O
filme começa com palavras num fundo negro: apenas um diálogo. Um
homem e uma mulher falam sobre o questionário para obter benefício previdenciário. Muitas frases são ditas antes que as imagens
venham à luz. O diretor é um parteiro de imagens sóbrias,
realistas, em tons azuis acinzentados e focos originais. O filme tem
cortes bem marcados de tempos em tempos, indicando a passagem de
períodos: segundos de tela negra e silêncio destacam trechos da
obra.
A
narrativa mira a burocracia, a frieza, a falta de humanidade, o
despreparo programado dos técnicos, que negam benefícios vitais
para pessoas mais pobres, numa sociedade claramente desigual. Mira,
sobretudo, o estado, a máquina pública e os vilões são os
gerentes do instituto de previdência britânico. Daniel Blake,
carpinteiro há mais de 40 anos, viúvo, morador de uma cidade média,
sofreu um infarto, quase morreu. Sua médica o proibiu de trabalhar.
Porém, mesmo com o laudo, o benefício lhe foi negado. Daniel não é
um homem paciente, submisso; é um homem ciente dos seus direitos,
astuto, tem o dom da ironia, a simpatia de um homem experiente, que
convive em harmonia com vizinhos pobres, imigrantes.
A
trama pode lembrar “o processo” de Kafka, mas é muito mais
realista, embora as exigências e a
falta de abertura ao diálogo nos deixem mareados, enjoados,
irritados, tensos. Blake tenta, fala, grita e, ao presenciar o
absurdo da negativa de atendimento a uma mulher jovem com duas
crianças, toma partido, em defesa da mãe desnorteada. Ambos
terminam expulsos da unidade, agressivamente. E daí começam uma
amizade.
Há
cenas que expõem a globalização, quando um vizinho de Daniel
recebe pares de tenis da china para revender na cidade, e também com
a multietnicidade das personagens, além da conversa por vídeo com o
chinês apaixonado por futebol. O filme revela a vida, os impasses,
os dramas de Daniel e Katie, que está longe da família e sem
dinheiro. O filme é realista e delicado.
A
narrativa tem sua poesia, com os dons artísticos do senhor solitário
que faz peixinhos de madeira para pendurar no teto, rendendo belas
imagens dos bichinhos contra a luz da janela, por onde entra alguma
luz para aquecer a casa e a vida em crise de pessoas que estão
isoladas e sem meios de subsistência. Os peixinhos de madeira me
lembraram os de ouro de Aureliano Buendia (Cem anos de
Solidão).
E a trama remete também a outra obra de Gabriel Garcia Marquez, a novela “Ninguém escreve ao coronel”, no qual um senhor espera o pagamento de sua aposentadoria pelo correio. O coronel, como Daniel, sofre pela sobrevivência, lutando contra a burocracia. As cartas, as ligações, os questionários, a fome, as amizades, tudo é descrito no livro escrito em 1957, sobre a vida (ou sobrevida) de um senhor numa pequena cidade colombiana.
E a trama remete também a outra obra de Gabriel Garcia Marquez, a novela “Ninguém escreve ao coronel”, no qual um senhor espera o pagamento de sua aposentadoria pelo correio. O coronel, como Daniel, sofre pela sobrevivência, lutando contra a burocracia. As cartas, as ligações, os questionários, a fome, as amizades, tudo é descrito no livro escrito em 1957, sobre a vida (ou sobrevida) de um senhor numa pequena cidade colombiana.
Blake lembra também a
Clara de Aquarius: um homem com dignidade, força, história e uma
disposição de lutar, mesmo que o coração já esteja enfraquecido.
Nenhum dos dois se submete. Uma das cenas mais marcantes é quando
Daniel inscreve seu recurso fora do lugar, numa superfície pública,
aberta. O fato de escrever diz muito. A palavra. Mais uma vez. Se o
diálogo inaugural tinha o fundo negro, agora a palavra se expõe
aberta. Um homem pobre, um homem machucado pela vida, com roupas
velhas, bêbado começa a defender Daniel e faz um belo discurso, se
identificando também como uma vítima do governo, “dos gordos com
suas taxas”.
Em
tempos de governantes que apagam arte, pichar pode ser um meio de
dizer (qual o lugar da arte?). E qual o lugar do poder econômico? O
filme é magnífico, o diretor Ken Loach faz um trabalho excelente,
porém penso que a narrativa poderia abordar mais a vinculação do
poder privado ao público, as relações econômicas capitalistas que
criam e reproduzem a desigualdade, a exploração, a negação da
dignidade de forma sistemática. Os vilões do filme, burocratas do estado, só
fazem o trabalho sujo para os empresários ricos.
E a palavra, ao final,
surge com um discurso deslocado, agora não de superfície mas de
personagem, um discurso que vai além. Um recurso/discurso que é
escrito e acaba lido fora da repartição, longe do seu lugar, um
recurso que lembra a carta não enviada, que segundo Lacan seria para
o grande Outro. O filme é como a mensagem, e lá como aqui vemos
idosos tendo que trabalhar, mesmo doentes, para sobreviver e todo
avanço neoliberal de privatização, redução do estado. Pode ser
que amanhã ninguém nos escreva.
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Filme: "Eu, Daniel Blake"
KEN LOACH
Ficção/Fiction
Cor/Color DCP 100'
Reino Unido / França - 2016
Direção/Direction:
KEN LOACH
Roteiro/Screenplay:
PAUL LAVERTY
KEN LOACH
Ficção/Fiction
Cor/Color DCP 100'
Reino Unido / França - 2016
Direção/Direction:
KEN LOACH
Roteiro/Screenplay:
PAUL LAVERTY
Ótima análise, Bernardo. Ainda não assisti a esse filme, mas fiquei curiosa. Bjs Andreia www.mardevariedade.com
ResponderExcluirQuer bom que gostou! O filme é incrível, vale muito a pena! Bjs
ExcluirQue maravilha! Vou procurar o filme agora msm!
ResponderExcluirMuito legal!
ExcluirSensacional e doloroso texto, assim como imagino o filme. Mônica
ResponderExcluirO filme é sensacional, forte e doloroso demais. Amei. Quero ver mais filmes dele...
ExcluirAssisti ao filme e adorei! Bela mensagem! Aquela mãe me chamou muita atenção no filme. Vou fazer post no blog. Bjs Andreia www.mardevariedade.com
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