Quando
certa manhã Alex Murphy acordou de seu sonho tranquilo - no qual
dançava com sua mulher ao som de fly me to the moon na voz de
Sinatra -, encontrou-se numa sala grande e clara metamorfoseado num
robô. Estava de pé, acoplado a uma máquina e só recuperou seus
movimentos aos poucos, obedecendo às ordens do senhor de jaleco
branco, que o olhava de perto. Vestia uma armadura que emitia sons a
cada movimento. Nervoso, perguntou o que estava acontecendo e pediu
que o tirassem daquela carapaça metálica. Não pode ser atendido:
aquilo era o seu corpo.
Não era
um pesadelo. Depois de ser gravemente ferido por uma bomba, o
policial Alex Murphy estava num laboratório, transformado em
Robocop, um híbrido de homem e robô, cujo nome já suprime
qualquer referência à sua humanidade. Dentre mutilados e doentes
afastados da polícia - inválidos sob a ótica do mercado de
trabalho -, Alex foi escolhido para se tornar produto (made in
china) de uma empresa especializada em fabricar e vender robôs
policiais pelo mundo afora, exceto nos EUA, onde uma lei os proibia.
Sob o
discurso do medo reforçado por um jornal da TV, a ideia de fabricar
o híbrido surgiu para burlar essa lei e transformar o poder público
dos EUA em cliente. Essa é a história de Robocop, dirigido
por José Padilha (o mesmo de Tropa de Elite), que é uma
versão do filme homônimo lançado em 1987.
Robocop
aborda muitos temas
interessantes, mas vou procurar me ater à questão da exploração
do trabalho. Talvez possa parecer estranho falar sobre isso
analisando um filme que trata da utilização de robôs na segurança
pública. Se o risco é a substituição de homens por máquinas, por
que exploração humana?
Bom, o filme pode ser visto como a história do policial transformado
numa máquina, com armadura metálica, visão computadorizada, acesso
ao arquivo de dados e controle à distância. Mas pode ser
interpretado também como uma metáfora do homem pós-moderno; ou
melhor, de todos nós, que não temos membros robóticos (embora o
celular pareça uma parte do corpo), mas que, ao cumprirmos as
exigências profissionais, agimos como máquinas.
Aos
que não perceberam, o primeiro parágrafo é uma paródia do início
de Metamorfose, de F. Kafka. Em vez de metamorfoseado em inseto, o
herói acorda como robô policial. E no lugar da rejeição que
sofreu Gregor Samsa (o homem inseto kafkaniano), Robocop
é aclamado por todos.
Na
minha visão, a principal distinção entre Gregor e Alex é que um
deixou de ser útil sob o aspecto profissional, enquanto o outro
tornou-se o mais eficiente dos policiais, um exemplo de
produtividade. Como um sonho dos chefes, passou
de inválido ao melhor da categoria. Para
alcançar esse nível de eficiência, Alex foi destituído das
emoções, das lembranças, da fragilidade, da autonomia bem como da
convivência social e familiar, ou seja, de tudo que o fazia humano.
Há quem
leia metamorfose e entenda
que Gregor não se transformou num inseto: ele teria passado a se ver
e ser visto assim a partir do momento em que deixou de trabalhar, já
que na sua família todos dependiam do seu dinheiro, fruto do
exercício exaustivo da função de caxeiro-viajante, detestada pelo
protagonista.
É interessante ressaltar que Gregor - mesmo metamorfoseado num
inseto - continua capaz de se emocionar, apresentando-se bem mais
sensível que as demais personagens que o cercam. Essa sensibilidade
é nítida durante a narrativa e há um ponto peculiar que merece
destaque: sua reação à música. Num trecho do capítulo 3, sua
irmã toca violino na sala e os inquilinos mostram-se enfadados;
Gregor, no entanto, comove-se com a música e tenta se aproximar da
irmã para incentivá-la.
Já
em Robocop, as emoções
atrapalham o bom funcionamento da máquina, o que leva o cientista a
controlar as substâncias no “corpo” de Alex para eliminá-las, a
ponto de ele deixar de sentir afeto pela própria família. Tal
estratégia, a meu ver, não difere muito do consumo de medicamentos
psiquiátricos para adequação ao papel profissional. Remédios para
ansiedade, para tristeza, para dormir na hora “certa” e para
acordar “feliz” e produtivo, é claro, já que o mau humor
prejudica o bom exercício das funções.
E
também há uma cena (aos 18 minutos do filme) em que é demonstrada
a reação das máquinas à música: um violonista vai tocar pela
primeira vez com suas mãos robóticas; sua mulher o acompanha,
ansiosa; ele toca por algum tempo e, ao se emocionar, o sistema
falha; o cientista lhe explica que emoções intensas congelam o
programa.
Robocop,
portanto, é o herói aclamado, ou melhor, o funcionário (produto)
perfeito: não se emociona; não prioriza a família (na verdade,
chega a esquecê-la); não padece das fragilidades humanas; é
controlado todo o tempo e ainda pode ser desligado, se demonstrar
rebeldia ou prosseguir com investigações que não interessam aos
poderosos - que no filme não são os políticos mas os empresários.
O
comportamento do Robocop
está muito diferente do que exige o discurso sobre profissionalismo?
Impessoalidade, foco, metas, produtividade, jornadas enormes, acesso
total e ininterrupto por meio de celular, vestir a camisa - ou a
armadura que jamais pode ser retirada? Robocop é
policial o tempo todo, é o “ser” reduzido à sua parcela
profissional - é um superpolicial castrado. Freud explica.
E
não para por aqui. Submetido a testes nos quais é comparado com
robôs puros, Robocop mostra-se lento, hesita um pouco antes de
atirar (certamente, por mais tempo que o Capitão Nascimento de Tropa
de Elite, que parece mais robótico que Alex Murphy). O atraso do
Robocop é um grave problema; ele tem consciência, decide, pensa e
isso o torna ineficiente. Daí, o cientista faz uma intervenção
cirúrgica para consertá-lo.
Mais
ou menos aos 50 minutos do filme, depois do reparo e durante um novo
teste, o cientista explica que fez uma pequena alteração, de modo
que Alex nada decide a partir do momento em que começa a batalha e
seu visor desce: “nos combates ele é só um passageiro de carona;
pensa que está no controle, mas não está, é uma ilusão de
livre-arbítrio.” Uma cientista, que observa o desempenho
espetacular do Robocop ao destruir dezenas de robôs, conclui que se
trata de uma máquina que pensa ser um homem.
Ilusão de livre-arbítrio. Achar que faz algo porque quer, por livre
e espontânea vontade, fruto da própria e independente deliberação,
quando na verdade não está no controle. Muitas pessoas vestem a
armadura, a máscara profissional, e agem de acordo com o que exigem
delas, mesmo que isso signifique a negação de seus valores.
Ao contrário do "pede pra sair" do capitão Nascimento em Tropa de Elite - que incentivava alguns recrutas a desistirem da carreira no BOPE -, em Robocop não há opções: Alex acorda preso à armadura, à profissão, sem escolha.
Funções exaustivas, exercidas com alienação, destituídas dos valores ligados à identidade, objeto de exploração, mas dissimuladas pelo discurso da liberdade, que tenta encobrir a pura submissão às regras do mercado.
Ao contrário do "pede pra sair" do capitão Nascimento em Tropa de Elite - que incentivava alguns recrutas a desistirem da carreira no BOPE -, em Robocop não há opções: Alex acorda preso à armadura, à profissão, sem escolha.
Funções exaustivas, exercidas com alienação, destituídas dos valores ligados à identidade, objeto de exploração, mas dissimuladas pelo discurso da liberdade, que tenta encobrir a pura submissão às regras do mercado.
Não se trata de rejeitar o trabalho; de forma alguma. A ideia de
empregar a energia humana para criar é ótima; mas não é isso que
acontece em regra. A força é explorada e desvalorizada; o ser
humano é reificado e a desigualdade cresce.
Vivemos sob o impacto do discurso do medo, cuja causa principal -
segundo os jornais e o senso comum - é a violência dos criminosos,
para a qual a solução seria o fortalecimento da polícia. No
entanto, o Robocop de José Padilha deixa claro algo que poucos
parecem enxergar: a pior violência não é a dos bandidos, mas a do
império dos poderes econômicos, que, na verdade, é validada pelas
leis.
A lei permite que uma jornada de 40 horas semanais seja remunerada
com um salário mínimo, mas não impede que empresas lucrativas
reduzam seus quadros. Com a globalização, as empresas transitam
entre os países e compram de cada um o que encontram mais barato. Há
muitas restrições legais para os imigrantes, mas não para os
negócios. As funções do Estado vêm sendo reduzidas, ao mesmo
tempo em que cresce o número de trabalhadores sem vínculo formal,
ou seja, sem proteção legal perante a exploração.
Todavia, os jornais falam o tempo todo das agressões dos criminosos
- nada dizem sobre a violência da exploração do trabalho, do medo
de perder o emprego, de se tornar uma peça obsoleta, inútil para a
produção, e passível de descarte. Isso não é violência? Não é
uma boa causa para sentir medo? A polícia pode resolver esse tipo
de situação?
A exploração da força de trabalho dilacera as pessoas e as
modifica para encaixá-las às exigências do mercado; e se não há
como torná-las úteis sob a ótica da produtividade, elas ficam de
fora, largadas à própria sorte, já que o Estado deve ser mínimo.
Porém,
ao contrário de Alex
-
que pediu pra sair da armadura -, muitos estão presos em suas
carapaças, com o visor abaixado, trabalhando. Eles confundem poder
de consumo com liberdade, morrem de medo dos criminosos e aplaudem o
sucesso dos empresários famosos. Veem o capitão Nascimento como herói e acham a armadura do Robocop
o
máximo.