor

Há muito penso em escrever sobre a solidão; mas, por ironia do destino, quando tento me debruçar sobre o tema, alguém aparece ou algum aparelho toca. E, na verdade, pra escrever sobre a solidão,

É preciso assistir, desacompanhado,
ao ocaso;
E jantar sozinho
Num sábado.

É preciso tornar-me azul
Diante da luz que emana da televisão
Num quarto escuro.
É preciso chorar sem preocupação
De que vejam minhas lágrimas,
E rir, e ouvir minha risada
Como um som estranho e distante.

É preciso dançar só, de janelas fechadas,
E estar tão isolado a ponto de imaginar alguém
Com quem conversar;
É preciso querer sair e não encontrar forças;
E se forças encontrar,
Andar sem destino, sem hora pra voltar
E sem ninguém a me esperar.

Existem pelo menos duas espécies de solidão: a que desejamos (auto-isolamento) e a que se nos impõe, quando os outros nos esquecem, ainda que temporariamente. Confesso que, como misantropo, sou adepto da primeira modalidade: sou mestre em me isolar. E não me sinto nem um pouco mal com isso. É mais fácil irritar-me com a presença constante que com a ausência.

Minha paixão pela literatura muito tem a ver com minha propensão à solidão; não me sinto nada só quando leio ou escrevo - sinto-me, na verdade, num monólogo silencioso, que freqüentemente mais me parece um diálogo (quase uma esquizofrenia, como a descrita em "Lobo da Estepe", de H. Hesse).

A poesia acima trata da solidão imposta, aquela da qual fugimos. Confesso que é muito difícil sentir a separação completa - embora na realidade sejamos sempre solitários, quer aceitemos esse fato ou não -, em razão das várias formas de atenuar, mascarar, a inexorável solidão que nos é inerente. Ligamos o computador e, num minuto, estamos conectados a várias outras pessoas (perfis); ligamos a TV ou o rádio; o celular permite que encontremos as pessoas onde quer que estejam, ou seja, acessamos o outro na hora em que desejamos. Mas até que ponto este "contato virtual" satisfaz nossa necessidade de nos relacionar?

E não se iluda: encontrar pessoas não significa sair da solidão. No meu caso, estar no meio da multidão muita vez aumenta minha sensação de alienação. E isso também acontece com as companhias superficiais, as conversas sem atenção, as palavras sem reflexão. Na verdade, prefiro a solidão ao contato vazio.

Hoje, para ficar realmente só - ou melhor, para sentir integralmente a solidão, sem subterfúgios - é necessário se esforçar; para tanto, temos que desligar todos os aparelhos: TV, computador, mp3 player, telefones etc.

Com efeito, a rapidez de nossos tempos nos conduz a estas relações fugazes e superficiais, que se prestam a dissimular o silêncio de nossa alienação. Há muitos “perfis” (máscaras virtuais) para se conectar, mas poucas pessoas (seres humanos) para se relacionar de verdade. Como afirma Bauman, nossas relações são cada vez mais líquidas, fluidas. Impossível não concordar.

Nesse contexto, as músicas que evoco abordam o tema com uma profundidade peculiar. Uma trata das pessoas que são sozinhas; outra, das pessoas que estão sozinhas.

Quem é “Eleanor Rigby” (Beatles)?
Esta mulher que cata, sozinha, grãos de arroz depois de um casamento. Reparem na profundidade desta descrição: o casamento representa justamente a celebração da união; assim, catar, só, os grãos caídos ao chão, depois desta cerimônia é ainda mais grave, na medida em que reforça o isolamento.

“Eleanor rigby picks up the rice in the church where a wedding has been
Lives in a dream
Waits at the window, wearing the face that she keeps in a jar by the door”

Quem é ela? Esta mulher que vive num sonho e espera à janela, vestindo a face (ostentando a máscara) que mantém num pote perto da porta. Este verso permite diversas interpretações. Para mim, a janela representa a relação com os outros, o que permitimos que os outros vejam; desta forma, a máscara guardada no pote é a expressão que Eleanor ostenta quando se expõe.

E de onde vêm as pessoas solitárias?
E quem é o padre Mackenzie, que se dedica a elaborar um sermão que ninguém escutará? De onde ele vem? E quem se importa?

O solitário representa aquele que não interage e que, portanto, é um observador, um ser afastado, que assiste, à distância, às vidas e relações alheias. A imagem de Eleanor à janela é exatamente esta: a de alguém que observa a vida e não a vive. Não se trata de solidão-estado, mas, sim, de solidão-ser.

"Eleanor rigby died in the church and was buried along with her name
Nobody came"

A idéia de um enterro sem qualquer pessoa é uma das imagens mais fortes que se pode ter da solidão. A morte, por si só, é separação, abandono; um velório vazio é uma morte dentro da morte. Ninguém foi ao enterro de Eleanor. O ato de velar o corpo e após enterrá-lo é um ato que celebra a extinção do eu: escondemos embaixo da terra os vestígios materiais que restam inertes. Socialmente, alguém que não se relaciona, já está morto; confirmamos amiúde nossa existência ao interagir.

Em relação à outra música, podemos refletir como seria então a “Dança da solidão”, que parece exprimir um paradoxo, pois dançar é uma manifestação social, a qual, seja numa tribo ou numa festa, envolve várias pessoas.

“Solidão é lava que cobre tudo
Amargura em minha boca
Sorri seus dentes de chumbo
Solidão palavra cavada no coração
Resignado e mudo
No compasso da desilusão

Desilusão, desilusão
Danço eu dança você
Na dança da solidão

Camélia ficou viúva, Joana se apaixonou
Maria tentou a morte, por causa do seu amor
Meu pai sempre me dizia, meu filho tome cuidado
Quando eu penso no futuro, não esqueço o meu passado

Desilusão, desilusão
Danço eu dança você
Na dança da solidão

Quando vem a madrugada, meu pensamento vagueia
Corro os dedos na viola, contemplando a lua cheia
Apesar de tudo existe, uma fonte de água pura
Quem beber daquela água não terá mais amargura”

Segundo o Eu-lírico, a solidão petrifica, tal qual a cabeça de medusa; ela é “lava que cobre tudo”, é “amargura” na boca, tem dentes de chumbo, e cava o coração silenciosamente. Esta é a solidão que decorre da desilusão amorosa.

É interessante notar que tanto em "Eleanor Rigby" quanto em "Dança da solidão", há referência a personagens: o Eu-liríco, na segunda música, cita Camélia, a viúva; Joana, a apaixonada; e Maria, a desiludida. Penso que a idéia de criar personagens é relevante para personificar a solidão e, desta forma, provocar a identificação.

Na primeira parte da última estrofe, aborda-se o caráter criativo da solidão, “Quando vem a madrugada / Meu pensamento vagueia / Corro os dedos na viola / Contemplando a lua cheia”.

De fato, a solidão é imprescindível à criação artística. Como diz Calvino, "o temperamento saturnino [tendente ao melancólico, ao solitário] é próprio dos artistas, dos poetas, dos pensadores (...). É certo que a literatura não existiria se uma boa parte dos seres humanos não fosse inclinada a uma forte introversão, a um descontentamento com o mundo tal como ele é (...)".

Outrossim, no que se refere à desilusão - pois a solidão da segunda canção decorre da frustração amorosa -, lembro-me de Pessoa a dizer que:

"Enquanto não superarmos a ânsia do amor sem limites, não podemos crescer emocionalmente. Enquanto não atravessarmos a dor de nossa própria solidão, continuaremos a nos buscar em outras metades. Para viver a dois, antes, é necessário ser um".

Entretanto, enquanto em “Eleanor Rigby” a solidão não encontra nenhum remédio, em "Dança da solidão", vemos que, ao fim, o Eu-lírico, que baila ao som mudo do abandono, propõe uma solução para o alheamento:

”Apesar de tudo existe
Uma fonte de água pura
Quem beber daquela água
Não terá mais amargura”

Esta solução pode ser interpretada de diversas formas. O que seria esta “fonte de água pura”? Pode ser a aceitação da nossa inelutável solidão, entendendo-se que esta fonte de água pura emana do nosso próprio ser, ou uma solução metafísica, caso se prefira acreditar num ser supremo e onipresente.

Podemos disfarçar a solidão, nos distrair um pouco, acreditar que o outro poderá removê-la - assim agimos ao nos apaixonarmos -, da mesma forma que é comum dissimularmos a inevitabilidade da morte - seja ignorando-a, seja preferindo acreditar num além, numa “esperança supraterrestre.” * Para mim, todavia, que não ouso “blasfemar contra a terra”, não há solução: a solidão é invencível, assim como a morte. Prefiro a realidade à ilusão.

Nota

* V. prólogo de Assim falou Zaratustra, uma das últimas obras de Nietzsche.“Eu vos conjuro, ó irmãos, permaneçam fiéis à terra e não creiam naqueles que vos falam da esperança supraterrestre. (...) De agora em diante, o crime é blasfemar contra a terra e conceder mais apreço às entranhas do inescrutável do que ao sentido da terra”.



                                         

sábado, 11 de julho de 2009

Henfil

Mais uma descoberta de ontem:

"Cartas da mãe é uma crônica sobre o Brasil dos últimos 30 anos contada através das cartas que o cartunista Henfil (1944/1988) escreveu para sua mãe, Dona Maria. Estas cartas, publicadas em livros e jornais, são lidas pelo ator e diretor Antônio Abujamra enquanto desfilam imagens do Brasil contemporâneo. Política, cultura, amigos e amor são alguns dos temas que elas evocam, criando um diálogo entre o passado recente do Brasil e nossa situação atual. Artistas, políticos e amigos de Henfil, entre eles o atual Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, o escritor Luis Fernando Veríssimo, os cartunistas Angeli e Laerte e o jornalista Zuenir Ventura falam sobre a trajetória do cartunista dos anos da ditadura militar até sua morte. Animações inéditas de seus cartuns complementam o documentário dirigido por Fernando Kinas e Marina Willer de 2003."

Um malandro

Acabo de voltar do cinema da UFF, onde fui assistir a uma seqüência de curtas (entrada franca), da qual gostei muito.

Assisti a quatro curtas: "Onde a Coruja Dorme", sobre Bezerra da Silva; "Nelson Sargento"; "Mestre Humberto" e "Cartas da mãe", sobre Henfil. Não sei por que o curta sobre Nelson Cavaquinho não passou, apesar de previsto na programação. E confesso que fui ávido para vê-lo, afinal foi ele que compôs "Folhas secas", música que deu origem ao meu primeiro ensaio (rumor de uma folha seca).

Não consigo parar de lembrar do Bezerra da Silva falando sobre suas composições. Indagado por que não escrevia letras românticas, responde na lata:
- O mundo nunca me deu amor; não vou falar do que não conheço.

Deixo o link da programação do Cine Art UFF aí abaixo:

http://www.uff.br/centroarte/cinema.html


Trecho de "Onde a Coruja Dorme":

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Sinal Fechado

Uma escada para o futuro ou Ampulheta escarlate

Numa noite de chuva fina, dois carros estão emparelhados, esperando, sob a luz vermelha fragmentada nas inúmeras gotículas suspensas nos vidros, que o sinal de trânsito de trânsito lhes permita seguir.

Os dois motoristas têm pressa e o sinal parece sugar toda a atenção; mas num instante ambos deixam cair os antolhos da ansiedade e olham para o lado. Os olhares se cruzam e, depois de um breve momento, se reconhecem; eles abaixam os vidros e trocam saudações - são amigos que não se encontravam há tempos. A ampulheta escarlate marca o tempo, brevíssimo, que eles têm para conversar. O sinal fechado é uma parada obrigatória; uma pequena interrupção que lhes é imposta.

Queremos seguir, precisamos seguir, somos obrigados a seguir. Aí está a diferença: a rapidez é excitante; no entanto, quando é uma imposição, torna-se cansativa, principalmente se não temos idéia do objetivo da corrida da qual participamos.

É como se houvesse - e creio que de fato há - uma perseguição: nós perseguimos algo inescrutável mas imprescindível, ao mesmo tempo em que somos vítimas de uma perseguição, algo nos empurra adiante; seguimos correndo, sob pena de sermos esmagados. E “enquanto corremos pela estrada, parece que nossas sombras são maiores que nossas almas.”[1]

A imagem de um rio caudaloso, que carrega em sua corrente tudo que ali cai, representa esse fluxo no qual estamos presos. E não conseguimos ver sequer as margens. Outra imagem é a de que somos pedras rolando montanha abaixo; nada é capaz de nos fazer parar: nosso peso, a gravidade de nossas vidas, nos impele para o abismo.[2]

O presente, nesse contexto, é fugaz, enfadonho e instrumental - na medida em que não tem nenhum valor em si mesmo, mas apenas como degrau para o porvir -; é somente um pequeno e imperceptível degrau na escada para o futuro.

Encontramo-nos no labirinto do palácio do Mago Atlas,[3] que, de uma hora para outra, se dissolve no nada, transformando-se num redemoinho de vazio. Atlas, mago ilusionista, cria esta armadilha, para atrair os cavaleiros que procuram algo; ele ilude suas vítimas com visões, nas quais os objetos desejados são roubados e levados para o castelo. Desta forma, os cavaleiros caem nesta armadilha ao perseguirem algum bem que aparentemente lhes teria sido furtado. “O desejo é uma corrida rumo ao nada, o encantamento de Atlas concentra toda as paixões insatisfeitas no interior de um labirinto (...).” [4] Sinto-me neste labirinto, buscando a realização de um desejo dentro da ilusão, ou seja, dentro deste palácio que se encontra deserto daquilo que almejo.

Aqueles amigos que se encontraram debaixo do sinal estão indo, “correndo para pegar” um lugar no futuro, que é algo inatingível, pois, ao chegar lá, ele será presente e, portanto, mais uma vez, será um pequeno degrau da escada infinita, na qual eles estão subindo com pressa, para chegar ao futuro.

No entanto, só existe o presente, que é fugaz e consiste neste degrau, no qual mal colocamos nossos pés, vislumbrando sempre o que está por vir, não o que há agora. E assim seguimos; assim temos que seguir. Parar agora, ainda que por um bom motivo, nos angustia. Estamos condenados a nos mover incessantemente; parar é morrer.

Subimos esta escada que compramos para chegar ao céu (stairway to heaven), [5] ao “sono tranqüilo”, a algum lugar onde poderemos parar finalmente. Mas como podemos sacrificar o presente por algo que não conhecemos? Penso que não temos tempo sequer para refletir sobre isso: as margens estão distantes de nós, não há onde agarrar, precisamos seguir, rapidamente. O sinal vai abrir. Há quanto tempo estamos correndo sem olharmos para onde pisamos. "Pois é, quanto tempo!"

É isto que “Sinal fechado”, de Paulinho da Viola, representa para mim. Aí está o diálogo sobre o tempo e a fluidez das relações:

– Olá! Como vai?
– Eu vou indo. E você, tudo bem?
– Tudo bem! Eu vou indo, correndo pegar meu lugar no futuro... E
você?
– Tudo bem! Eu vou indo, em busca de um sono tranqüilo...
Quem sabe?
– Quanto tempo!
– Pois é, quanto tempo!
– Me perdoe a pressa - é a alma dos nossos negócios!
– Qual, não tem de quê! Eu também só ando a cem!
– Quando é que você telefona? Precisamos nos ver por aí!
– Pra semana, prometo, talvez nos vejamos...Quem sabe?– Quanto tempo!
– Pois é...quanto tempo!
– Tanta coisa que eu tinha a dizer, mas eu sumi na poeira das
ruas...
– Eu também tenho algo a dizer, mas me foge à lembrança!
– Por favor, telefone - Eu preciso beber alguma coisa,
rapidamente...
– Pra semana...
– O sinal...
– Eu procuro você...
– Vai abrir, vai abrir...
– Eu prometo, não esqueço, não esqueço...
– Por favor, não esqueça, não esqueça...
– Adeus!
– Adeus!
– Adeus!

Ater-me-ei à análise da letra, mas não posso deixar de ressaltar a beleza da melodia, que, para mim, transmite todo o caráter inelutável do tempo. Prometo que talvez eu faça uma leitura semiótica de “sinal fechado”; "quem sabe?"

A expressão “eu vou indo” representa, ao mesmo tempo, o estado e a maneira pela qual as personagens seguem adiante: “eu vou indo, correndo pegar meu lugar no futuro”;“eu vou indo em busca de um sono tranqüilo.” Observem que, em vez de responderem que estão bem, as personagens dizem que estão indo e apontam o futuro como objetivo. Mesmo ao afirmar que deseja um “sono tranqüilo”, podemos perceber que se trata de um anseio quanto a algo que se pretende para o futuro. Assim, nas duas respostas, fica clara a hegemonia do futuro em detrimento do presente.

Em seguida, eles constatam quanto tempo passou até se encontrarem agora, casualmente; e essa constatação se repete mais uma vez no diálogo, servindo como uma espécie de refrão. Após, eles justificam a ausência, reafirmando a pressa, a inevitabilidade da rapidez em que vivem: “me perdoe a pressa - é a alma dos nossos negócios! Qual, não tem de quê! Eu também só ando a cem!” E falam sobre se encontrar algum dia, num futuro sem qualquer definição, numa data a ser fixada.

E aí se insere a frase que demonstra toda a fluidez das relações: “pra semana, prometo, talvez nos vejamos... Quem sabe?”. O uso do verbo “prometer” seguido de “talvez” e “quem sabe?” demonstra o paradoxo de quem assevera algo e o refuta ao mesmo tempo.

Logo após, ambos afirmam que tinham algo a dizer, mas o tempo e a pressa fizeram as palavras sumir “na poeira das ruas” ou fugir à lembrança. E mais uma vez eles falam no encontro que um dia marcarão no futuro - quem sabe?

Os últimos grãos de areia da ampulheta já estão caindo: a luz vermelha que lhes concedeu esta fugaz intermitência está quase se tornando verde - eles precisarão seguir, pois o sinal “vai abrir, vai abrir.” O esquecimento prevalecerá; a dúvida vencerá as promessas; o presente sucumbirá diante do futuro. Vamos, corra, o sinal vai abrir, cumpra sua sentença: vá correndo pegar seu lugar no futuro; não perca tempo com o presente.


Notas:

[1] V. Stairway to heaven (Led Zeppelin). “And as we wind on down the road / Our shadows taller than our soul.”

[2] V. Stairway to heaven (Led Zeppelin). “When all are one and one is all / To be a rock and not to roll.”

[3] Ariosto. Orlando Furioso.

[4] CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos; tradução Nilson Moulin – S. Paulo: Companhia das Letras, 2007. Pág. 73/74.

[5] V. Stairway to heaven, Led Zeppelin. “There's a lady who's sure all that glitters is gold / And she's buying a stairway to heaven.”


Texto publicado na 2ª edição da Revista Leitura & Crítica (páginas 17 e 18).

terça-feira, 7 de julho de 2009

Rumor de uma folha seca

Imagine uma enorme mangueira numa manhã de intenso calor. Aproxime-se dela lentamente; entre em sua sombra, sinta seu cheiro; observe a textura do seu tronco; olhe para cima, veja seus galhos e seus frutos. Em seguida, perscrute os pequenos ramos, e, por último, as folhas: admire-as cuidadosamente, inicialmente como um bloco, como se juntas formassem um só órgão; e, depois, uma a uma: as maiores, as verde-escuras, as tenras folhinhas verde-claras, e as folhas secas.

Escolha uma das folhas secas, a mais frágil que encontrar, e não tire os olhos dela. Compreenda toda sua fragilidade: a qualquer momento o mais que tênue elo que a mantém unida à árvore se romperá. Aprecie o momento em que ela se desprende e levemente paira no ar. Apreenda toda a solidão e liberdade que se encerram no ato de flutuar só, depois de toda uma existência atrelada a um ramo, a uma árvore. Agora, no chão, aproxime-se dela e contemple sua rigidez pálida. Não a toque; deixe que uma brisa a carregue; ouça apenas o ruído que faz ao rolar no chão, carregada pelo vento.

Esse ruído da folha sendo arrastada pelo solo lembra-me Orfeu a chamar Eurídice, mesmo depois de despedaçado pelas furiosas Mênades. Esse rumor é um canto de saudade, que nasce do atrito entre amor e morte, passado e futuro, união e cisão, folha desidratada e solo. A árvore representa para esta delicada folha o que Eurídice representa a Orfeu. Este canta “Eurídice! Eurídice!”, embora saiba que nada poderá trazê-la de volta; da mesma forma que nada pode restabelecer a união entre a folha morta e sua árvore.

Deixe-a de lado agora e procure a folha mais nova, aquela que acabou de se abrir, quase diáfana de tão tenra, e constate que o sol ainda não a atingiu e portanto não lhe causou qualquer cicatriz: ela não tem marcas nem história.

Ande, sem olhar para o solo, dentro da esfera de sombra criada pela copa da mangueira. Ouça o som de suas pegadas sobre as folhas secas. Sinta aquela folha seca que viu cair no chão se fragmentar em contato com seus pés descalços.

Somos folhas - tenras, verdes ou secas. Estamos unidos a uma árvore; mas o sol está sempre nos queimando, o tempo sempre nos consumindo. Seremos folhas secas; quando isso acontecer, sentiremos saudade da nossa juventude.

Mesmo sendo uma folha verde, já consigo sentir melancolia ao pensar na folhinha translúcida que fui e na ressequida folha que serei, “quando o tempo avisar que não” poderei mais estar unido ao que amo.

E não pense que a agonia é apenas da folha morta que segue sozinha. Pelo contrário, a Mangueira sofre a perda de cada folha, de cada poeta que a morte leva. As folhas são imprescindíveis à árvore; afinal, o que é o todo sem suas partes? Ademais, o sol que alimenta a planta entra pelas folhas. Os sambas que nutrem toda a Escola nascem de cada compositor.

Isso é o que sinto ao ouvir “Folhas Secas”, de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito:

“Quando piso em folhas secas
Caídas de uma mangueira
Penso na minha escola
E nos poetas da minha Estação primeira

Não sei quantas vezes
Subi o morro cantando
Sempre o Sol me queimando
E assim vou me acabando

Quando o tempo avisar
Que eu não posso mais cantar
Sei que vou sentir saudade
Ao lado do meu violão e da minha mocidade”

O Eu-lírico, folha da grande Mangueira (Estação Primeira), canta sobre seu fim, sobre o tempo, que, ao passar, o ceifará da árvore. Ele confronta o rompimento (a vulnerável folha caída) com momento de maior união (mocidade). Na primeira estrofe, ele trata da fraqueza das folhas secas - ele e os poetas são folhas -, e se pode sentir o ruído das folhas se desfazendo sob seus pés; é esse som que faz com que se lembre da sua escola de samba, sua árvore, o todo do qual faz parte. É do rumor de uma folha seca sendo arrastada pelo vento e se desmanchando sob uma pegada que nasce o samba.

Ao pisar nas “folhas secas” (presente), ele pensa na Mangueira e, partindo daí, viaja ao passado (flashback): já não sabe quantas vezes subiu o morro cantando, com o sol a queimá-lo. Após, retorna ao presente, para dizer que é desta maneira - exposto ao sol - que vai se acabando. O sol queimando representa o tempo passando. A umidade inerente à mocidade se evapora diante do calor solar.

Na última estrofe, ele vai ao futuro (flashforward) para vislumbrar sua morte - transformando-se a si numa folha seca - e sofrer, desta forma, toda a dor do afastamento. Dentro desse futuro conjecturado - quando o tempo lhe diz que não pode mais cantar -, ele pensa em si mesmo sentindo saudade (flashback) do momento em que esteve mais unido à Mangueira - ao lado de seu violão, em sua mocidade (um flashback dentro do flashforward). Ele convoca a imagem da morte, da cisão, e, dentro dessa imagem, fala do amor, retornando à juventude, ao momento de maior integração.

O Eu-lírico viaja entre o passado e o futuro, e do atrito entre os flashbacks e flashforwards faz nascer o som da folha seca que se desfaz, vindo daí a melancolia necessária para construir seu samba. A música é criada a partir da destruição da folha: o samba nasce da imagem da morte. Como diz Vinicius, “pra fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza" ("Samba da benção", dele e do Baden Powell).

Proponho uma última imagem: no topo de um morro, uma mangueira sob a pálida luz de um ocaso outonal. No chão, milhares de folhas secas formam um denso e quebradiço tapete. Um homem com um violão toca delicadamente os acordes de “Folhas Secas”. Uma mulher, sentada num balanço preso num galho da árvore, canta suavemente. Crianças descalças pisam nas folhas mortas marcando o ritmo da música: a percussão é o barulho das folhas pisadas.

Com efeito, toda prosa construída sobre uma obra - seja ela qual for - nunca superará a experiência de perscrutá-la, senti-la livremente, sem considerar qualquer interpretação que outros lhe tenham dado. Ademais, quem é a prosa para falar sobre a poesia?

Italo Calvino, ao falar sobre a leveza, na primeira das suas "Seis propostas para o próximo milênio", afirma que “toda interpretação empobrece o mito e o sufoca”.* Tal idéia aplica-se não só aos mitos, mas a todas exegeses: interpretar é optar por um sentido - é limitar, portanto. Assim também pensa Umberto Eco que em sua "Obra aberta" defende a liberdade do receptor.

Portanto, não se atenha a minha maneira de sentir “Folhas Secas”, pois este é apenas um eco distante e abafado de um canto magistral. Ouça e leia-a só, num canto sossegado, e chegue à sua própria conclusão; ou melhor, sinta a música, os versos, cada palavra. Minha única pretensão foi partilhar o que senti: descrever o eco que o som das folhas mortas produziu dentro de mim.

*CALVINO, Italo. Seis Propostas para o próximo milênio. Tradução: Ivo Barroso. 3ª edição, São Paulo: Companhia das Letras, 2002. Pág. 16.

PS. A versão de Elis (abaixo) é a que mais se coaduna com o ensaio, por sua peculiar lentidão.


ecos prosaicos

Ecos prosaicos é um nome auto-explicativo: ecos, porque se trata da ressonância que o mundo produz em mim, embora o som que devolvo ao mundo nunca seja mera repetição do que entrou; prosaicos, pelos dois sentidos sentidos do termo: pela forma de prosa e por ser corriqueiro, vulgar. Afinal, quem é a prosa para falar da poesia?

A idéia de criar um blog surgiu a partir do ensaio que escrevi sobre o samba "Folhas secas" de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito. Na verdade, o eco desta música dentro de mim obrigou-me a escrever sobre ela - há muito tempo me emocionava ao escutá-la e um dia resolvi devolver ao mundo o que "Folhas secas" me faz sentir. Publiquei o texto num site e, para minha surpresa, muitos gostaram. Resolvi, então, criar um blog, para compartilhar ecos que outras músicas, poesias, filmes e livros geram em mim.

Como eu disse em "Rumor de uma folha seca", toda prosa construída sobre uma obra - seja ela qual for - nunca superará a experiência de perscrutá-la, senti-la livremente, sem considerar qualquer interpretação que outros lhe tenham dado. Minha única pretensão é partilhar o que sinto, descrever o eco que o som do mundo produz dentro de mim.