quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Reflexos obscuros da queda livre (Black mirror)

O tema é “Queda livre”, primeiro episódio da terceira temporada da série Black Mirror (Netflix). Não, esse texto não tem revelações da trama, é apenas uma leitura da ideia, especialmente do uso da tecnologia para avaliar pessoas e colocá-las em níveis ou classes diferentes. Mas é melhor ver primeiro e ler depois.

A primeira cena é de uma mulher correndo com um celular na mão, olhando pra tela o tempo todo. Daí em diante todos os encontros dela geram avaliações, notas de 1 a 5. Um esbarrão pode render notas baixas e um bom atendimento a troca de 5 estrelas marcadas rapidamente na tela. Vale pra tudo: fotos, postagens, atitudes, todos podem se avaliar, mas a nota dos mais bem avaliados (acima de 4.5) tem peso maior na pontuação. E essas notas determinam tudo na vida da pessoa: acesso a casas, financiamentos, serviços, empregos, pessoas com quem se relacionar etc. essa é a ideia. 

No Uber tem isso. Você faz a corrida e rola uma avaliação mútua. Então, isso passa a fazer parte de todos os atos. As pessoas tornam-se reféns (e algozes) das avaliações, dali vem o status de cada personagem. Reprovação social gera queda de pontos. Autoridades podem punir com perda de pontos. Como outros episódios de Black Mirror, esse causa um mal-estar. Ainda bem que é ficção, tento me aliviar. Mas, refletindo um pouco mais, fico assustado ao pensar que a realidade é parecida ou até pior.

O critério de avaliação atual baseia-se na desigualdade, construída historicamente, sendo evidente a dificuldade ou proibição do acesso de certas pessoas a determinados locais, serviços, relações sociais etc. E no episódio, a princípio, não se veem mendigos, pessoas famintas, trabalho escravo (talvez o fim revele como lidam com os desajustados); não se fala em desemprego e as pessoas parecem estar vivendo com conforto. No presente, na realidade, há miséria, pobreza e uma enorme restrição dessas pessoas a serviços essenciais de qualidade (educação, saúde etc.), concessão de crédito, empregos com maior remuneração etc. E ainda há avaliações, como a das roupas (moda), do modo de falar, da origem, da cor da pele, do gênero, marcas dos produtos que usa etc. Isso sem falar do individualismo, da falta de consciência de classe.

Como são avaliadas pessoas pobres, sem estudo formal, que não dominam mais línguas, sem a bagagem cultural exigida, sem a aparência imposta, que moram em locais discriminados? Como são dadas as oportunidades? A ficção não se esgota na trama de personagens distantes de nós, a fantasia, a imaginação apontam pra realidade. A ficção é um reflexo crítico da vida. Nossas avaliações, interações e acessos também estão sendo definidas por critérios falhos. E as pessoas, tão imersas nesse sistema, muitas vezes não veem suas estruturas.


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