Para mim, três cheiros tem o café da manhã: de café, de pão e de jornal. Na verdade, é um cheiro só, que é a mistura disso tudo; os aromas, altruístas, sabem se unir para compor um novo cheiro.
As imagens são mais esnobes, individualistas, egoístas, pois não permitem esse sincretismo criativo; é preciso saber morrer, saber deixar o ego de lado, para se fundir com outros elementos e criar dessa forma um novo.
Os cheiros, menos egoístas, possuem um senso comunitário apurado, uma legítima vontade de se unir. Pensando melhor, o som também é capaz dessa espécie de altruísmo; os sabores também, embora a língua hoje não possa se dedicar muito ao seu ofício, na medida em que o cérebro pós-moderno exige antes de tudo poucas calorias e o tempo para degustar é cada vez mais curto. Do tato, pobrezinho, não falarei muito: o coitado foi privatizado e anda cada vez mais esquecido...
Na minha opinião a culpa disso tudo é da ditadura das imagens. Veja: o olho é um tirano! As imagens determinam nossas vidas! Na verdade, as imagens são apenas testas de ferro e os olhos, tão voláteis e ingênuos, não sabem o que fazem. A ditadura é econômica.* E agora mais uma batalha foi vencida: será excluído do meu café da manhã um de seus cheiros: o Jornal do Brasil será puramente digital!
O JB faz parte da minha vida. Aqui em casa somos assinantes há quase quarenta anos. Hoje moramos num prédio, porém há cinco anos ainda recebíamos o JB por cima do muro, na nossa velha casa. Às vezes tínhamos que catá-lo entre as plantas, e nos dias de chuva, minha avó acordava preocupada para buscar o jornal antes que molhasse.
Há quase quarenta anos, minha avó Marly busca o jornal na porta, desembrulha-o, passa os olhos nas manchetes e o deixa separado para ler mais tarde. Quando morávamos todos juntos - minha avó, seus três filhos e eu -, o JB, que sempre ficava no centro da casa, era como um membro da família. Muita vez a conversa, que logo se transformava em debate regado a café, era iniciada com uma manchete do jornal. As conversas estão acabando; os jornais estão virando telas, imagens.
Assim que minha avó soube, ligou para o JB e explicou que possui mais de setenta anos, assina há décadas o jornal e não sabe acessar sozinha a internet. “Além disso," disse ela, "gosto de recortar as reportagens que me interessam”. Do quarto, ao ouvir suas palavras, meus olhos encheram d´água. Estamos de luto aqui em casa. A folha do jornal, que agora será tela – fria, rígida, vertical, estática, sem cheiro, imune ao vento – já acolheu minhas lágrimas; o papel do JB já ficou molhado com minhas lágrimas. As telas são indiferentes às lágrimas.
Tenho uma gaveta cheia de folhas do JB. Minha avó sempre separa para mim o caderno “idéias e livros”. É um trato que firmamos sem palavras mas que se repete há bastante tempo. Todo sábado ela separa para mim o caderno, o qual recebo como todo o carinho. No dia seguinte ou na segunda, durante o café da manhã, conversamos sobre o que li no caderno que ela me deu.
Em breve, arrancarão de nós o JB: o seu cheiro, o acesso, o direito de recortá-lo, as conversas que tínhamos sobre seus textos.
Parece que o futuro é das telas. Pra que lágrimas?
* http://www.youtube.com/watch?v=EyOcrtCwekM
As imagens são mais esnobes, individualistas, egoístas, pois não permitem esse sincretismo criativo; é preciso saber morrer, saber deixar o ego de lado, para se fundir com outros elementos e criar dessa forma um novo.
Os cheiros, menos egoístas, possuem um senso comunitário apurado, uma legítima vontade de se unir. Pensando melhor, o som também é capaz dessa espécie de altruísmo; os sabores também, embora a língua hoje não possa se dedicar muito ao seu ofício, na medida em que o cérebro pós-moderno exige antes de tudo poucas calorias e o tempo para degustar é cada vez mais curto. Do tato, pobrezinho, não falarei muito: o coitado foi privatizado e anda cada vez mais esquecido...
Na minha opinião a culpa disso tudo é da ditadura das imagens. Veja: o olho é um tirano! As imagens determinam nossas vidas! Na verdade, as imagens são apenas testas de ferro e os olhos, tão voláteis e ingênuos, não sabem o que fazem. A ditadura é econômica.* E agora mais uma batalha foi vencida: será excluído do meu café da manhã um de seus cheiros: o Jornal do Brasil será puramente digital!
O JB faz parte da minha vida. Aqui em casa somos assinantes há quase quarenta anos. Hoje moramos num prédio, porém há cinco anos ainda recebíamos o JB por cima do muro, na nossa velha casa. Às vezes tínhamos que catá-lo entre as plantas, e nos dias de chuva, minha avó acordava preocupada para buscar o jornal antes que molhasse.
Há quase quarenta anos, minha avó Marly busca o jornal na porta, desembrulha-o, passa os olhos nas manchetes e o deixa separado para ler mais tarde. Quando morávamos todos juntos - minha avó, seus três filhos e eu -, o JB, que sempre ficava no centro da casa, era como um membro da família. Muita vez a conversa, que logo se transformava em debate regado a café, era iniciada com uma manchete do jornal. As conversas estão acabando; os jornais estão virando telas, imagens.
Assim que minha avó soube, ligou para o JB e explicou que possui mais de setenta anos, assina há décadas o jornal e não sabe acessar sozinha a internet. “Além disso," disse ela, "gosto de recortar as reportagens que me interessam”. Do quarto, ao ouvir suas palavras, meus olhos encheram d´água. Estamos de luto aqui em casa. A folha do jornal, que agora será tela – fria, rígida, vertical, estática, sem cheiro, imune ao vento – já acolheu minhas lágrimas; o papel do JB já ficou molhado com minhas lágrimas. As telas são indiferentes às lágrimas.
Tenho uma gaveta cheia de folhas do JB. Minha avó sempre separa para mim o caderno “idéias e livros”. É um trato que firmamos sem palavras mas que se repete há bastante tempo. Todo sábado ela separa para mim o caderno, o qual recebo como todo o carinho. No dia seguinte ou na segunda, durante o café da manhã, conversamos sobre o que li no caderno que ela me deu.
Em breve, arrancarão de nós o JB: o seu cheiro, o acesso, o direito de recortá-lo, as conversas que tínhamos sobre seus textos.
Parece que o futuro é das telas. Pra que lágrimas?
* http://www.youtube.com/watch?v=EyOcrtCwekM