Pode ser o mais estranho dos paradoxos, porém a verdade é que quando a paixão se realiza - quando se é correspondido - a intensidade do sentimento se transforma: as expectativas e os sonhos inerentes ao momento anterior ao início da relação perdem seu caráter místico para dar espaço à realidade.
É no momento que antecede a vivência (paixão ainda idealizada) que a intensidade e o desejo - e toda a fantasia que os acompanha - são mais fortes. Muito semelhante é o que ocorre com o amor que começou a se realizar, mas foi interrompido abruptamente na fase inicial; neste caso, é como se não houvesse realização e a fantasia preenche esta lacuna deixada pela frustração.
A dúvida é crucial neste processo. A princípio, nunca sabemos se seremos correspondidos, se o outro está sentindo o mesmo que nós; e é esta incerteza que fundamenta toda a fantasia sobre o futuro, que mais parece sonhar acordado. Esta mistura de medo e desejo é indescritível; somente a experiência da paixão é capaz de proporcionar tal sensação; as palavras (meros símbolos) ficam aquém do sentimento (como sempre); no entanto, mesmo tendo consciência da inutilidade das palavras diante da vida, insistimos em usá-las para expressar o inefável (mais um paradoxo que se impõe).
Nosso pensamento fica encharcado do intenso sentimento que o ser pelo qual estamos apaixonados provoca. Tudo nos faz lembrar dele; na verdade, não o esquecemos um minuto sequer – é mesmo como um vício; e esta obsessão (podemos chamá-la assim) não é tanto pelo outro, mas pelo que ele (ser amado) desperta dentro de nós, o que faz da paixão algo muito próximo do narcisismo.
Com efeito, queremos encontrar o objeto da paixão a toda hora, desejamos ouvi-lo, tocá-lo, senti-lo; os limites entre nós e ele perdem-se e nossa vontade predominante é de fusão. Contudo, não é o outro em si o que desejamos em última instância; queremos sentir dentro de nós o que aquele ser desperta. Como assevera Nietzsche: “em última análise, amam-se os nossos desejos, e não o objeto desses desejos.”
Diante da paixão, passamos a ignorar a realidade da solidão, para acreditar que a separação (na verdade, invencível) é superável, desde que aquele ser específico nos acolha. A verdade (ou melhor, o que elegemos como verdade) torna-se o que sentimos pelo outro.
E é justamente este sofrimento, causado pela paixão idealizada, o sentimento mais utilizado pelos artistas românticos como base para sua criação. O amor deve ser refutado, a realização deve ser impossível ou pelo menos postergada ao máximo; o que importa é a paixão que antecede (que almeja, mas não alcança) a relação fantasiada.
Segundo Nietzsche, “o amor é o estado no qual os homens têm mais probabilidades de ver as coisas tal como elas não são.” E, como sabemos, o filósofo destruidor de ídolos era um crítico severo do romantismo, que para ele seria a “plebe sensual”, na medida em que o artista digno não é aquele dilacerado e enfraquecido por suas paixões interiores, mas aquele que sabe cultivar “o ódio ao sentimento, à sensibilidade (...), o ódio ao que é múltiplo, incerto, vago...”.
Afirma Nietzsche que “o herói romântico é um doente, que acaba sempre morrendo jovem, corroído” pela contradição de suas forças internas. A verdadeira arte para o homem que declarou o óbito de deus seria a clássica, a qual refuta as emoções sentimentais; para ele são expressões do “grande estilo” - arte, portanto - o que fizeram os gregos, na antiguidade, e os franceses, no fim do séc. XVII.* E a arte, segundo o filósofo destruidor de ídolos, é essencial: ele a classifica como “força ativa” e chega a afirmar que “sem a música [arte], a vida seria um erro”.
Minha tendência é, tal qual Nietzsche, rejeitar o romantismo. Mas confesso que, em certos momentos, me identifico com a fraqueza, o vício, a obsessão, a doença inerente aos românticos, o que faz com que meu "realismo" caia por terra. Depois, quando volto ao normal (sim, porque a paixão é tudo menos normalidade), o "realismo" retorna ao comando e passo a observar a paixão de uma distância segura, ou seja, nos outros, não mais em mim.
Sobre o amor romântico, há uma música extremamente bela que representa perfeitamente o tema:
"Um Girassol da Cor de Seu Cabelo
(Márcio Borges e Lô Borges)
Vento solar e estrelas do mar
A terra azul da cor do seu vestido
Vento solar e estrelas do mar
Você ainda quer morar comigo
Se eu cantar não chore não
É só poesia
Eu só preciso ter você
Por mais um dia
Ainda gosto de dançar
Bom dia
Como vai você?
Sol, girassol, verde, vento solar
Você ainda quer morar comigo
Vento solar e estrelas do mar
Um girassol da cor de seu cabelo
Se eu morrer não chore não
É só a lua
É seu vestido cor de maravilha nua
Ainda moro nesta mesma rua
Como vai você?
Você vem?
Ou será que é tarde demais?
O meu pensamento tem a cor de seu vestido
Ou um girassol que tem a cor de seu cabelo?"
A primeira estrofe demonstra o quanto o ser amado torna-se uma obsessão, uma vez que o Eu-lírico ao ver uma imagem da terra azul a associa ao vestido de sua amada. Como eu disse acima, “tudo nos faz lembrar dele [objeto da paixão]; na verdade, não o esquecemos um minuto sequer – é mesmo como um vício.”
E a idéia da associação de todos objetos e cores ao objeto da paixão é retomada outras vezes na música:
"O meu pensamento tem a cor de seu vestido
Ou um girassol que tem a cor de seu cabelo?"
Estes versos expressam o quanto a paixão domina: nosso pensamento passa a ter a cor das vestes de quem amamos; o girassol passa a ter a cor do cabelo dela; ou seja, estamos imersos no que o objeto amado representa para nós.
Esta música tem um significado muito especial para mim, pois me lembra a época da separação dos meus pais (eu tinha uns 3 ou 4 anos), na qual imaginava que meu pai a cantava para minha mãe - o que transformou esta canção na expressão sonora do meu desejo infantil de ver meus pais unidos novamente.
Sonhava acordado com meu pai perguntando à minha mãe:
"Você ainda quer morar comigo?
(...)
Ainda moro nesta mesma rua
Como vai você?
Você vem?
Ou será que é tarde demais?"
E não era nada absurdo o meu sonho, pois meu pai é um poeta e ainda morava na mesma rua. Dentro deste contexto, emociono-me demais com a beleza dos versos: “Se eu cantar não chore não / É só poesia” e “Se eu morrer não chore não / É só a lua”. São perfeitos.
Já faz muito tempo que aceitei a separação dos meus pais e hoje não nutro qualquer desejo de vê-los juntos. Sei que o tempo deles passou e a vida os presenteou com outras relações, que lhes trouxeram a realização que não conseguiram juntos. Mas esta música, apesar de continuar evocando estas lembranças da infância (e nunca deixará de evocá-las), transformou-se com o tempo: eu passei a ser o Eu-lírico: não vejo mais meu pai cantando para minha mãe, mas eu mesmo cantando para minha amada:
"Você vem?
Ou será que é tarde demais?"
Nota:
* FERRY, Luc. Aprender a viver. Filosofia para os novos tempos; tradução Vera Lúcia dos Reis. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. Págs. 174 a 232.