quarta-feira, 26 de outubro de 2011

A queda

A queda do muro de Berlin foi o ícone da falência da experiência comunista da URSS. Aproximadamente 20 anos depois deparamos com mais uma crise do capitalismo. A imprensa, contudo, parece não reconhecer a gravidade dos fatos e até agora não lhe atribuiu nenhum ícone.

Mais grave que a destruição física é a queda do fundamento ideológico do liberalismo.

Onde estão os defensores do Estado mínimo, da não intervenção estatal, da mão invisível que controla o mercado?

O fundamento do sistema ruiu, porque o Estado - segundo os liberalistas, o monstro que impede o mercado de ser inteiramente livre e resolver todos os problemas do mundo - tem sido usado para salvar as instituições financeiras. Ou seja, o Estado não deve gastar com saúde, educação, subsídios para a agricultura etc., mas deve injetar grana - dinheiro público, dinheiro dos cidadãos - em bancos.

Não é de hoje que o Estado serve aos mais fortes, nem foi agora que o sistema falhou; ele já nasceu falido, tendo em vista que há séculos a riqueza de poucos se faz com a miséria de muitos. A obesidade de alguns corresponde à inanição de outros. Mesmo assim ele é o sistema triunfante para alguns.

Não vou entrar no mérito dos empréstimos como medida de urgência. Desejo apenas registrar a queda, cujo ícone é a ocupação de Wall Street.

Em 2008 os EUA injetaram grana nos bancos; agora é a vez da União Europeia.

Viva a solidariedade com os bancos, porque deles dependemos! Os cidadãos agora são acionistas compulsórios das instituições financeiras que lhes vendem crédito com juros extorsivos e lucram bilhões. Desta forma, o lucro é repartido com os proprietários do negócio e o risco, custeado pelo contribuinte, pelo povo.

Abaixo, link para a Folha de São Paulo, onde se explica o "socorro aos bancos". Ressalto, porém, que é uma tremenda mentira o discurso de salvar a Grécia. Não, a Grécia não é a culpada da crise; acreditar nisso é transformar uma das vítimas em algoz.

http://www1.folha.uol.com.br/mundo/997039-uniao-europeia-chega-a-acordo-para-recapitalizacao-de-bancos.shtml


sábado, 23 de julho de 2011

Jogo sujo: o preço da Copa

A grande mídia não discutiu a realização da Copa. Não como deveria. A Copa nos trará investimentos e desenvolvimento, dizem quase todos. No entanto, até agora o investimento não veio de fora; pelo contrário, nosso dinheiro, verba pública, tem sido utilizado para cumprir as exigências - essas, sim, de fora.

O dinheiro, na verdade, é nosso. Deixamos de pagar melhor a nossos professores e médicos e gastamos com circo, ressaltando-se que o picadeiro renderá frutos aos supostos investidores, que exibirão suas marcas nas camisas dos jogadores e às bordas dos campos.

Muitos não sabem, mas a experiência da África do Sul foi negativa: hoje, alguns dos estádios, que consumiram dinheiro público, apodrecem.

A experiência com os Jogos Pan-Americanos de 2007, aqui no Rio, também não foi das melhores, principalmente pelo modo como foram realizadas as obras: no fim do prazo, deixando de lado as licitações.

Já defendi a estatização da seleção brasileira, com a consequente democratização da escolha de seus membros (diretas já!). Diante da crise de representatividade, creio que gastos como o da Copa e das Olimpíadas deveriam passar pelas urnas; não sem antes verificar, com efetiva transparência, quanto o Estado gastará com isso. Digo "gasto" porque o termo "investimento" soa falacioso.

Quem paga a Copa? E quem lucra com a festa?

Vale a pena conferir o que diz Andrew Jennings, jornalista da BBC:

Link para a entrevista

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Meia-noite em Paris (Woody Allen, 2011)






Se o pessoal do cinema tivesse noção de seu real tamanho perto dos artistas das primeiras décadas do século passado, os filmes seriam diferentes. Não quero levantar a bandeira do passado - embora eu seja um tanto nostálgico -, porque isso é de certo modo negar o presente. A verdade é que tanto no passado quanto no presente há filmes ruins e bons. E o nariz nova-iorquino comprova o valor do agora.


Meia-noite em Paris é uma bela fábula contemporânea, com direito a ‘carruagem’ à meia-noite levando o nosso herói ao fantástico mundo dos seus ídolos. Um conto sobre a nostalgia que sentimos daquilo que não vivemos. Na verdade, nostalgia não é o termo mais adequado, porque se trata de uma visita sem dor, e nostalgia pressupõe sofrimento (álgos - algia - é dor e nóstos, retorno). Odisseu padece para voltar à sua terra. No filme, a personagem visita o passado dos ídolos, um passado que conhece pelo que contaram, um passado alheio, narrado.


Allen faz prosa, como ele mesmo já disse. Não há aquela poesia iconográfica; sua narrativa é simples - Hemingway diria honesta. Não extravasa na forma; sua atenção concentra-se no conteúdo, principalmente nos diálogos. Exagerando, afirmo até que é possível ouvir muitos filmes dele, porque o núcleo não está nas imagens. Não é qualquer cineasta que admite essa apreciação radialista. Que coisa mais antiga! Parece até um retorno à primeira metade do século XX.

E nesse último filme, ele foi bastante criativo, não só nos encontros das personagens, mas no desenvolvimento da trama. Tudo bem, a maioria das personagens W. Allen pegou emprestada e a ideia de se encontrar com os ídolos - Dante o diga - não é tão original (embora a originalidade, como diria Paulo Machado, seja um bem supervalorizado). Mas dar um passo adiante e perceber que a insatisfação que atinge o nariz-protagonista também aflige aqueles que vivem no que ele julga o melhor dos mundos é uma ótima sacada. Ainda mais da maneira como foi elaborada.

Além disso, há o romance que o protagonista escreve, que se interliga à narrativa do filme. Um homem que vive do passado. Os ídolos leem o romance do roteirista e ainda o ajudam a descobrir, por meio de um personagem seu, o que ele mesmo não havia percebido na realidade. Uma visão da ficção ou dos que já não existem que é menos fantasiosa que as pessoas reais.

Porque no fim das contas há uma inversão entre ilusão e realidade: as pessoas que conviviam com o roteirista frustrado, no presente, revelam-se simulacros e os seres fabulosos, do passado, mostram-se verdadeiros.

Uma declaração de amor ao passado cantada - por livre escolha - no presente.

Meia-noite. Ouço buzinas lá fora. Esperam-me; nem tive tempo de falar de Paris. Pra não sair sem dizer nada, digo apenas que Paris é uma festa.

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PS. Se eu fosse o roteirista, não seguiria os conselhos literários de certa senhora.
PS1. O passado pode ser um lugar perigoso demais! Como viver sem os remédios que temos hoje?!
PS2. Os narizes também fazem bons filmes, como este último do W. Allen. V. https://ecosprosaicos.blogspot.com/search/label/eNe).

quinta-feira, 23 de junho de 2011

eNe

Às bocas e aos olhos os poetas sempre dedicaram seus versos mais intensos, graves até, e belíssimos adjetivos. Encontros e despedidas de olhos, olhares, lábios... Mas ninguém se mete a escrever sobre o encontro de narizes, esse prosaico encontro que afeta os apaixonados; às vezes - muitas vezes - os narizes se encontram antes das bocas. Bom, falo por mim, pois meu nariz é um tanto ousado, mete-se na frente da boca, nos momentos em que geralmente os olhos já estão perdidos.

E as musas - bocas e olhos - implicam demais com o nariz: os olhos exigem narizes mínimos; tenho quase certeza que fumar foi um jeito que a boca arrumou para passar a frente do nariz. Além disso, os lábios vivem falando mal dos narizes: quanto maiores, maior o escárnio.

Quando os poetas escrevem sobre o nariz é na base da mofa; ninguém fala sério do coitadinho. Cyrano de Bergerac nada mais é que um homem fugindo da sombra (enorme) de sua nareba.

Neridos namigos neitores, nestou num nilema nanado! (Sentiram o poder das narinas?).

Meu dilema é o seguinte: não sei se repito trinta ou mais vezes o termo nariz ou se vou trocando por órgão do olfato, venta, focinho etc. Porque na verdade todos esses termos não são tão bons como nariz.

Parece-me que a melhor solução é usar nase (alemão), nez (francês), naso (italiano), nose (inglês), ou seja, trocar a língua e não a palavra. Ou então usar o N, que é a letra fetiche do nariz em todas as línguas pesquisadas; o nariz é o ene do rosto. O ene, sobretudo, é o som nasal.

Por favor, repitam comigo: nasal, nariz, ene, narinas – sintam a vibração do naso!

O eNe, que já foi acusado pela infelicidade do mundo e até apontado como possível responsável por um eclipse (coisa de Bocage) [1], é na realidade vítima da sociedade, do homem. Pode o homem sorver o ar - a vida - pelo nariz e zombar dele pela boca? Devemos-lhe o ar que respiramos e no entanto pagamos-lhe com desacatos!

O nez não tem boca para se defender e por isso espirra! O naso lacrimeja triste: o resfriado é sua revolução! Todo poder às narinas! O que seria da boca sem o nariz? Tapem o nez e falem: ouçam a voz maculada pela ausência do eNe.

O N, tadinho, é o nosso bode-expiatório: isolado, culpado, condenado, extirpado. Ou pelo menos reduzido, covardemente reduzido. Portanto, à sua defesa, que é a defesa da verdade.

Chega de bisturis! Chega de cirurgias que fazem do eNe um i de tão fino! Daqui a pouco os noses serão metafísicos, como no conto o segredo do Bonzo [2], de Machado de Assis. As mulheres estão em guerra com seus eNes e alguns homens andam aderindo a essa cobarde batalha. Extirpar o nariz é esvaziar-se de virilidade; perdoem-me o radicalismo, mas um homem com ene pequeno é quase uma mulher. Não, isso não é autopromoção!

Se há alguns séculos as mulheres usavam vestidos que aumentavam os quadris, hoje a moda é reduzir os enes. Seios grandes e narizes pequenos, eis a mulher contemporânea. As atrizes estão todas desnarigadas! Qualquer dia, vão cair desmaiadas por aí. O motivo? Falta de oxigênio! É bom lembrá-las que o nariz serve para respirar também. Só as comediantes podem ostentar um N maiúsculo, um eNe histriônico - só elas são livres.

Podem rir de mim, mas admiro ferrenhamente as mulheres que não mexem nos narizes e ainda mais as que não alteram nada, sequer a cor dos cabelos. Porque as nossas meninas andam comprando de tinta de cabelo a orelhas pequeninas.

Além disso, historicamente, o ene é um símbolo do poder. A monarquia não está no trono, na coroa ou no cetro; a monarquia sempre esteve no nariz: pior que guilhotinas, seriam os cortadores de narizes. O eNe empinado é o símbolo da aristocracia. Reis são sobretudo narizes imponentes.

Ainda escrevo um tratado político sobre o nariz. Maquiavel deixou passar uma observação que o tornaria célebre: príncipe que é príncipe tem grande naso! E o nariz, sendo grande, tudo justifica. Deve-se ter coragem para sustentar o nariz em pé; aí esta o poder. Naquiavélico!

Talvez seja por isso que os palhaços têm bolas vermelhas como nariz, pois a alma do palhaço é o saliente eNe colorido. Não se pode rir do poder, logo o homem cuja função é fazer rir precisa fantasiar o seu nez. O palhaço, com sua bolota vermelha no meio do rosto, é um ser despido de decoro e portanto de poder. (Embora o poder muita vez seja indecoroso e os palhaços, dignos.)

E mais: se eu tivesse que escolher um ícone para a arte pós-moderna, escolheria o eNe. Ele se tornou um objeto deslocado: não serve mais para respirar e cheirar (serve cada vez menos pra isso), serve apenas como objeto estético, imagem no rosto. Rosto que é museu, produto ou sei lá o que; rosto puro, face de um ser, não é.

Revolte-se, eNe! Chega de sofrer! Está na hora de se assumir e crescer, se impor, virar tromba! Viva o elefante!

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Links para os textos

sábado, 7 de maio de 2011

Personagens (conto)


- Fôssemos personagens - pura imaginação de um escritor qualquer -, seríamos mais reais do que julgamos ser!
- Como assim?!
- O homem é um ser virtual. O homem é, em última análise, um ser cuja natureza comporta (exige, na verdade) a irrealidade; é um ser virtual, visto que a ficção lhe é intrínseca.
- Confesse que você decorou essa frase! Agora explica.
- É mais simples do que parece. A ficção faz parte de nós: somos reais e irreais, e o que estou defendendo é que no fundo somos mais ficção que fatos.
- Você anda lendo demais! Ficção é ficção e vida é vida! Como somos mais ficção?
- É simples! – respondeu. – Estamos aqui conversando pacificamente. Essa é a realidade. Mas se saio daqui e resolvo contar a um conhecido nosso que a gente discutiu, ele provavelmente acreditará na minha narrativa. E se ele encontrar outra pessoa que nos conheça, repetir minha invenção e isso se espalhar, será como se tivesse acontecido mesmo. Não vai demorar muito para nos perguntarem o que houve conosco...
- Isso até me encontrarem: aí vou explicar que você está louco!
- Vão achar que você está ressentido e inventou esse papo de loucura!
- Cara, essa idéia sua não é nada mais que a velha frase “uma mentira muitas vezes repetida torna-se verdade”...
- Não, não é isso; minha idéia vai além. Há hoje uma tremenda discussão sobre o mundo virtual, sobre as loucuras da pós-modernidade. Porém, o que os alguns pensadores apontam como algo recente, eu julgo inerente ao homem.
O amigo, olhos baixos, apenas ouvia.
- A capacidade humana de se comunicar, de usar a linguagem, a escrita, bem como o poder de vislumbrar o futuro, analisar o passado e compará-los, faz do homem um ser criador, apto a inventar outros mundos, os quais começam com as idéias e transbordam pela boca, pelas palavras, tornando-se, assim, objeto do conhecimento de outros homens. A discussão atual parece errar ao confundir uma manifestação com o fenômeno em si, que é tão antigo quanto o ser humano. O mundo virtual é somente a ficção da atualidade; apenas os meios pelos quais se expressa são novos, pois as criações humanas influenciam e determinam a vida há muito.
- Mas daí a dizer que o homem é virtual não haveria uma grande diferença? – indagou o amigo, agora um pouco mais compreensivo.
- Não, de forma alguma. O homem é mesmo virtual: o homem nasceu com a palavra. O ser que antecedeu o homem não conhecia a língua e portanto era um só com a natureza. Um dia, porém, o som gutural, que era o único que o ser que veio a se tornar o homem conseguia emitir, explodiu e se expandiu em fonemas, e com as palavras surgiu o homem. O Homem é fruto do Verbo. O som gutural - a matéria e a energia comprimidas - depois de rebentar, se expandiu, e ainda hoje avança. As palavras, matéria de que o mundo é feito, são constituídas pelos fonemas, letras, átomos que o homem manipula para construir o que chama de realidade. Nós inventamos, criamos teorias e erigimos com base nelas não só a História mas também narrativas que tudo explicam; falo não apenas da religião, pois a ciência também nasce como ficção - e às vezes subsiste bastante com essa natureza -, se é que algum dia deixa de ser discurso para se tornar fato...
- Isso lembra Nietzsche, forças ativas e reativas, não?
- Sim, com certeza! Quando ele diz que força reativa é “vontade de verdade” que se nutre da mutilação de outras forças, percebe-se claramente sua natureza ficcional. Ao defender uma teoria refutam-se as demais que tratam do mesmo assunto. A força ativa, por sua vez, enuncia valores sem os discutir, sem tentar provar a legitimidade, sem aniquilar outras manifestações, uma vez que não pretende definir qualquer verdade. Nesse contexto, a poesia é mais fiel que a ciência, a religião e a filosofia, na medida em que não pretende enunciar a verdade. Poetas não se excluem! A Odisséia é mais coerente que as leis! Ulisses sempre será Ulisses, enquanto as leis e os Estados fundamentar-se-ão nos mais diversos discursos. Só a arte nasce e subsiste perfeita: o que chamamos de realidade é pura contradição. Esse diálogo, por exemplo, é uma manifestação ficcional que a priori não deveria se assumir como tal, tendo em vista que o que defendo aqui (e quando defendo já estou propondo uma “verdade”) esbarra noutras teorias. Se eu quisesse pureza, deveria escrever uma obra literária sobre isso!
- É, de fato, a ciência e a religião são discursos e as “verdades” que enunciam não são realidade. Mas isso não faz do homem um ser virtual!
- É claro que faz! E desde que o homem é homem é assim: a letra escura sobre a página clara, a idéia que faz nascer mundos lá fora. Ouça: o homem surgiu com a palavra, com capacidade de inventar, e se antes as letras eram os átomos com o quais o homem trabalhava para construir seu mundo, agora, na era digital, na pós-modernidade, somos capazes de intervir nas imagens, de construí-las e de propagá-las com incrível rapidez. Questiono as teorias atuais sobre a realidade (olha aí a força reativa atuando!): até que ponto a ficção, embora sob manto da religião ou mesmo da ciência, já não exercia essa função de alienação, de distanciamento, de intervenção, de criação de mundos imbricados. A noção de realidade nunca foi unívoca! Veja a religião: durante muito tempo ela exerceu papel crucial na concepção de “realidade”, e ainda exerce em alguns grupos. Sempre existiram mundos outros que se confundem com o “real” (é, na verdade, impossível distingui-los), e isso, repito, não é exclusividade da pós-modernidade!
- O que diz faz sentido, mas não consigo aceitar que não haja distinção...
- Mas não há! Queremos enxergar a realidade como algo puro, mas isso é impossível; de perto tudo é discurso, tudo é palavra. A diferença é que a arte se assume como tal, enquanto o “mundo virtual” pós-moderno muitas vezes se nos apresenta como se realidade fosse. Contudo, isso também acontecia e acontece com ciência, ou seja, com idéias que prevaleceram - e ainda prevalecem - em determinadas épocas e grupos, como, por exemplo, a “superioridade masculina”, que imperou como “verdade” durante muito tempo (e impera ainda em alguns lugares). Poderia citar ainda a superioridade de uma certa etnia. Essas imbecilidades perduraram séculos! E o que eram? Invenções, com manto de ciência, eleitas como verdade por certo grupo. Você, com certeza, crê cegamente em teorias científicas que, mais cedo ou mais tarde, serão consideradas patéticas.
- Isso se aplica à cultura, ao mundo construído, mas não à natureza, ao mundo dado!
- Ouça: até os elementos puramente físicos sofrem influência do homem, visto que narramos teorias que pretendem explicar a origem das coisas. Se disserem, por exemplo, que uma pedra está em determinado lugar porque deus quis, essa pedra torna-se sagrada. Se, no entanto, falam que a pedra está a ali por acaso, posso destruí-la sem problema. Temos hoje o discurso científico, que pode defender a importância da tal pedra para o equilíbrio da natureza e conseqüentemente para o homem, razão por que a bendita pedra tornar-se-ia sagrada, intocável...
- Realmente, ao saber das origens, tratamos os objetos de forma diferente, mas...
- Pois é, aí está! Quando uma narrativa é tomada como real (seja uma teoria cientifica, seja uma reportagem jornalística ou sei lá o quê!), o que é considerado verdade ganha status de real e se constrói como fato. Sem dúvida, a ficção, hoje, vai mais longe, com mais rapidez, e o consumismo instituiu novos signos. Porém, as palavras proferidas por um padre, na Idade Média, também afetavam os ouvintes, assim como as teorias científicas que pregavam a eugenia. Há pouco executavam-se pessoas com base nessas supostas verdades! Ora, uma marca é um símbolo vazio da mesma forma que a virgindade! Não sou defensor do “mundo virtual” pós-moderno - pelo contrário! Penso que ele deve ser analisado, criticado, questionado; afirmo apenas que ele não passa de uma nova manifestação de algo antigo. O homem é um ser virtual e as palavras são a matéria de que seu mundo é feito.
- Você tem razão, admito; mas não deixa de ser discurso...
- Sim, tudo é; pelo menos, eu assumo a fragilidade do que digo. Agora que você finalmente cedeu, gostaria de falar sobre o início de tudo. Na verdade, é muito claro: a criação é o verbo, o fruto proibido é a linguagem e deus é a Narrativa. O velho testamento nunca escondeu isso; os exegetas que ficam personificando, criando - o que é muito natural, aliás, mas sem dúvida confunde os demais intérpretes.
- Como assim “o fruto proibido é a linguagem”? Isso não é nada claro...
-Você já leu Gênesis?
- Já.
- E nunca se deu conta de que o Verbo é tudo?
- Sim. Há outros que falam disso; mas você está dizendo que o fruto proibido é a linguagem!
- Obviamente. O verbo é tudo. Nomear é criar. O nome é um dos primeiros atos ficcionais da vida do indivíduo. Somos personagens; quando nascemos, já possuímos um nome, dado pelos nossos pais, que agrega uma vontade e uma história. A linguagem é requisito do verbo. A narrativa bíblica não afirma que deus criou a luz, o firmamento... Ao descrever a criação optou-se por deixar claro que tudo foi criado por meio de discurso do criador: usa-se todo o tempo o verbo dizer: “deus disse: que a luz seja, que haja um firmamento...”.
- Sim, isso é verdade, mas é deus quem fala, o poder é deus.
- Como já disse, o ser que antecedeu o homem não conhecia as palavras. Um dia, porém, o som gutural explodiu e se expandiu em fonemas, e com as primeiras palavras surgiu o Homem. O Homem é fruto do Verbo. O homem é personagem e narrador do seu discurso. Deus é o Verbo, o Poder e a Narrativa que pretende explicá-lo. A língua emancipou o homem da natureza; os fonemas e as letras são os átomos - o discurso é a energia que os une.
- Nunca havia pensado dessa forma... Não é à toa, então, que ele é “o alfa e o ômega.” Ele não é só o princípio e o fim, ele é o alfabeto.
- Ao controlar o som, as letras, os seus átomos, e assim inventar o seu mundo, o Homem passa de criatura a Criador e se aparta da natureza. Enquanto no mundo natural o homem é apenas personagem, no mundo que ele concebe, é também autor. E, como Narrador, o Homem concebe sua primeira criação: deus (que na verdade nasceu como deuses, que personificavam as forças da natureza) - a mais drástica das criações, por ser a primeira e se apresentar como real. A Narrativa, portanto. Deus foi crucial à transição do homem ao papel de Criador.
- Mas por que criar deuses?
- O Homem, ao falar, se vê apartado da natureza. A palavra arrancou o homem doparaíso; o suor do rosto e o sofrimento são conseqüências do papel de Narrador. Lutar com palavras não é a luta mais vã - talvez seja a única relevante -, por isso lutamos – e suamos e sofremos – mal rompe a manhã. O homem inventa deus, porque se assombra consigo mesmo, com o seu poder; ele o cria e nele crê para que deus represente sua força criativa - talvez pela incapacidade de conceber tamanho poder em si mesmo. O homem, que sempre foi personagem (sem saber, a princípio), de uma hora para outra – em virtude da linguagem – se vê como Narrador e isso o espanta!
- Deus, então, seria resquício do rompimento com a natureza?
- Mais que um resquício, uma necessidade. Ao deparar com seu poder criador (língua), o Homem imagina deus para plasmar fora de si o seu poder e, desta forma, conceber e respeitar sua própria força criativa. O Homem estava tão habituado a ser vítima das forças natureza que criou deus à sua imagem e semelhança, para espelhar noutro ser o seu poder. Ao tornar-se Criador, o Homem, assombrado, cria deuses, aos quais delega seu poder, dizendo “oh, deus criador, sou sua criatura!”. Age assim para se ver distante de sua própria força, como uma espécie de negação da recém-descoberta autonomia.
- Somos covardes, então?!
- A liberdade é um fardo. Deus, na maneira mais primitiva em que foi concebido (e muita gente ainda insiste em compreendê-lo assim) surge para mitigar o peso desse fardo. O fruto proibido é uma representação do descobrimento da língua; a árvore do conhecimento é a comunicação: a princípio, a fala, a tradição oral, e após as pinturas rupestres, os símbolos, a escrita... Na narrativa mais conhecida no ocidente, a punição que deus impôs à humanidade, representada por Adão e Eva, é a punição que o homem inventa para si, e consiste no preço da emancipação. Afastar-se da natureza é assumir o papel de construir o mundo e não mais o de mero personagem subjugado pela natureza. Ao passar de criatura (personagem) a criador (Narrador) o Homem torna-se responsável por suas mazelas - início da culpa, do suor. Antes, integrado à natureza como um bicho qualquer, era moldado pela natureza; ao se emancipar, impõe-se o trabalho da construção, daí as dores e o suor. O Éden representa a integração total, a ausência de responsabilidade mas também de liberdade.
- É uma interpretação interessante, sem dúvida.
- A língua é a extinção do poder destruidor tempo: vence a morte, desafia o tempo e o espaço - a princípio com a tradição oral e depois com a escrita. A imprensa consolidou e acelerou esse processo. Na realidade, acho que a mulher criou a linguagem. Eva prova o fruto, a palavra - fala -, vê que é bom e ensina a seu companheiro. A serpente é a língua: flexível, móvel, ágil. Fomos seduzidos pelas palavras que a serpente - língua - libertou. Eva não nasceu da costela de Adão; o homem é que veio à luz pela língua de Eva. O homem percebe a mulher, o feminino, e cisma que ela veio dele. Mas não é nada disso. A língua nasceu com a mulher, que ficava mais tempo em grupo, cuidando da prole. O homem, desbravador, saía para caçar, enquanto a mulher, em regra, permanecia num determinado local. Elas descobriram e dominaram essa serpente, criaram as palavras e nos ensinaram. No entanto, como o homem oprimiu e dominou, sua versão prevaleceu. Talvez a escrita seja uma invenção masculina. A fala se expande, é fluida, permite a confluência, é mais dinâmica, mais feminina. A escrita, registro, é o aprisionamento da oralidade.
- O fruto proibido representa a língua, então.
- Sim, é isso: o fruto proibido é a palavra; não é o que entra na boca, mas o que dela sai. Deus, que no princípio agia e falava, hoje está quieto: sentado, assiste ao mundo e a suas personagens. E junto à língua, nasceu a fé: criar e crer são inseparáveis. Ao mundo dado, natural, acrescenta-se - com o nascimento da comunicação - o mundo criado, construído, imaginado pelo Homem. Esse mundo exige, como pressuposto de sua existência, que se acredite nele, porque é um mundo narrado; e no fim tudo é narrado. O Homem se torna eterno, na medida em que suas idéias se tornam invulneráveis ao tempo e ao espaço; elas atravessam, por meio do discurso, as gerações. As idéias passam a durar mais que o homem, ou seja, a linguagem é o principal, primeiro, instrumento metafísico, pois faz com que as narrativas possam ir além da vida do indivíduo. Aí está a árvore do conhecimento. O Homem erige sua realidade com as palavras. O mundo natural - imagem, som, cheiro, matéria bruta - ao ser transformado em signos humanos permite sua apropriação e controle pelo homem, que o constrói e reconstrói como deseja, ou pensa que deseja.
- Gostei disso: a língua como o principal instrumento metafísico. Na verdade, tomamos as idéias, conteúdo, como fundamento da metafísica, mas a forma por si só é transcendente.
- Exatamente. E o capítulo de Gênesis que trata da Torre de Babel ratifica a importância da língua. Lá se diz mais ou menos que os homens decidiram edificar uma cidade e uma torre cujo cume tocasse os céus, e que se unissem sob um nome, para que não fossem espalhados sobre toda a terra. Deus foi ver a tal construção e constatou que os homens unidos (com “uma mesma língua”) tornaram-se totalmente poderosos, capazes de realizar o que quiserem. Diante disso, resolveu descer e confundir a língua, para que não houvesse acordo, espalhando-os, fragmentando o poder. Muitas interpretações podem ser dadas a esse segmento mas, seguindo o meu discurso, o trecho pode ser lido como uma demonstração de que o poder advém da língua, da comunicação.
- Sempre interpretei como pura megalomania do homem.
- Sim, é uma interpretação comum. No entanto, parece claro que a princípio os homens se uniram para construir “uma cidade e uma torre cujo cume tocasse os céus” (demonstração de força), e enquanto estiveram de acordo nada poderia retê-los (o homem aí reconhece o poder em si mesmo). Contudo, em seguida, a concentração gerou problemas, discordância, e a solução encontrada foi espalhar a gente pela face da terra. Note que a discórdia é representada justamente pela confusão das línguas, e que se aponta deus como causador da discórdia, diante da dificuldade de o homem assumir sua responsabilidade, o ônus de sua liberdade. Não é deus que espalha o homem, mas o próprio homem que se afasta, formando grupos, inventando diferenças.
- Por mais incrível que possa parecer (e talvez quanto mais incrível mais crível seja), admito: somos personagens! Pessoa tem razão: “somos contos contando contos”!