O tema é
“Queda livre”, primeiro episódio da terceira temporada da série
Black Mirror (Netflix). Não, esse texto não tem revelações da
trama, é apenas uma leitura da ideia, especialmente do uso da
tecnologia para avaliar pessoas e colocá-las em níveis ou classes
diferentes. Mas é melhor ver primeiro e ler depois.
A
primeira cena é de uma mulher correndo com um celular na mão,
olhando pra tela o tempo todo. Daí em diante todos os
encontros dela geram avaliações, notas de 1 a 5. Um esbarrão pode
render notas baixas e um bom atendimento a troca de 5 estrelas
marcadas rapidamente na tela. Vale pra tudo: fotos, postagens,
atitudes, todos podem se avaliar, mas a nota dos mais bem avaliados
(acima de 4.5) tem peso maior na pontuação. E essas notas
determinam tudo na vida da pessoa: acesso a casas, financiamentos,
serviços, empregos, pessoas com quem se relacionar etc. essa é a
ideia.
No Uber tem isso. Você faz a corrida e rola uma avaliação
mútua. Então, isso passa a fazer parte de todos os atos. As pessoas
tornam-se reféns (e algozes) das avaliações, dali vem o status de
cada personagem. Reprovação social gera queda de pontos.
Autoridades podem punir com perda de pontos. Como outros episódios
de Black Mirror, esse causa um mal-estar. Ainda bem que é ficção,
tento me aliviar. Mas, refletindo um pouco mais, fico assustado ao
pensar que a realidade é parecida ou até pior.
O critério de avaliação atual baseia-se na desigualdade,
construída historicamente, sendo evidente a dificuldade ou proibição do acesso de
certas pessoas a determinados locais, serviços, relações sociais
etc. E no episódio, a princípio, não se veem mendigos, pessoas
famintas, trabalho escravo (talvez o fim revele como lidam com os
desajustados); não se fala em desemprego e as pessoas parecem estar
vivendo com conforto. No presente, na realidade, há miséria,
pobreza e uma enorme restrição dessas pessoas a serviços
essenciais de qualidade (educação, saúde etc.), concessão de
crédito, empregos com maior remuneração etc. E ainda há
avaliações, como a das roupas (moda), do modo de falar, da origem, da cor
da pele, do gênero, marcas dos produtos que usa etc. Isso sem falar do individualismo, da falta de consciência de classe.
Como são
avaliadas pessoas pobres, sem estudo formal, que não dominam mais línguas,
sem a bagagem cultural exigida, sem a aparência imposta, que moram
em locais discriminados? Como são dadas as oportunidades? A ficção não se esgota na trama de
personagens distantes de nós, a fantasia, a imaginação apontam pra
realidade. A ficção é um reflexo crítico da vida. Nossas
avaliações, interações e acessos também estão sendo definidas
por critérios falhos. E as pessoas, tão imersas nesse sistema, muitas vezes não veem suas estruturas.
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