sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Aquarius: poder econômico e golpe (outra leitura)



Numa primeira leitura que fiz do filme Aquarius*, do cineasta Kleber Mendonça Filho, vi Clara (a protagonista interpretada por Sonia Braga) como a própria cidade que luta contra o poder econômico desregulamentado, representado por uma empreiteira inescrupulosa. Ou seja, uma visão sobre a atual predominância das práticas neoliberais.

Todavia, o filme é muito rico e uma outra leitura pode ser feita: a de que Clara seria uma representante do poder político lutando contra as imposições do poder econômico, talvez como a ex-presidente Dilma Rousseff, tendo em vista os pactos realizados para que chegasse a chefe do executivo federal (uns dizem que é como a política funciona por aqui) e por sua tentativa de impor reajuste fiscal em prejuízo dos mais pobres.

Mesmo havendo dúvidas, podemos ver algumas semelhanças entre Clara e Dilma. A primeira é que ambas são mulheres fortes, dispostas a lutar. O filme começa nos anos oitenta, mostrando Clara mais jovem, com os filhos ainda pequenos e pouco depois de vencer um câncer. Dilma lutou contra a ditadura militar e foi nos anos oitenta que houve a redemocratização no Brasil; assim, poderíamos ver o câncer da personagem como uma representação do regime militar, que teve vínculos estreitos com o poder econômico. Dilma e Clara carregam cicatrizes desta mesma época.

Nesse contexto, podemos enxergar o edifício Aquarius como o Brasil. Aqui preciso dizer que não gosto da comparação que muitos fazem entre Estado e condomínio, porque a complexidade do primeiro não se encaixa no modelo do segundo. Porém, para efeito de interpretação deste longa, creio que se possa admitir essa correspondência.

Sendo assim, ao vermos Clara já com mais de sessenta anos e lutando praticamente sozinha contra a grande construtora, percebemos que atualmente o poder econômico não precisa mais instaurar uma ditadura para impor suas exigências. Com o fim da guerra fria e o avanço do capitalismo neoliberal e da globalização, houve uma sofisticação dos meios pelos quais o poder econômico controla os Estados.

Com as transnacionais e o fortalecimento do capital financeiro e especulativo, o controle dos Estados se dá por meio da retirada de investimentos, além do uso das grandes empresas de mídia. O poder econômico força a desregulamentação e a corrosão dos direitos de índole social e protetiva (trabalhistas, previdenciários, ambientais etc.), transferindo, ou ameaçando transferir, a produção para Estados com menos barreiras para exploração em larga escala. Como exemplo deste processo, vimos grandes fábricas se deslocarem para países asiáticos e africanos onde exploram trabalho escravo e degradam o meio ambiente sem sofrerem quaisquer sanções.

Diante deste quadro, como agem os partidos à esquerda? O que pode fazer um partido de esquerda quando chega ao poder? E é importante compreender que ter a chefia do poder executivo não significa amplos poderes, já que praticamente tudo tem que passar pelo legislativo, composto por representantes com interesses diversos e muitas vezes contrários, o que é normal e saudável numa democracia. 

No caso do Brasil, o congresso eleito em 2014 - com o enorme financiamento empresarial permitido à época - é considerado o mais conservador desde 1964, quando houve o golpe civil-militar que instaurou uma ditadora de duas décadas. Não custa lembrar a sensacionalista e duvidosa operação Lava Jato e as muitas notícias sobre doações ilegais  de grandes empreiteiras (como a do filme) a partidos políticos. E foi esse congresso que decidiu pelo afastamento da presidente, que havia se posicionado contra o financiamento empresarial. É muito provável que por trás do golpe estejam articulações para voltar com tais doações.

Feitas essas observações, a comparação entre Clara e Dilma sugere que ambas ficaram isoladas num contexto em que os demais se entregaram sem ressalvas ao poder econômico. Clara é a última proprietária de uma unidade no antigo edifício Aquarius; todos os demais já assinaram contratos com a empreiteira e estão só aguardando que a personagem de Sonia Braga se entregue também. Mas, para surpresa e insatisfação deles, Clara resiste.

É interessante um trecho do filme em que Clara decide pintar o prédio inteiro por conta própria. Quando ela age assim, comete uma irregularidade, pois é um condomínio e todas as outras unidades estão nas mãos da empreiteira. Um condômino sozinho não pode fazer o que quiser com o prédio, mesmo que tenha a melhor das intenções.

Essa conduta de Clara pode ser interpretada como algo semelhante às “pedaladas fiscais” e abertura de crédito suplementar, que serviram de base para o golpe disfarçado de impeachment, embora tais práticas venham se repetindo desde o governo de FHC, passando pelos mandatos de Lula, sendo comuns também nos estados e, na minha visão, não configuram crime de responsabilidade.

Isolada, sozinha, abandonada por seus antigos vizinhos (no caso de Dilma, traída por parlamentares que eram da base do governo, principalmente os do MDB, legenda do seu vice) e lutando contra o poder econômico, ela faz o possível para tentar melhorar as coisas, mesmo que seja só superficialmente. Como pintar a fachada do prédio. Porém, qualquer erro, por mais banal que seja, pode servir como justificativa para tentar forçar sua expulsão.

Essa é a segunda interpretação que faço de Aquarius. Possivelmente o cineasta não pensou nisso quando elaborou o enredo, uma vez que o processo de impeachment veio a se consolidar depois da produção do filme. Porém, a meu ver, a obra é aberta: uma vez que exposta ao público, a interpretação é livre. Aquarius é muito mais que isso e vale por tudo: pela trama, pelos personagens, pela forma, pelas grandes atuações, pela trilha sonora. Vendo e revendo o longa muitas outras leituras poderão surgir. 
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*Aquarius: uma mulher, uma cidade, uma era, no link: https://ecosprosaicos.blogspot.com/2016/09/aquarius-uma-mulher-uma-cidade-uma-era.html

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Aquarius: uma mulher, uma cidade, uma era




Lançado em 2016, o filme Aquarius, do cineasta Kleber Mendonça Filho, narra o conflito entre a jornalista aposentada Clara (Sônia Braga) e a empreiteira Bonfim,  que pretende demolir o edifício que dá nome ao longa para erguer um arranha-céu. Moradora antiga do prédio ameaçado, a protagonista é a única que se recusou a vender seu apartamento à empresa.

Para mim, Clara é como uma representação humana da cidade, com suas histórias, estigmas, aspectos naturais e construções; ela e Recife misturam-se e, neste processo, não ocorre uma reificação da moradora, mas uma humanização da cidade, que se destaca como local onde pessoas diferentes tentam (sobre)viver. O filme é um “zoom” em uma destas pessoas: uma mulher arretada, capaz de abraçar as novidades sem negar seu passado e suas cicatrizes.

Mas há uma cisão entre Clara e Recife: enquanto a mulher consegue conciliar harmonicamente passado e presente - o que se vê na cena em que Clara explica que ouve música de várias formas, antigas (LPs) e novas (streaming, mp3) - a cidade é atacada por empreiteiras que destroem indiscriminadamente edifícios históricos para construir prédios grotescos como ninhos de cupim. 

Aquarius - prédio que integra o corpo de Recife - é atacado pela construtora, da mesma forma que Clara enfrentou um câncer, doença em que as células se multiplicam descontroladamente. As construções de uma cidade, como as células num corpo, devem funcionar em harmonia, para não comprometer o organismo como um todo. Novos prédios são importantes e necessários, mas a atuação das empresas não deve ser desordenada como um câncer. 

Não vemos nenhum representante do poder público para regular a atividade da construtora Bonfim, cujo nome soa sarcástico, se considerarmos o fim que a empresa quer impor ao lar da protagonista. O conflito se dá entre uma empresa e uma mulher de classe média. Não há ninguém para fiscalizar, controlar e exigir equilíbrio. 

Muitos parecem temer apenas o poder excessivo do Estado, mas a iniciativa privada também pode oprimir. No neoliberalismo, o Estado - esvaziado da função de regular as atividades de grandes empresas - é inflado para vigiar, punir e varrer para longe os mais pobres, que geralmente só têm a posse do local onde moram. Por não serem proprietários como a personagem de classe média, são despejados para zonas cada vez mais afastadas.

A música "Hoje", de Taiguara, tocada duas vezes no longa, tem tudo a ver com o enredo; lançada em 1969, expôs a violência da ditadura militar e agora se encaixa perfeitamente à tirania das grandes empresas.

O discurso neoliberal defende a redução do Estado, a desregulamentação e o filme mostra algumas das consequências da adoção destas posturas. Na trama, também se observa a mídia comprada pelo dinheiro das contas de publicidade. O jornal da cidade tem informações que se recusa a divulgar para não perder anunciantes. Uma espécie de censura realizada pelo poder econômico.

Defender o edifício Aquarius é mais que defender o lar de uma pessoa, o abrigo da história de uma família etc. É como defender uma era, uma época, a história, a integração do passado com o presente, o equilíbrio entre o que foi e o que virá. 

A cidade se ama, como Clara. A cidade luta, como a protagonista no filme e na realidade, como o Movimento Ocupe Estelita em Recife. O filme mostra que a classe média passou a ter o dever de viver (ou seria morrer?) em arranha-céus com grades, cercas elétricas e câmeras. (Se a classe média sofre pressões desse tipo, imaginem os mais pobres?).

É fato que o excesso de liberdade (e poder) das grandes empresas afeta a liberdade das pessoas. O medo dos ladrões de coisas pequenas ofusca os medos e as imposições maiores. Há muita desigualdade, nenhum equilíbrio. O discurso tem sido algo como: aos pobres, punição; aos ricos, desregulamentação.

No filme, vemos placas alertando para ataques de tubarões na praia em frente ao edifício Aquarius. Segundo ambientalistas, essa ameaça surgiu na praia de Boa Viagem depois da construção do Porto de Suape, que afetou o ecossistema local. Outro caso de desequilíbrio em que o poder econômico impôs suas vontades, suas exigências, sem debate, de modo antidemocrático, demolindo a cidadania. 

Quando ações desenfreadas reduzem tudo - até a moradia - a produto, consumo e lucro, e o “novo” faz questão de matar o antigo, para usurpar totalmente seu espaço, arrancando suas raízes do solo do passado, as consequências atingem não só o morador do local mas a todos, pois bloqueiam as memórias e interrompem a história, causando irreparável destruição. Como pragas. Como um câncer.
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PS. Pra quem curtiu "Aquarius", vale a pena assistir a outros filmes do mesmo diretor, como os longas "Som ao redor" (disponível na Netflix) e "Bacurau", além do curta "Recife frio".