Há
muita gente falando de crise de representatividade: “eles - membros
do Legislativo e do Executivo - não nos representam.” Essa
dicotomia entre “eles e nós”, além de antiga, é bem
abrangente, não se restringindo ao Brasil. E parece que as pessoas
ignoram que, apesar de todos os discursos otimistas, o Estado - que
já foi absolutista - não costuma garantir o bem comum, se o povo
nada faz para isso.
Portanto,
não dá para falar apenas da crise de representatividade, deixando
de lado a cidadania, que diz respeito aos direitos políticos
que permitem ao cidadão - habitante da cidade (do latim civitas)
- intervir na direção do Estado, participando na formação do
governo e em sua gestão.
Assim,
penso que a questão a ser colocada é mais profunda e ampla,
passando pela crise política: a cidadania vem sendo fragmentada e
reduzida, para limitar-se aos papéis individualistas de consumidores
e condôminos.
Vivemos
num modelo que restringe as funções do Estado, por meio da
privatização dos serviços. Aí estão os planos de saúde, as
escolas particulares e também os condomínios, espaços restritos,
nos quais a entrada, assim como a permanência, dependem de dinheiro.
Se
antes educação e saúde eram reivindicações de quase todos a
serem feitas diretamente ao Estado, hoje boa parte do povo mantém um
discurso de cobrança (que é legítimo, sem dúvida), mas, na
prática, paga religiosamente planos de saúde e reza pra não
precisar de tratamento público; age do mesmo modo em relação ao
ensino, só frequentando as instituições públicas de
excelência.
Quanto
aos condomínios, não dá pra negar que eles representam, na
realidade, a privatização da segurança: estranhos não podem se
aproximar dos lares - há um porteiro vigiando a entrada, com
câmeras, cercas, alarmes etc.
Nesse
contexto, se algo não vai bem na prestação dos serviços
“públicos”, a solução é individualista. Em vez de se unirem
para pressionar o governo - fundamentando-se na Constituição, nos
direitos políticos -, as pessoas reclamam com as empresas e, se não
funciona (o que é muito comum, como sabemos), vão ao Judiciário,
com base no código de defesa do consumidor e no código civil. Fica
claro o deslocamento das questões públicas coletivas para a esfera
privada; não é mais um problema nosso: cada um que anote os números
de protocolo e procure um advogado.
Isso
é consequência da redução do papel do Estado, um projeto antigo
defendido pelos (neo)liberalistas. Bom, é verdade que depois da
crise de 2008/2009, na qual o Estado "socorreu" os Bancos,
eles andam meio calados; afinal, pega mal falar de não intervenção
na economia depois de usar dinheiro público para "resgatar"
instituições financeiras.
Mas,
com ou sem discurso, a prática é (neo)liberal: a globalização e o
fortalecimento do poder econômico supranacional enfraquecem a
estrutura política local, ou seja, o Estado, limitado a um
território, se vê acuado por exigências de grandes empresas que
têm a liberdade de transitar pelo mundo e barganhar com os governos
a redução das barreiras para sua entrada e permanência. Elas pedem
(impõe) menos proteção aos trabalhadores, menos impostos, e acabam
sendo atendidas aqui ou ali, onde ficarão enquanto lhes interessar -
até o dia em que decidirem partir para melhores oportunidades de
exploração, deixando pra trás desemprego e lixo.
Então,
se há privatização dos serviços e redução do Estado, com a
individualização das demandas, como explicar nossas recentes
manifestações?
Bom,
não dá pra negar a existência de uma insatisfação popular
antiga, que se dirige contra muitas coisas, sendo certo que a maioria
das reivindicações levantadas são legítimas. Todavia, penso que
os atos tiveram ampla adesão por dois motivos - não únicos mas, a
meu ver, cruciais para a união: o transporte público e a violência
policial.
Por
que esses dois pontos? O transporte público, porque a solução
individualista (compra de veículo) se converte em causa do problema
- agravado com o aumento do poder aquisitivo -, gerando mais
engarrafamento. Além disso, grande parte da população - até pela
questão da idade exigida para dirigir (estudantes, por exemplo) - é
mesmo obrigada a usar os transportes coletivos, os quais são, em
regra, ruins e caros. Ou seja, é um dos poucos serviços onde as
classes ainda se encontram.
Quanto
ao segundo ponto - violência policial - entendo que foi a principal
causa do aumento de pessoas nas ruas; pelo que vi, a grande adesão
ocorreu depois da exibição das imagens da repressão policial ao
movimento. A truculência da PM - muito comum mas restrita às áreas
mais pobres - alcançou outros espaços e pessoas, fomentando o
desejo de sair de casa e agir.
Minha
intenção não é invalidar as manifestações, tampouco
segmentá-las. Quero, na verdade, compreendê-las, vê-las ampliadas
e mais eficazes; desejo que a maioria das pessoas - que esteve
apática (apolítica e até antipolítica) por tanto tempo - se una e
lute por boas causas, como alguns grupos já vem fazendo há mais
tempo.
É
importante estabelecer objetivos claros, de modo que as pessoas
entendam por que estão no movimento; caso contrário, vira massa de
manobra. A princípio, acho muito bons os dois pontos que levaram as
pessoas às ruas, e sou a favor da reforma política, com a
realização do plebiscito.
Todavia,
é necessário entender que as causas dos nossos problemas são
mais profundas, sendo reducionista o discurso que trata apenas da
crise de representatividade. As manifestações são ótimas, mas não
bastam; precisamos nos libertar da crise de cidadania e persistir na
política: somos mais que consumidores - já passou da hora de sair
dos shoppings para ganhar não só as ruas mas também o Estado,
tornando-o instrumento do povo contra as pressões do poder
econômico.
Concordo plenamente com vc que, pra implementar as tais mudanças tão almejadas, a sociedade precisa interagir na vida política de forma mais efetiva.
ResponderExcluirAfinal, políticos não vêm de Marte. Se estão à frente do Governos foi porque alguém os elegeu. Talvez nos falte cultura/educação formal voltada para consciência cidadã, possivelmente reflexo de anos regime ditatorial a que o país foi submetido...
Agora no ponto que se refere sobre a judicialização de políticas públicas, afirmar que não posso demonstrar minha indignação com o caótico sistema público de saúde ou que seria complacente com o q está aí, pq me mato de trabalhar pra ter acesso a um plano de saúde privado (que nem é lá estas coisas) já é um pouco demais não?
É um tema que, sem sombra de dúvidas, dá margem a uma série de discussões, mas os protestos surgiram exatamente pq a grande maioria da população ansiava por expressar sua insatisfação com a atual conjuntura.
Concordo que tem ser mais do que empunhar um cartaz e ganhar as ruas reivindicando um sem número de coisas.
Não dá pra elaborar um "manual de boas práticas do manifestante", mas há de convir que já foi um bom começo p cada um entender sua parcela de responsabilidade e que urna não é privada... sem trocadilho!
Há muitos motivos para explicar a falta de interesse das pessoas em relação à política: ditadura que durou 2 décadas, educação ruim (preocupação em formar especialistas para o mercado e não cidadãos), consumismo etc. O fato é que a maioria não se interessa - e não é só gente com menos grana, não; a classe média tbm.
ResponderExcluirNão disse em nenhum momento que as pessoas não podem se indignar com os sistemas; pelo contrário, afirmei ser legítima a cobrança de qq um. O que deixei claro é o deslocamento das questões do campo político coletivo para a esfera privada individualista.
É claro que é um bom começo. Mas não vai adiantar muito se as pessoas não persistirem ou se apoiarem mudanças sem pensar no que elas significam. Não se trata de criar manuais, mas de refletir sobre o que está pedindo. Concordo que é uma grande oportunidade para as pessoas despertarem para a cidadania, para sua parcela de responsabilidade, mas acho que muita gente estava só gritando, como quem xinga o juiz da arquibancada e volta pra casa, colocando a culpa da derrota na arbitragem. Pra ganhar temos que participar do jogo - exigir nossa participação, não só nas urnas, mas o tempo todo.