quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Amor, liberdade e segurança

Segundo Bauman, “para ser feliz há dois valores essenciais que são absolutamente indispensáveis [...] um é segurança e o outro é liberdade. Você não consegue ser feliz e ter uma vida digna na ausência de um deles. Segurança sem liberdade é escravidão. Liberdade sem segurança é um completo caos. Você precisa dos dois. [...] Cada vez que você tem mais segurança, você entrega um pouco da sua liberdade. Cada vez que você tem mais liberdade, você entrega parte da segurança. Então, você ganha algo e você perde algo".

O sociólogo conhecido pelo termo “modernidade líquida”, ator de diversas obras sobre a fluidez da pós-modernidade, critica nossos tempos de total liberdade, na qual os laços são frouxos, abertos, além da reprodução das práticas de consumo nas relações pessoais, reificando humanos. No entanto, na minha interpretação, vejo Bauman como um saudosista, de certo modo conservador, tanto nos costumes quanto nas questões de estado e economia. Ele defende o Estado de bem-estar social pós-guerra, diante das suas experiência europeias, desconsiderando outros países e cenários periféricos numa visão eurocêntrica.

É claro que gosto muito do autor e mantenho minha admiração, especialmente nas críticas ao neoliberalismo e consumismo e também na cidadania, mas num aprofundamento não posso deixar de divergir, já que em uma sociedade patriarcal nunca houve igualdade de gêneros nem exclusividade imposta ao homem. Bauman critica a fluidez, mas é essa liberdade que reflete uma evolução no sentido de as pessoas não se submeterem a relações opressivas e expandir a capacidade de amar e construir novas formas mais abertas, como o poliamor. A questão é viver isso sem reificar. Bauman condena a liberdade, é um nostálgico dos laços perenes e exclusivistas.

Uma leitura do filme Her (2013, S. Jonze), numa perspectiva baumaniana, atinge “o paradigma de que são apenas as relações carnais que estão perdendo a força. Ao se apaixonar por um sistema operacional, Theodore parece suprir todas as suas necessidades dentro de um relacionamento. A forma virtual de se relacionar é a maneira que o protagonista tem de encontrar aquilo que realmente procura e idealiza, pois o sistema operacional se adapta cada vez mais às suas satisfações, tornando-se uma complementação do usuário.1

Nessa visão crítica da superficialidade virtual Bauman acerta em cheio, mas a verdade é que o filme não reflete a realidade, é uma hipérbole. Hoje ainda há pessoas por trás das máquinas, celulares e aplicativos: mensagens trocadas geram encontro entre pessoas reais. Desse modo, a internet e outras tecnologias não acabam com as relações.

Aqui proponho um diálogo entre o que colocações de Bauman e da psicanalista Regina Navarro Lins. Enquanto o sociólogo se fecha no passado, Navarro Lins já enxerga mudanças positivas e um futuro com outras configurações afetivas e familiares. Segundo a psicanalista “poliamor é a tradução livre para a língua portuguesa da palavra polyamory (Polyamory é uma palavra híbrida: poly é grego, e significa muitos , e amor vem do latim), que descreve relações interpessoais amorosas que recusam a monogamia como princípio ou necessidade. Por outras palavras, o poliamor como opção ou modo de vida defende a possibilidade prática e sustentável de se estar envolvido de modo responsável em relações íntimas, profundas e eventualmente duradouras com várias/os parceiras/os simultaneamente.”2

Regina Navarro Lins compreende a liberdade e a abraça; Z. Bauman vê com desconfiança, dando maior ênfase à defesa da segurança. Só tempo vai mostrar como a sociedade vai desenvolver o modo de se relacionar, mas desde já se veem novas modalidade de relacionamentos mais complexos. Na dança da vida, entre a liberdade e a segurança, as pessoas vão descobrir como querem amar.
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2 blogosfera.uol.com.br/2016/08/06/da-monogamia-ao-poliamor/

As Bahias e a Cozinha Mineira - Lavadeira Água (Áudio Oficial)

sábado, 10 de dezembro de 2016

Museu do amanhã

Um grande tatuí quase morto
À beira da baía de Guanabara,
Navio branco que passou do porto e
Das águas escuras com sua carapaça clara.

Fóssil novo e reluzente,
Exoesqueleto brilhante e alvo,
Prédio derrubado por acidente,
Gigante náufrago por acaso salvo.

Quase totalmente cercado de mar e mares -
Água suja, fétida, colorida de combustível -,
A ostentar suas estruturas triangulares,
Um corpo que se move de forma previsível.

Um homem que se aproxime da sua boca-entrada
O verá grande, amplo, desdentado e faminto;
Mas ao olhar para o lado, o verá como uma ossada
De um daqueles enormes navios extintos.

Para nada o seu exoesqueleto se move:
Um gasto de energia eterno e desnecessário.
Não voa, não nada, não anda, embora inove,
mudando e iluminando o velho cenário.

A velha e sombria praça do porto gigante
Agora - sem anteparos - encara o mar,
Mas inda guarda seus becos logo ali, adiante,
Às sombras de edifícios e morros a se abandonar.          
                                                          30/12/2015


sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Cry me a river: o choro dos manipulados

Cry me a river. Agora, os que foram manipulados podem chorar rios. O golpe se aprofunda e agora parte da classe média começa a sentir medo. Lutem ou chorem rios...

"Now you say you're lonely
You cried the long night through
Well, you can cry me a river
Cry me a river
I cried river over you
Now you say you're sorry
For being so untrue
Well, you can cry me a river
Cry me a river
Cause i cried, i cried, i cried a river over you...”

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

De olhos bem abertos aos dogmas (Kubrick, 1998)

Nunca homens e mulheres se aventuraram com tanta coragem em busca de novas descobertas, só que, desta vez, para dentro de si mesmos. Cada um quer saber quais são suas possibilidades, desenvolver seu potencial. O amor romântico propõe o oposto disso, pois prega a fusão de duas pessoas. Ele então começa a deixar de ser atraente. Ao sair de cena está levando sua principal característica: a exigência de exclusividade. Sem a ideia de encontrar alguém que te complete, abre-se um espaço para outros tipos de relacionamento, com a possibilidade de amar mais de uma pessoa de cada vez”, diz a psicanalista e escritora Regina Navarro Lins.*

A exclusividade é um dogma. Por que o amor tem que se restringir a duas pessoas? Por que o amor não pode se expandir? O que acontece com os desejos? E se nos revelarmos? A revelação é o que acontece no filme “De olhos bem fechados” (1998), de S. Kubrick. Contém spoilers! Alice, personagem interpretada por Nicole Kidman, revela a seu marido, Dr. Bill (Tom Cruise), seu desejo sexual por outro homem.

A partir daí, Bill entra em um processo de desejos, fantasias e rituais. Vai parar num assombroso baile de máscaras em que várias pessoas transam livremente. A loja de máscaras e os diálogos dão a entender que vivemos no mundo do arco-íris e que o baile é além, um cenário pós-arco-íris. Um piano sombrio atravessa todo o filme. O fato é que na cena final, depois de toda busca frustrada de Bill, de todas as fantasias e máscaras caídas, Alice diz que eles tem que fazer uma coisa o mais rápido possível: “foder”. O diálogo final indica que o casal vai continuar se amando, construindo a relação.

Outro filme que trata da exclusividade de um modo criativo é Her (Ela, de Spike Jonze, 2013), ganhador do oscar de melhor roteiro original. No filme, que se passa num futuro não tão distante, Theodore, personagem de Joaquin Phoenix, se apaixona por Samantha, cuja voz é de Scarlett Johansson. Tudo normal para um cara que estava desolado com o fim de um longo relacionamento, exceto pelo fato de que Samantha é um novo sistema operacional.

Ela passa a acompanhá-lo durante todo o tempo, no computador, no celular, em qualquer tela, em fones de ouvido. Theodore trabalha escrevendo cartas pessoais comoventes para outras pessoas e Samantha o ajuda em tudo, desde a hora de acordar até seus sonhos. Ela não tem corpo, mas tem voz, expressa sentimentos, vontades e os dois passam a namorar.

Chegam até a viajar juntos para uma cabana. Tudo se abala no momento em que ele descobre que Samantha se relacionava com várias outras pessoas e sistemas operacionais ao mesmo tempo. A relação prescindiu de um corpo, mas foi enfraquecida pelo dogma da exclusividade. Theodore desaba quando descobre que não é o único. E por que agir assim se ela o amou de qualquer forma? O poliamor já é uma realidade, a liberdade e a felicidade não devem ser limitadas por dogmas.

Concluindo com as palavras de Regina Navarro Lins: “é provável que o modelo de casamento que conhecemos seja radicalmente modificado. A cobrança de exclusividade sexual deve deixar de existir. Acredito que, daqui a algumas décadas, menos pessoas estarão dispostas a se fechar numa relação a dois e se tornará comum ter relações estáveis com várias pessoas ao mesmo tempo, escolhendo-as pelas afinidades. A ideia de que um parceiro único deva satisfazer todos os aspectos da vida pode vir a se tornar coisa do passado.”

*Regina Navarro Lins (Rio de Janeiro30 de novembro de 1948) é uma psicanalista e escritora brasileira. Também é palestrante em assuntos como relacionamentos afetivos e sexualidade.