sábado, 17 de julho de 2010

Águas de março

“É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho...”

"Definir é limitar". Embora toda obra seja aberta ao olhar de quem a contempla, poucas conseguem ser tão livres quanto Águas de março, música de Tom Jobim. Em vez de construir frases com significado fechado, o compositor, com simplicidade - origem de sua liberdade -, brinca com palavras soltas:

"(...) É a lenha, é o dia, é o fim da picada,
É a garrafa de cana, o estilhaço na estrada..."

Ouvir Águas de março é como folhear um álbum de fotografias: cada imagem desperta uma lembrança. O Eu-lírico, despretensioso, concede ao interlocutor a liberdade de buscar dentro de si, em suas lembranças, múltiplos significados.

"(...) É um peixe, é um gesto, é uma prata brilhando,
É a luz da manhã, é o tijolo chegando..."

Os versos são tijolos com os quais cada um de nós (re)constrói a sua própria história. Os tijolos nos são doados, mas é nossa a argamassa que vai uni-los.

"É a chuva chovendo, é conversa ribeira
Das águas de março, é o fim da canseira..."

Trata-se de uma enxurrada de imagens prosaicas capaz de penetrar na memória e desprender lembranças, como a chuva faz com a poeira esquecida no chão.

"É o fundo do poço, é o fim do caminho,
No rosto o desgosto, é um pouco sozinho..."

As recordações, mesmo as tristes, guardam sempre alguma ternura; da dor de ontem é possível e provável que se sinta saudade. São de março as águas nas quais se diluem nossas lembranças, como no tempo se diluem nossas vidas.*

"São as águas de março fechando o verão,
É promessa de vida no teu coração."



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* Mudei a forma, mas a comparação é de Saramago. "(...) No tempo desaparece também a vida." Pág. 326. História do Cerco de Lisboa.

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