quarta-feira, 21 de julho de 2010

Jornal do Brasil: telas são indiferentes às lágrimas

Para mim, três cheiros tem o café da manhã: de café, de pão e de jornal. Na verdade, é um cheiro só, que é a mistura disso tudo; os aromas, altruístas, sabem se unir para compor um novo cheiro.

As imagens são mais esnobes, individualistas, egoístas, pois não permitem esse sincretismo criativo; é preciso saber morrer, saber deixar o ego de lado, para se fundir com outros elementos e criar dessa forma um novo.

Os cheiros, menos egoístas, possuem um senso comunitário apurado, uma legítima vontade de se unir. Pensando melhor, o som também é capaz dessa espécie de altruísmo; os sabores também, embora a língua hoje não possa se dedicar muito ao seu ofício, na medida em que o cérebro pós-moderno exige antes de tudo poucas calorias e o tempo para degustar é cada vez mais curto. Do tato, pobrezinho, não falarei muito: o coitado foi privatizado e anda cada vez mais esquecido...

Na minha opinião a culpa disso tudo é da ditadura das imagens. Veja: o olho é um tirano! As imagens determinam nossas vidas! Na verdade, as imagens são apenas testas de ferro e os olhos, tão voláteis e ingênuos, não sabem o que fazem. A ditadura é econômica.* E agora mais uma batalha foi vencida: será excluído do meu café da manhã um de seus cheiros: o Jornal do Brasil será puramente digital!

O JB faz parte da minha vida. Aqui em casa somos assinantes há quase quarenta anos. Hoje moramos num prédio, porém há cinco anos ainda recebíamos o JB por cima do muro, na nossa velha casa. Às vezes tínhamos que catá-lo entre as plantas, e nos dias de chuva, minha avó acordava preocupada para buscar o jornal antes que molhasse.

Há quase quarenta anos, minha avó Marly busca o jornal na porta, desembrulha-o, passa os olhos nas manchetes e o deixa separado para ler mais tarde. Quando morávamos todos juntos - minha avó, seus três filhos e eu -, o JB, que sempre ficava no centro da casa, era como um membro da família. Muita vez a conversa, que logo se transformava em debate regado a café, era iniciada com uma manchete do jornal. As conversas estão acabando; os jornais estão virando telas, imagens.

Assim que minha avó soube, ligou para o JB e explicou que possui mais de setenta anos, assina há décadas o jornal e não sabe acessar sozinha a internet. “Além disso," disse ela, "gosto de recortar as reportagens que me interessam”. Do quarto, ao ouvir suas palavras, meus olhos encheram d´água. Estamos de luto aqui em casa. A folha do jornal, que agora será tela – fria, rígida, vertical, estática, sem cheiro, imune ao vento – já acolheu minhas lágrimas; o papel do JB já ficou molhado com minhas lágrimas. As telas são indiferentes às lágrimas.

Tenho uma gaveta cheia de folhas do JB. Minha avó sempre separa para mim o caderno “idéias e livros”. É um trato que firmamos sem palavras mas que se repete há bastante tempo. Todo sábado ela separa para mim o caderno, o qual recebo como todo o carinho. No dia seguinte ou na segunda, durante o café da manhã, conversamos sobre o que li no caderno que ela me deu.

Em breve, arrancarão de nós o JB: o seu cheiro, o acesso, o direito de recortá-lo, as conversas que tínhamos sobre seus textos.

Parece que o futuro é das telas. Pra que lágrimas?
* http://www.youtube.com/watch?v=EyOcrtCwekM

sábado, 17 de julho de 2010

Águas de março

“É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho...”

"Definir é limitar". Embora toda obra seja aberta ao olhar de quem a contempla, poucas conseguem ser tão livres quanto Águas de março, música de Tom Jobim. Em vez de construir frases com significado fechado, o compositor, com simplicidade - origem de sua liberdade -, brinca com palavras soltas:

"(...) É a lenha, é o dia, é o fim da picada,
É a garrafa de cana, o estilhaço na estrada..."

Ouvir Águas de março é como folhear um álbum de fotografias: cada imagem desperta uma lembrança. O Eu-lírico, despretensioso, concede ao interlocutor a liberdade de buscar dentro de si, em suas lembranças, múltiplos significados.

"(...) É um peixe, é um gesto, é uma prata brilhando,
É a luz da manhã, é o tijolo chegando..."

Os versos são tijolos com os quais cada um de nós (re)constrói a sua própria história. Os tijolos nos são doados, mas é nossa a argamassa que vai uni-los.

"É a chuva chovendo, é conversa ribeira
Das águas de março, é o fim da canseira..."

Trata-se de uma enxurrada de imagens prosaicas capaz de penetrar na memória e desprender lembranças, como a chuva faz com a poeira esquecida no chão.

"É o fundo do poço, é o fim do caminho,
No rosto o desgosto, é um pouco sozinho..."

As recordações, mesmo as tristes, guardam sempre alguma ternura; da dor de ontem é possível e provável que se sinta saudade. São de março as águas nas quais se diluem nossas lembranças, como no tempo se diluem nossas vidas.*

"São as águas de março fechando o verão,
É promessa de vida no teu coração."



_________________________
* Mudei a forma, mas a comparação é de Saramago. "(...) No tempo desaparece também a vida." Pág. 326. História do Cerco de Lisboa.

sábado, 10 de julho de 2010

DIRETAS JÁ - DEMOCRACIA NA COPA

Apoiado por mais de 1/3 da Câmara, o Deputado Federal Armando Górgias, do PFF - Partido da Frente Futebolística -, apresentou em 08/07/10, uma PEC importantíssima para Estado brasileiro, na medida em que fomenta a participação popular na escolha do representante de um dos cargos mais relevantes para a estrutura política nacional.

A PEC, apelidada carinhosamente de Diretas Já, visa criar eleições diretas para uma das funções mais importantes do Brasil: a de Técnico da Seleção Brasileira de Futebol. “O povo, numa democracia, deve escolher seus próprios caminhos. Escolhemos, desde o fim da ditadura, os membros do Legislativo e os Chefes do Executivo; por que não ir às urnas, então, para escolher o Técnico da Seleção Brasileira de Futebol? Poucos sabem, mas a CBF é de natureza privada, o que é um absurdo! Chega de decisões indiretas; chega de escolhas equivocadas: entreguemos ao povo o que lhe pertence!”, asseverou Górgias, na defesa da PEC.

Apesar do apoio da maioria ao Deputado do PFF, membros da oposição criticaram a proposta. “Embora a função seja de suma importância, não nos parece adequado, na atual conjuntura, apoiar uma alteração constitucional dessa monta. A medida vem em má hora; trata-se, na verdade, de pura demagogia levantar essa bandeira em ano eleitoral”, afirmou o Deputado João Pernadura. “A PEC é, sem dúvida, inconstitucional; além disso, a sua aprovação aumentará os gastos do Estado, vez que os titulares de funções semelhantes deverão ser escolhidos da mesma forma, em razão da isonomia”.


Deputados mais radicais já sugerem emendas à proposta de Górgias: escolher só o Técnico é pouco, o povo deve escolher a seleção inteira, todos os jogadores - titulares e reservas. “O povo deve ir às ruas exigir o que a Carta Maior lhe assegura no parágrafo único do artigo 1º: 'todo poder emana do povo'! 

Viva a democracia!




sexta-feira, 2 de julho de 2010

Fracasso


O fracasso ronda a cidade. Ombros caídos, ruas vazias, rostos tristes. Nas chuteiras a expectativa concentrada. Tudo terminou em frustração; a trilha sonora é um silêncio imposto, severo.


Uma euforia, uma energia guardada não sei onde explodia antes e durante a partida. Hora e meia depois, o fim. Aos poucos ouve-se o barulho da vida retornando: as cornetas cessaram, os ônibus voltaram a circular, as pessoas estão voltando às suas casas, lentas, melancólicas. No ar o cheiro da derrota, a pólvora queimada.

Os grupos de torcedores, moléculas cujos átomos eram atraídos pela energia intensa mas fugaz do anseio de vitória, fragmentam-se em pessoas solitárias; a orgia da torcida, a festa, o sentimento de comunidade, de união é fulminado pelo apito do fim de jogo.

Éramos nós há pouco?

Agora seguimos sós?

Sempre estivemos sós.

O álcool, nos bares, mascara a derrota, perpetua a euforia; mas depois do porre o sentimento de fracasso virá.

Que fracasso é esse? A quem ele pertence? Isso é o fracasso?

Não! Isso é só um jogo de bola. O fracasso antecede a copa; o fracasso atravessa as copas, as comemorações de ano novo, os jogos, as festas. A derrota já nos atingiu faz tempo. Na verdade, nunca conhecemos a vitória.

Estamos separados: a união não existe - é pura ilusão. Isso é fracasso.

Paga-se para estudar. Paga-se para ser atendido num hospital. E quem não paga? Submete-se, espera, morre.

Abaixa a cabeça para ter um emprego de merda e poder com o pouco que ganha pagar comida, escola, médico, teto, uma TV pra ver jogo de bola. Tão nos devendo isso tudo: cadê o cobrador?

Derrotados. Fudidos. Medrosos. Não foi um gol que nos derrotou. Os fracassados tem imunidade ao fracasso, assim como os mortos são imunes à morte.

Que as pessoas chorem. Mas que chorem pelos que morrem sem atendimento, pelos que não conseguem ir à escola, pelos que deixam o campo (não o de futebol, mas a terra seca, árida, sem torcida, sem propagandas nas bordas) para tentar a vida na cidade grande, num barraco. Isso é fracasso. O resto é circo.