Às bocas e aos olhos os poetas sempre dedicaram seus versos mais intensos, graves até, e belíssimos adjetivos. Encontros e despedidas de olhos, olhares, lábios... Mas ninguém se mete a escrever sobre o encontro de narizes, esse prosaico encontro que afeta os apaixonados; às vezes - muitas vezes - os narizes se encontram antes das bocas. Bom, falo por mim, pois meu nariz é um tanto ousado, mete-se na frente da boca, nos momentos em que geralmente os olhos já estão perdidos.
E as musas - bocas e olhos - implicam demais com o nariz: os olhos exigem narizes mínimos; tenho quase certeza que fumar foi um jeito que a boca arrumou para passar a frente do nariz. Além disso, os lábios vivem falando mal dos narizes: quanto maiores, maior o escárnio.
Quando os poetas escrevem sobre o nariz é na base da mofa; ninguém fala sério do coitadinho. Cyrano de Bergerac nada mais é que um homem fugindo da sombra (enorme) de sua nareba.
Neridos namigos neitores, nestou num nilema nanado! (Sentiram o poder das narinas?).
Meu dilema é o seguinte: não sei se repito trinta ou mais vezes o termo nariz ou se vou trocando por órgão do olfato, venta, focinho etc. Porque na verdade todos esses termos não são tão bons como nariz.
Parece-me que a melhor solução é usar nase (alemão), nez (francês), naso (italiano), nose (inglês), ou seja, trocar a língua e não a palavra. Ou então usar o N, que é a letra fetiche do nariz em todas as línguas pesquisadas; o nariz é o ene do rosto. O ene, sobretudo, é o som nasal.
Por favor, repitam comigo: nasal, nariz, ene, narinas – sintam a vibração do naso!
O eNe, que já foi acusado pela infelicidade do mundo e até apontado como possível responsável por um eclipse (coisa de Bocage) [1], é na realidade vítima da sociedade, do homem. Pode o homem sorver o ar - a vida - pelo nariz e zombar dele pela boca? Devemos-lhe o ar que respiramos e no entanto pagamos-lhe com desacatos!
O nez não tem boca para se defender e por isso espirra! O naso lacrimeja triste: o resfriado é sua revolução! Todo poder às narinas! O que seria da boca sem o nariz? Tapem o nez e falem: ouçam a voz maculada pela ausência do eNe.
O N, tadinho, é o nosso bode-expiatório: isolado, culpado, condenado, extirpado. Ou pelo menos reduzido, covardemente reduzido. Portanto, à sua defesa, que é a defesa da verdade.
Chega de bisturis! Chega de cirurgias que fazem do eNe um i de tão fino! Daqui a pouco os noses serão metafísicos, como no conto o segredo do Bonzo [2], de Machado de Assis. As mulheres estão em guerra com seus eNes e alguns homens andam aderindo a essa cobarde batalha. Extirpar o nariz é esvaziar-se de virilidade; perdoem-me o radicalismo, mas um homem com ene pequeno é quase uma mulher. Não, isso não é autopromoção!
Se há alguns séculos as mulheres usavam vestidos que aumentavam os quadris, hoje a moda é reduzir os enes. Seios grandes e narizes pequenos, eis a mulher contemporânea. As atrizes estão todas desnarigadas! Qualquer dia, vão cair desmaiadas por aí. O motivo? Falta de oxigênio! É bom lembrá-las que o nariz serve para respirar também. Só as comediantes podem ostentar um N maiúsculo, um eNe histriônico - só elas são livres.
Podem rir de mim, mas admiro ferrenhamente as mulheres que não mexem nos narizes e ainda mais as que não alteram nada, sequer a cor dos cabelos. Porque as nossas meninas andam comprando de tinta de cabelo a orelhas pequeninas.
Além disso, historicamente, o ene é um símbolo do poder. A monarquia não está no trono, na coroa ou no cetro; a monarquia sempre esteve no nariz: pior que guilhotinas, seriam os cortadores de narizes. O eNe empinado é o símbolo da aristocracia. Reis são sobretudo narizes imponentes.
Ainda escrevo um tratado político sobre o nariz. Maquiavel deixou passar uma observação que o tornaria célebre: príncipe que é príncipe tem grande naso! E o nariz, sendo grande, tudo justifica. Deve-se ter coragem para sustentar o nariz em pé; aí esta o poder. Naquiavélico!
Talvez seja por isso que os palhaços têm bolas vermelhas como nariz, pois a alma do palhaço é o saliente eNe colorido. Não se pode rir do poder, logo o homem cuja função é fazer rir precisa fantasiar o seu nez. O palhaço, com sua bolota vermelha no meio do rosto, é um ser despido de decoro e portanto de poder. (Embora o poder muita vez seja indecoroso e os palhaços, dignos.)
E mais: se eu tivesse que escolher um ícone para a arte pós-moderna, escolheria o eNe. Ele se tornou um objeto deslocado: não serve mais para respirar e cheirar (serve cada vez menos pra isso), serve apenas como objeto estético, imagem no rosto. Rosto que é museu, produto ou sei lá o que; rosto puro, face de um ser, não é.
Revolte-se, eNe! Chega de sofrer! Está na hora de se assumir e crescer, se impor, virar tromba! Viva o elefante!
____________________________________
____________________________________
Links para os textos
Nariz tem que ter personalidade, deve chegar primeiro imprimindo marca e presença. Julia Roberts, Meryl Streep e Adrien Brody que o digam!
ResponderExcluirMônica
É isso aí! Nossa família sempre soube reconhecer a importância do nariz! rsrs
ResponderExcluirBeijos
Adorei o texto! Muito bem humorado e um apelo ao exagero das plásticas!
ResponderExcluirE se o resfriado é a revolução do nariz o meu é um anarquista quando o inverno chega! Ele impõe a falta de decoro nas relações sociais que é uma beleza!
Nessas horas até canto o "melô" do meu nariz: Ai meu nariz! Ai meu nariz! Ele parece muito mais um chafariz!
hahuahauha
Que bom que vc gostou, Érika!
ResponderExcluirO meu nariz, apesar da minha homenagem, resolveu fazer uma verdadeira revolução essa semana. rsrs Acho que é o inverno mesmo. Não esperava essa atitude dele. Isso foi ingratidão!
Beijos
Também gostei muito desse texto. Um dia desses eu me peguei pensando em quanto estamos acostumados a ignorar nosso nariz. Ele está ali no nosso campo de visão o dia inteiro, mas o cérebro aprendeu a ignorá-lo. Tadinho! :)
ResponderExcluirÉ verdade, Rebeca, a gente se esquece do pobre do eNe. Coitado! rs Bjs
ResponderExcluirValeu, Raoní! Fico feliz por saber q vc gostou! Abraço
ResponderExcluir