Numa primeira leitura que fiz do filme Aquarius*, do cineasta Kleber Mendonça Filho, vi Clara (a protagonista interpretada por Sonia Braga) como a própria cidade que luta contra o poder econômico desregulamentado, representado por uma empreiteira inescrupulosa. Ou seja, uma visão sobre a atual predominância das práticas neoliberais.
Todavia, o filme é muito rico e uma outra leitura pode ser feita: a de que Clara seria uma representante do poder político lutando contra as imposições do poder econômico, talvez como a ex-presidente Dilma Rousseff, tendo em vista os pactos realizados para que chegasse a chefe do executivo federal (uns dizem que é como a política funciona por aqui) e por sua tentativa de impor reajuste fiscal em prejuízo dos mais pobres.
Mesmo havendo dúvidas, podemos ver algumas semelhanças entre Clara e Dilma. A primeira é que ambas são mulheres fortes, dispostas a lutar. O filme começa nos anos oitenta, mostrando Clara mais jovem, com os filhos ainda pequenos e pouco depois de vencer um câncer. Dilma lutou contra a ditadura militar e foi nos anos oitenta que houve a redemocratização no Brasil; assim, poderíamos ver o câncer da personagem como uma representação do regime militar, que teve vínculos estreitos com o poder econômico. Dilma e Clara carregam cicatrizes desta mesma época.
Nesse contexto, podemos enxergar o edifício Aquarius como o Brasil. Aqui preciso dizer que não gosto da comparação que muitos fazem entre Estado e condomínio, porque a complexidade do primeiro não se encaixa no modelo do segundo. Porém, para efeito de interpretação deste longa, creio que se possa admitir essa correspondência.
Sendo assim, ao vermos Clara já com mais de sessenta anos e lutando praticamente sozinha contra a grande construtora, percebemos que atualmente o poder econômico não precisa mais instaurar uma ditadura para impor suas exigências. Com o fim da guerra fria e o avanço do capitalismo neoliberal e da globalização, houve uma sofisticação dos meios pelos quais o poder econômico controla os Estados.
Com as transnacionais e o fortalecimento do capital financeiro e especulativo, o controle dos Estados se dá por meio da retirada de investimentos, além do uso das grandes empresas de mídia. O poder econômico força a desregulamentação e a corrosão dos direitos de índole social e protetiva (trabalhistas, previdenciários, ambientais etc.), transferindo, ou ameaçando transferir, a produção para Estados com menos barreiras para exploração em larga escala. Como exemplo deste processo, vimos grandes fábricas se deslocarem para países asiáticos e africanos onde exploram trabalho escravo e degradam o meio ambiente sem sofrerem quaisquer sanções.
Diante deste quadro, como agem os partidos à esquerda? O que pode fazer um partido de esquerda quando chega ao poder? E é importante compreender que ter a chefia do poder executivo não significa amplos poderes, já que praticamente tudo tem que passar pelo legislativo, composto por representantes com interesses diversos e muitas vezes contrários, o que é normal e saudável numa democracia.
No caso do Brasil, o congresso eleito em 2014 - com o enorme financiamento empresarial permitido à época - é considerado o mais conservador desde 1964, quando houve o golpe civil-militar que instaurou uma ditadora de duas décadas. Não custa lembrar a sensacionalista e duvidosa operação Lava Jato e as muitas notícias sobre doações ilegais de grandes empreiteiras (como a do filme) a partidos políticos. E foi esse congresso que decidiu pelo afastamento da presidente, que havia se posicionado contra o financiamento empresarial. É muito provável que por trás do golpe estejam articulações para voltar com tais doações.
Feitas essas observações, a comparação entre Clara e Dilma sugere que ambas ficaram isoladas num contexto em que os demais se entregaram sem ressalvas ao poder econômico. Clara é a última proprietária de uma unidade no antigo edifício Aquarius; todos os demais já assinaram contratos com a empreiteira e estão só aguardando que a personagem de Sonia Braga se entregue também. Mas, para surpresa e insatisfação deles, Clara resiste.
É interessante um trecho do filme em que Clara decide pintar o prédio inteiro por conta própria. Quando ela age assim, comete uma irregularidade, pois é um condomínio e todas as outras unidades estão nas mãos da empreiteira. Um condômino sozinho não pode fazer o que quiser com o prédio, mesmo que tenha a melhor das intenções.
Essa conduta de Clara pode ser interpretada como algo semelhante às “pedaladas fiscais” e abertura de crédito suplementar, que serviram de base para o golpe disfarçado de impeachment, embora tais práticas venham se repetindo desde o governo de FHC, passando pelos mandatos de Lula, sendo comuns também nos estados e, na minha visão, não configuram crime de responsabilidade.
Isolada, sozinha, abandonada por seus antigos vizinhos (no caso de Dilma, traída por parlamentares que eram da base do governo, principalmente os do MDB, legenda do seu vice) e lutando contra o poder econômico, ela faz o possível para tentar melhorar as coisas, mesmo que seja só superficialmente. Como pintar a fachada do prédio. Porém, qualquer erro, por mais banal que seja, pode servir como justificativa para tentar forçar sua expulsão.
Essa é a segunda interpretação que faço de Aquarius. Possivelmente o cineasta não pensou nisso quando elaborou o enredo, uma vez que o processo de impeachment veio a se consolidar depois da produção do filme. Porém, a meu ver, a obra é aberta: uma vez que exposta ao público, a interpretação é livre. Aquarius é muito mais que isso e vale por tudo: pela trama, pelos personagens, pela forma, pelas grandes atuações, pela trilha sonora. Vendo e revendo o longa muitas outras leituras poderão surgir.
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*Aquarius: uma mulher, uma cidade, uma era, no link: https://ecosprosaicos.blogspot.com/2016/09/aquarius-uma-mulher-uma-cidade-uma-era.html
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