quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Eles não ligam pra gente


Minha intenção neste texto é destacar alguns pontos da bela e poderosa música “They don´t care about us” (Michael Jackson, 1995), seus videoclipes e algumas curiosidades. Mais uma vez me impressionei com trechos que ouvi muitas vezes sem prestar atenção - o que é comum em letras de música, já que a melodia costuma tirar a atenção da poesia (e no caso dos videoclipes do astro, ainda há a dança, a fotografia etc., que ofuscam ainda mais a letra, a mensagem).

A música fala de racismo, autoritarismo, violência - especialmente a policial -, política, consumismo, desigualdade, e até do que atualmente chamam de pós-verdade. E é muito atual, encaixa-se perfeitamente à nossa realidade. Em 1995, Michael Jackson cantou sobre a ascensão da violência, denunciando uma situação já crítica, mas que ao longo dos anos ainda piorou e, infelizmente, a resposta a todo discurso de medo e incertezas tem sido mais repressão e violência - e não as saídas indicadas pelo Rei do Pop na sua poesia.

Os versos são diretos, não usam muitas metáforas, dizem logo a que vieram: denunciar o descaso dos poderosos em relação aos marginalizados: they don´t care about us - eles não ligam para a gente (nós), frase que em português pode se desdobrar para o sentido de que eles não ligam pra gente, eles não se importam com pessoas, seres humanos. Descreve claramente como o Estado foi reduzido ao seu papel repressor, abandonando as políticas públicas mais ativas, inclusive (e principalmente) as de promoção de igualdade. E o mais incrível é que ele avisou há mais de 20 anos sobre os riscos e consequências do abandono e marginalização.

A letra já começa falando de “cabeça raspada”, em clara alusão aos skinheads, mas também ao militarismo, porque os soldados também tem o cabelo assim, rente. Ainda na primeira estrofe, acusa o aumento da maldade, além de ressaltar a confusão dos discursos, denunciando um afastamento dos fatos (verdade), em que todos justificam seus atos (inclusive violentos) da maneira que quiserem, criando suas versões, daí a pós-verdade.

E sobre a verdade - prestando bastante atenção ao início dos videoclipes -, ouvimos, no meio do coro infantil que canta o refrão, a voz de menina que se ergue pra dizer: “não importa o que as pessoas digam, a verdade está com a gente.” Num mundo cheio de medo e especulações - como é dito na letra - uma criança defende o seu ponto de vista, que é o da mensagem da música: eles realmente não ligam pra gente. Porque se ligassem pelo menos um pouco, não haveria tanta discriminação e violência, como a letra destaca.

É uma poesia de cunho crítico e politizada: menciona duas figuras históricas, Roosevelt e Martin Luther King, dizendo que se eles tivessem vivos, não deixariam esses absurdos acontecerem. A crítica às políticas neoliberais de redução do Estado não poderia ser mais clara, tendo em vista que o democrata Franklin Delano Roosevelt (FRD) promoveu políticas públicas de inclusão, usando ativamente o Estado de caráter interventor, para atenuar a devastação causada pela crise do capitalismo de 1929. Luther King era um pastor protestante que se tornou um dos líderes do movimento dos direitos civis dos negros nos EUA, com uma campanha de não-violência.

Michael Jackson denuncia o descaso dos poderosos, com a amputação do braço protetor do Estado, que atualmente segue apenas com o braço hipertrofiado da repressão, o qual se volta com mais força e frequência contra aos historicamente marginalizados, os “invisíveis” e sem direitos, como diz a letra. E pra quem acha que a divisão da sociedade e a polarização são fenômenos recentes, taí uma música de 1995 que deixa tudo bem claro. Antes, em 1980, Bob Marley já falava desta divisão quando lançou "We and them". E pra citar um exemplo de lucidez nacional, em 1997 veio à luz o álbum "Sobrevivendo no inferno", dos Racionais MC´s, que até no título expõe a divisão social, e nas músicas descreve uma realidade dura, marcada pela desigualdade e segregação, como nos versos de “Diário de um detento": “Cadeia? Guarda o que sistema não quis/ Esconde o que a novela não diz.”

A divisão social é clara há muito tempo; a polarização ficou mais evidenciada quando a extrema direita saiu do armário empurrada pelo discurso de medo e pela decadência da classe média, também ferida pelo neoliberalismo. Alguns dos fundamentos do conceito de classe média são a maior estabilidade do grupo e seu poder aquisitivo razoável, a ponto de suprir com algum conforto as necessidades básicas (sobrevivência) e ainda ter um excedente para atividades culturais e de lazer.


A redução do Estado - com a privatização da educação, da saúde e até da segurança, além do corte de direitos -  tem esgotado os recursos excedentes: daí resta trabalhar para sobreviver, pra pagar plano de saúde, escola particular, sistema de vigilância em condomínios gradeados, cujos apartamentos (moradia), inflacionados pela especulação, vêm com os juros altos do financiamento. Compras a prazo, cartão de crédito, dívidas: com juros que engordam os lucros dos bancos. O básico agora tem preço, e é caro. O mercado, desregulamentado, cada vez mais livre pra explorar e descartar, não garante estabilidade. A ideologia dominante cega por imersão e direciona o medo - e o ódio - para mais pobres, para os imigrantes (retirantes), tachando de inimigos as maiores vítimas do próprio sistema, aqueles que sofrem duplamente: com a omissão (abandono) e a repressão (violência) do poder público.


E eles ("they") lucram no processo inteiro: menos Estado, menos impostos; menos direitos trabalhistas, menos gastos, menos deveres legais em relação a pessoas; menos serviços públicos gratuitos, mais espaço pra "empreender" e vender até o mínimo essencial; mais dívidas, mais juros; mais crimes (e a elite define que tipo de atividades e substâncias são ilegais), mais armas, produzidas em países desenvolvidos; mais prisões, mais trabalho precarizado e expansão dos negócios com a privatização das cadeias; os jornais reforçam o discurso de medo nos artigos e reportagens ao mesmo tempo que - reféns das verbas de publicidade - anunciam unidades em condomínios clubes-fortalezas, empréstimos,  seguros pra tudo (os riscos são enormes); carros novos condicionados ao pagamento de "suaves" prestações.

O sistema cria guerras e vende as armas (pros dois lados); sucateia o transporte público e vende carros e motos, "soluções" individualistas que engrossam os engarrafamentos, onde os potentes veículos se travam pelo excesso: encarcerados nos carros parados e por isso mais vulneráveis, cidadãos de bem temem ladrões violentos e armados enquanto alimentam, acordados, o sonho da arma própria e legalizada, pra poder "empreender" em sua própria segurança pessoal e patrimonial. Mais consumo e privatização (até do conflito armado), mais lucros.

Pode ser que o mesmo conglomerado empresarial venda armas pro ladrão e pro bom cidadão, além de seguros, blindagem, alarmes, filmes de ação com heróis armados (entretenimento motivacional de guerra que banaliza a violência: cortas as cenas de sexo, mas mostra com detalhes pessoas morrendo metralhadas; censura gemidos de prazer e corpos nus, mas não o som dos disparos e os cadáveres estraçalhados), e pode ganhar uma grana até com o serviço de atendimento de urgência - SAMU (também privatizado), se sobrarem feridos, e também com os remédios de um eventual tratamento médico. 


Além dos versos fortes, os videoclipes de "They don´t care about us" também transgridem e protestam. Neles, o ícone do entretenimento canta e expõe verdades inconvenientes e como cidadão da chamada “Terra da liberdade” grita por liberdade - exige o cumprimento da promessa -, expondo o real pesadelo que na prática contrapõe ao “sonho americano”. Atrelados ao avanço das políticas neoliberais vieram a maior concentração de renda e o aumento da desigualdade.


Os cenários dos videoclipes não poderiam ser mais adequados à mensagem da letra: dirigida por ninguém menos que Spike Lee, a versão filmada no Brasil foi gravada numa favela (Santa Marta, zona sul do Rio) e no Pelourinho (Salvador, Bahia). Já na versão realizada nos EUA, Michael canta e dança dentro de um presídio, encarcerado. A prisão tem sido uma das principais respostas repressivas do Estado, cada vez mais “policial” e menos preocupado com o “bem-estar social”.[1]

E quando a resposta não é criminalização e prisão, pode ser fatal: o Estado mata, como aconteceu com as crianças vitimadas este ano (e nos anteriores também) e com o homem desarmado e acompanhado da família (inclusive uma criança de 7 anos) que foi fuzilado com mais de 80 tiros por soldados do exército. [2] Preciso mencionar a cor do homem executado? E a cor e classe social das crianças assassinadas? Preciso dizer? Preciso relembrar o massacre do Carandiru, em que a prisão não foi suficiente, e 111 homens encarcerados foram mortos?

Escolher o Brasil, país marcado pela desigualdade, e fazer uma parceria com o Olodum tornam a obra ainda mais fantástica. Ele veio cantar e dançar com os excluídos o arranjo é lotado de percussão brasileira, numa pegada meio Rap e Hip hop, sons da periferia. O músico estava a frente de seu tempo: numa época que ainda não se falava muito sobre lugar de fala e representatividade, ele deu seu recado da melhor forma possível. Não bastou fazer uma música de protesto, ele veio aqui, contou com o talento do Olodum, mostrou a favela, a periferia dentro de um periférico país da América Latina, onde o “sonho americano” só passa na TV e às vezes falta tempo pra assistir.



A letra anuncia o caos, a loucura, e expõe os pesadelos bastante reais de muitos, pesadelos que não deixam de ser o preço, o efeito colateral, dos sonhos de alguns. E a obra incomodou: criaram polêmicas em torno da letra, há rumores de que autoridades brasileiras tentaram impedir a gravação para não expor a pobreza e as falhas do governo, além das críticas à negociação de Spike Lee com o chefe do tráfico à época. [3] Isto sem falar na restrição à exibição do clipe na prisão, que só podia ser veiculado depois das 21 horas, sob a alegação de que expunha violência. Sim, há cenas reais de violência, porém não mais que qualquer telejornal ou filme de ação. Ao que parece muita gente queria ver Michael cantar e dançar, mas com temas leves e frívolos, não com um protesto claro, direto e cheio de verdades geralmente negadas, caladas, reprimidas, jogadas pra margem. O incômodo e reações me parecem exagerados: a solução indicada na canção não é uma revolução sangrenta: ao citar Roosevelt e M. Luther King, o compositor enaltece o capitalismo superficialmente brando do Estado de bem-estar social e as vias pacíficas para chegar (voltar) a ele. 



A música e os videoclipes têm muitos aspectos que merecem destaque - como a cena de abertura do clipe da prisão, a mulher brasileira dizendo “Michael, eles não ligam pra gente” logo no início, o barulho de disparo de arma de fogo no meio da música, as mulheres que pra abraçar o astro furam o cordão de isolamento da polícia, as imagens que destacam a bateria do Olodum e seus componentes -, mas quero concluir chamando a atenção pros gritos do cantor. Michael costumava soltar uns gritos em suas músicas, o que se tornou uma de suas marcas. No entanto, em “They don´t care about us”, seus berros são bem diferentes dos demais: são mais ásperos, graves, caóticos, parecem expressar raiva e desespero; e a música se encerra numa espécie de urro de dor. A situação vem se agravando e os sentimentos predominantes ainda são os mesmos mais de duas décadas depois. “Eles não ligam pra gente”.

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“Que país é esse?” É um “Faroeste caboclo”, uma odisseia brasileira

Não tenho a pretensão de fazer uma análise profunda da letra de “Faroeste caboclo”, música composta por Renato Russo em 1979 e lançada no álbum da Legião Urbana “Que país é este” em 1987. A letra da canção é comprida, sem refrões ou repetições, e conta a incrível história de João de Santo Cristo, de uma forma bem interessante.

Minha intenção neste texto é apenas destacar alguns pontos da narrativa desta canção, trechos que ouvi muitas vezes sem prestar atenção - o que é comum em letras de música, já que a melodia costuma tirar a atenção da poesia -, mas que agora me tocam demais, até porque vão além da saga da personagem ao mostrar fatos históricos e que fazem parte da vida de muita gente. É claro que não vou recontar a história toda, o que é desnecessário ao meu propósito e tornaria o texto prolixo e entediante; para quem deseja conhecer a história completa, sugiro ouvir a música e, principalmente, ler o texto, a letra.

A odisseia do título não é à toa: é uma referência direta ao poema épico da Grécia antiga atribuído a Homero, que narra o retorno de Odisseu à sua terra natal e sua amada, Penélope, depois de lutar na guerra de Troia. João de Santo Cristo é nosso Odisseu, cuja saga da vida é contada do início ao fim em “Faroeste cabloco”, com viagens, retornos e um grande amor. É claro que há mil diferenças entre as narrativas de Renato Russo e Homero, mas as duas, na essência, contam em versos a história (ou parte dela) dos protagonistas, e isto muito é fantástico, poético e merece destaque.

Na minha visão, João de Santo Cristo é uma personagem que em sua saga individual mostra o que acontece com muitas pessoas no Brasil, ou seja, é um indivíduo que representa muito bem uma coletividade. Da mesma forma, sua história pessoal, individual, também expõe marcas da História do país.

Pra começar, é importante saber as origens e algumas características essenciais de João de Santo Cristo. E o interessante - e digno de elogio - é que a letra não diz tudo de forma direta, o que deixa espaço pra interpretação e exige uma atenção maior pra perceber certos aspectos, alguns muito relevantes.

A meu ver, se a letra fosse direta e prosaica, descreveria o herói assim: João era negro, sagaz (“até o professor com ele aprendeu”), embrutecido, sensível, nascido numa família pobre (talvez miserável) em alguma cidade do sertão da Bahia, revoltado (com causa), só, forte, corajoso (“temido e destemido”), discriminado por “sua classe e sua cor”, bom e digno (respeitava uma ética bastante lógica dentro do contexto de sua vida), não ligava pra religião institucionalizada (“ia pra igreja só pra roubar o dinheiro”) e idealista (num sentido meio romântico e de alguém que, apesar de tudo, ainda nutria esperanças).

Dito isto, passo a justificar minha descrição simplificada mencionando trechos canção (alguns eu já coloquei acima, entre aspas).

A letra diz que ele “deixou pra trás todo o marasmo da fazenda” e, em sua primeira viagem, “foi direto a Salvador”, capital do estado situada no litoral, destino mais próximo e barato para aqueles que querem sair do interior do estado pra tentar vida nova. Era forte, porque se virava e seguia em frente, apesar de tudo. Revoltado e embrutecido, pela vida difícil e violências que sofreu, a começar pelo assassinato do pai, ainda na infância, e o reformatório, aos quinze, “onde aumentou seu ódio diante de tanto terror”.

Era também sensível, capaz de admirar a beleza de Brasília enfeitada com luzes de natal e de amar Maria Lúcia a ponto de se arrepender “de todos os seus pecados”, prometer a ela o seu coração e voltar a ser carpinteiro, abrindo mão da grana alta dos crimes. Este amor, com promessa de eternidade e desejo formar família, assim como seu desejo de falar pro presidente “pra ajudar toda essa gente que só faz sofrer” mostram seu idealismo, sua esperança e sua bondade. Sua dignidade e ética aparecem em vários de seus atos: mesmo colocando em risco sua vida, João recusa a proposta lucrativa e indecorosa feita por “um senhor de alta classe”; a decisão de não usar sua arma contra Jeremias antes que o desafeto começasse a brigar; não atirar pelas costas; e até sua morte, santificada pelo povo.

E este João, pobre, forte, negro, do sertão do Nordeste, retirante que acaba indo parar numa periferia da capital, sofreu desde cedo e ao longo da vida duros golpes do braço violento, repressor e discriminatório do Estado: o soldado que matou seu pai, suas passagens pelo reformatório e pela prisão, além da omissão da polícia, que nada fez pra impedir o duelo noticiado com antecedência na TV (talvez porque a morte daqueles marginais fosse mesmo desejada pelas autoridades e também um entretenimento para os cidadãos de bem, para as pessoas que não estão à margem). E parece ter se beneficiado muito pouco do braço protetor do Estado (talvez só a escola pública em sua infância). Esta cruel oposição entre abandono e perseguição, omissão e punição, exposta na narrativa da canção, representa a realidade de muitas pessoas no nosso país.

Em sua trajetória individual, o herói conta um pouco da História do Brasil, que foi o último país da América a abolir a escravidão e, quando o fez, largou os ex-escravizados à própria sorte, sem quebrar as velhas e pesadas correntes de racismo, discriminação e pobreza, presentes na vida sofrida de João; que inventou sua Capital e depois a ergueu no planalto central com o suor de retirantes explorados, que foram tentar melhorar de vida em Brasília e acabaram relegados às periferias, ao “Quarto de despejo” (como dizia Maria Carolina de Jesus), às cidades-satélites, como as citadas na letra (Taguatinga e Ceilândia); que foi submetido a uma ditadura militar com apoio da elite, parceria que é exposta no trecho em que Santo Cristo recebe a “proposta indecorosa” do senhor rico que vai até sua casa para tentar encomendar dele um atentado terrorista - colocar bomba em banca de jornal e colégio -, que recusa e ainda diz “não protejo general de dez estrelas/ que fica atrás da mesa com o cu na mão” (documentos oficiais provam que a direita paramilitar ligada à linha dura do regime autoritário cometeu atentados terroristas que, atribuídos erroneamente a grupos armados da esquerda, serviram de pretexto para recrudescer a ditadura).[1]

Há também na canção muitas referências religiosas, sobretudo cristãs, que fazem parte da nossa cultura. João de Santo Cristo tem um nome religioso em todos os termos e sua trajetória - cheia de injustiças, impasses, dores e provações - remete às vidas de sacrifícios dos santos, posto ao qual o herói, no final, é alçado pelo povo. Como José, pai de Jesus, João era carpinteiro; e como Cristo, perdoou seu algoz e sofreu seu martírio, no fim transformado num espetáculo televisionado (reality show de um duelo de faroeste tropical e marginal), sobre o qual ele - “sentindo o sangue na garganta” e após olhar “pras câmeras” - arremata: “se a via crucis virou circo, estou aqui”. Este belo verso - talvez o mais fantástico da letra - tem uma profundidade abismal: expõe a bestificação contraposta à beatificação de João, assim como a profanação televisiva do seu sacrifício sagrado. Este ato, e a interpretação que cada classe social fez dele, revela nossa polarização, bastante clara e nada recente. O povo viu de perto, sentiu e teve tanta fé que o transformou em santo; a elite, à distância, nem acreditou:

“E o povo declarava que João de Santo Cristo
Era santo porque sabia morrer
E a alta burguesia da cidade
Não acreditou na história que eles viram na TV”

“Faroeste caboclo” talvez seja uma resposta à música “Que país é esse?” (ambas lançadas no meu álbum): um país com soldados que matam pais de família; um país com muita desigualdade e pobreza; um país que oferece pouca educação, mas muita punição, especialmente aos mais pobres; um país com muito racismo e discriminação; um país com gente de “alta classe” que tenta - por covardia e medo de meter a mão diretamente no sangue - corromper os mais pobres a praticar atos cruéis em troca de dinheiro.

O curioso e até estranho é que, no campo da política, muitas pessoas de direita (até da extrema) se apropriaram da música “Que paz é esse?” como um hino raivoso contra “tudo isso que está aí”, frase que a partir das manifestações de 2013 e, em seguida, durante a operação Lava Jato (lançada no início de 2014) e o golpe que derrubou a Dilma (instaurado no final de 2015), era proferida contra especialmente contra o PT (tachado por eles de partido corrupto como se fosse o único), e também abrangia um sentido de insatisfação geral com a política, com nuances antipolíticas fascistoides, com ostentação em suas manifestações de alguns cartazes pedindo a volta da ditadura.

Penso que a apropriação de “Que país é esse?” pela direita é estranha e incoerente pelo teor da própria letra da música, para não falar no Renato Russo e no conjunto de sua obra. Tudo - o compositor, o contexto da criação e a letra - contradiz as ideologias da maioria da direita.

Talvez eles não entendam o caráter de crítica ou só prestem atenção ao refrão, e não nos versos que mencionam: que “ninguém respeita a Constituição” (base normativa dos direitos humanos, bastante criticados por parte da direita); “Araguaia-ia-ia” (onde ocorreu uma guerrilha durante a ditadura); “tudo em paz” (expressão carregada de ironia ao referir-se à baixada fluminense, Araguaia e outros lugares do país); “o sangue anda solto/ Manchando os papéis/ Documentos fiéis/ Ao descanso do patrão” (o empresário empregador - tão defendido e até vitimizado no discurso de boa parte da direita - não parece um cidadão de bem nestes versos); “Vamos faturar um milhão/ Quando vendermos todas as almas/ Dos nossos índios num leilão” (talvez eles entendam estes versos não como uma crítica, mas como proposta de um negócio lucrativo, pois votaram num presidente que ataca as reservas indígenas).

Além disso, a música foi criada em 1978 - antes do PT, fundado em 1980 - e ao falar em “sujeira” no Senado parecia se referir ao regime vigente à época, a ditadura militar (defendida por parte da direita, inclusive pelo atual presidente), que, inclusive, censurou a canção, em virtude do seu conteúdo questionador. Por tudo isso, fico realmente perplexo quando pessoas de direita gritam “que país é esse”. Não é que eu queira reivindicar a música para a esquerda ou censurar o uso pela direita (defendo a liberdade, cada um canta o que quiser), mas não tenho dúvida de que é um paradoxo; e torço, sinceramente, para que ouçam a letra e possam se transformar, nem que seja pra abraçar, pelo menos, o caráter de indagação, deixando pra trás suas certezas rígidas e mortas; nem que seja para considerar, por um breve momento, que “Faroeste caboclo” pode ser uma resposta interessante para “Que país é esse?; nem que seja para desconfiar que existe um monte de gente real muito parecida com João de Santo Cristo.

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Nota:
[1] https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/02/politica/1538488463_222527.html


                        

sábado, 5 de outubro de 2019

Aquarius: a cidade-mulher e o câncer imobiliário (relação com a trilogia)





Aquarius (2016), do cineasta Kleber Mendonça Filho, narra o conflito entre a jornalista aposentada Clara (Sônia Braga) e a construtora que pretende demolir o edifício que dá nome ao longa para erguer um arranha-céu. Moradora antiga do prédio ameaçado, a protagonista é a única que se recusou a vender seu apartamento à empresa. Trata-se do segundo longa da trilogia que se iniciou em 2013 com O som ao redor e terminou em 2019 com Bacurau, havendo forte ligação entre os filmes, como será demonstrado adiante. 

Clara é uma representação humana da cidade, com suas histórias, estigmas, aspectos naturais e construções; ela e Recife misturam-se e, neste processo, não ocorre uma reificação da moradora, mas uma humanização da cidade, que se destaca como local onde pessoas diferentes tentam (sobre)viver. O filme é um “zoom” em uma destas pessoas: uma mulher arretada, capaz de abraçar as novidades sem negar seu passado e suas cicatrizes. 

No entanto, há uma cisão evidente entre Clara e Recife: enquanto a mulher consegue conciliar harmonicamente passado e presente, a cidade é atacada por empreiteiras que destroem indiscriminadamente edifícios históricos para construir prédios grotescos, como ninhos de cupim. 

"Aquarius" - prédio que integra o corpo de Recife – é atacado pela construtora, da mesma forma que Clara enfrentou um câncer, doença em que as células se multiplicam descontroladamente. As construções de uma cidade, como as células num corpo, devem funcionar em harmonia, para não comprometer o organismo como um todo. Novos prédios são importantes e necessários, mas a atuação das empresas não deve ser desordenada como um câncer; caso contrário, a história, as memórias e a própria identidade local estarão em risco. 

Muitos parecem temer apenas o poder excessivo do Estado, mas a iniciativa privada também pode oprimir. No neoliberalismo, o Estado - esvaziado da função de regular as atividades de grandes empresas - é inflado para vigiar, punir e varrer para longe os mais pobres, que geralmente só têm a posse do local onde moram. Por não serem proprietários como a personagem de classe média, são despejados para zonas cada vez mais afastadas. A música "Hoje", de Taiguara, tocada duas vezes no longa, tem tudo a ver com o enredo; lançada em 1969, expôs a violência da ditadura militar e agora se encaixa perfeitamente à tirania das grandes empresas.

Também é interessante mencionar a relação de Aquarius (2016) com os outros dois  longas que fazem parte da trilogia do cineasta Kleber Mendonça Filho: O som ao redor (2013) e Bacurau (2019). Na minha leitura do conjunto da obra, penso que o primeiro filme lançado trata do passado (resgate de uma violência sofrida anteriormente); o segundo (tema deste texto), aborda o presente (resistência individualizada/atomizada a uma agressão atual – ataque e contra-ataque simultâneos); e o terceiro - lançado neste ano -, vai ao futuro (resistência organizada coletivamente para lutar contra uma violência que ainda virá). 

Comparando Clara com os protagonistas dos outros dois filmes, percebe-se o isolamento da heroína de Aquarius: ela age de forma atomizada - não em grupo, como em O som ao redor, nem em comunidade (Bacurau) - e, a meu ver, isto ocorre justamente porque ela representa uma integrante da classe média, talvez até alguém que tenha "ascendido" de uma origem pobre, como sugere um diálogo racista no filme.

Neste contexto, Clara parece mostrar a solidão daqueles que, excepcionalmente, conseguiram algum espaço numa classe intermediária entre os mais pobres e as elites, sendo capazes de lutar - de forma isolada - apenas por seu restrito espaço individual (apartamento/prédio/suas memórias afetivas/história pessoal e familiar), sem enxergar e sequer arranhar o sistema, até porque a jornalista aposentada não deixa de ser uma “vencedora” - singular e rara - dentro da estrutura e de acordo com "discurso de meritocracia” (falacioso num país onde a desigualdade é histórica e imensa, com extrema desvantagem para a classe marginalizada). 

A classe média brasileira - mesmo a parcela mais progressista - parece não ter muita consciência de classe nem, muito menos, organização, tampouco identificação com os mais pobres; pelo contrário, tudo indica que se ilude com quaisquer “proximidades” com as elites, de modo a superestimar eventuais semelhanças com os mais ricos (acesso a viagens, modelos de carros, locais etc. dos mais ricos) e subestimar - ou até negar - possíveis afinidades com os menos favorecidos.

De qualquer forma, fica evidenciado nos três longas uma certa equivalência entre as pessoas mais pobres e as de classe média: ambas são (foram ou serão) atacadas pelas elites, donas do(s) poder(es) político e/ou econômico. Porém, de acordo com as três narrativas cinematográficas, é a organização coletiva (comunitária, criativa, a ser construída) que se destaca como melhor solução, frisando-se que esta se baseia na ação, e não nas meras reações que se veem nos dois primeiros filmes.

Por fim, voltando a “Aquarius”, certo é que, quando ações desenfreadas reduzem tudo - até a moradia - a produto, consumo e lucro, e o “novo” faz questão de matar o antigo, para usurpar totalmente seu espaço, arrancando suas raízes do solo do passado, as consequências atingem não só o morador do local, mas a todos, pois bloqueiam as memórias e interrompem a história, causando irreparável destruição. Como pragas. Como um câncer.
 
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PS. Outra leitura de Aquarius, relacionando-o ao golpe sofrido por Dilma/PT no link: https://ecosprosaicos.blogspot.com/2016/09/aquarius-poder-economico-e-impeachment.html

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Bacurau: uma cidade a um “17” de distância do “sul maravilha” (sem spoilers)



(Sem spoilers) Criado e dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, o filme Bacurau é sobre um “novo” oeste, ou melhor, um oeste de um futuro próximo, com muitas referências ao faroeste - western ou “nordestern” -, sem deixar de enveredar por outros gêneros, como suspense, ação, gore etc. “Definir é limitar” e o longa está além destas classificações mais comuns. 

Na tela, a protagonista é a cidade de Bacurau, onde observamos quem ali vive, convive e resiste. O lugarejo do longa não existe, mas a cidade de Barra/RN, sim, e é de lá que vieram muitas das pessoas que aparecem no filme. Por isso, e também pela escolha dos atores principais, a produção conseguiu respeitar a representatividade bem como os tons, os sotaques e a linguagem locais, apresentando personagens de todas as cores e orientações sexuais.

O filme consegue colocar Bacurau como personagem, coletivamente, o que o distingue das grandes produções enlatadas, que costumam dar destaque a heróis considerados individualmente. Com homens, mulheres e uma personagem pós-gênero, a trama não apresenta um herói (indivíduo). Pelo contrário, o tempo todo se evidencia a ação coletiva, deixando claro que a união do povoado é pedra fundamental e a argamassa da história que está sendo contada. De forma bela e original, o heroísmo é atribuído ao coletivo.

Logo no início do filme, vemos a estrada que leva ao povoado e há um “close” numa placa, onde se lê: “BACURAU, 17 KM, SE FOR, VÁ NA PAZ”. Surge a dúvida: Bacurau está à distância daqueles habitantes do “sul maravilha”[1] que apertaram nas urnas o número 17, do partido do atual presidente do Brasil? Ou foi só uma distância qualquer, sem outras intenções? 

O fato é que até no trailer a placa aparece em destaque e mostra um número que marcou a polarização política e regional nas eleições de 2018, não custando lembrar que o Nordeste foi a região que onde o presidente de extrema direita teve menos votos.[2] 

E a mensagem da placa tem muito a ver com o enredo do filme, que mostra a cisão entre as regiões do Brasil e os preconceitos daí decorrentes, assim como a relação dos brasileiros com estrangeiros. Tudo isso numa espécie de jogo (game) bastante simbólico. 

Filme espetacular. Recomendo demais.

PS. Para quem já assistiu, deixo aqui o link para minha análise mais completa sobre o filme: http://ecosprosaicos.blogspot.com/2019/10/lunga-vive-novo-oeste-na-caatinga-uma.html

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Notas e referências:

[1] “Sul maravilha” é uma expressão usada por Henfil em sua obra. Segundo Seixas (1996), “’sul-maravilha’ é apenas mencionado pelos personagens, sem ter existência real nas histórias: assim como o Brasil divulgado pela grande imprensa era apenas uma fantasia, para o homem do interior brasileiro as cidades grandes de Rio e São Paulo configuravam-se como um sonho distante e inalcançável ou então como uma realidade sufocante e esmagadora”. 


Trailer de Bacurau: https://youtu.be/1DPdE1MBcQc

Ficha técnica do filme:
Nome Original: Bacurau
Cor filmagem: Colorida
Origem: Brasil e França
Ano de produção: 2014
Gênero: ação / suspense / western
Duração: 132 min.
Direção: Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles

terça-feira, 1 de outubro de 2019

Lunga vive! Novo oeste na caatinga: uma leitura do filme Bacurau (contém spoilers)



[Contém spoilers, revelações da trama, inclusive do final] Criado e dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, o filme Bacurau é sobre um “novo” oeste, ou melhor, um oeste de um futuro próximo, "daqui a alguns anos" na frase que surge na tela, com muitas referências ao faroeste - western ou ainda “nordestern” -, sem deixar de enveredar por outros gêneros, como suspense e ação, que cito apenas a título de exemplo, porque a obra se expande e surpreende, ultrapassando limites e definições.

A narrativa cinematográfica ocorre e se fundamenta num oeste da caatinga, pernambucano, no sertão do Nordeste brasileiro, com tudo que isso implica: falta d`água (má distribuição de recursos em geral), força, cangaceiros, tecnologia, união, armas, politicagem, tiroteios, comunidade, política, pobreza, coragem, desigualdade e violência.

No início, mostra-se o caminhão-pipa seguindo por uma estrada e o velório de Carmelita (interpretada por Lia de Itamaracá), uma senhora negra importante no povoado de Bacurau, que é o grande protagonista da narrativa do filme. A região sofre com a falta d`água e durante toda a história as câmeras acompanham o ir e vir do caminhão-pipa que abastece a cidade. Esse ir e vir também representa a história de muitas das pessoas nascidas no povoado, que vão para outras cidades, estados e países (para estudar, se formar, arrumar empregos etc.), e depois retornam a Bacurau, pelos mais variados motivos.

E, em destaque, no caminho que leva ao povoado, vemos a placa envelhecida à beira da estrada, onde se lê: “Bacurau, 17 km, Se for, vá na paz”. A pergunta que fica é: estará Bacurau à distância daqueles que apertaram nas urnas o número “17”, o mesmo do partido do atual presidente do Brasil? Ou 17 km foi apenas uma distância qualquer exposta na placa? Não há como saber. Mas é interessante ressaltar que a placa aparece na tela e muitos dos telespectadores do filme estão nas regiões mais ao sul do Brasil e votaram “17”, de algum modo se afastando do Nordeste, que foi a região que menos deu votos ao candidato da extrema direita. São apenas suposições minhas na tentativa de interpretar a obra.

O filme é dividido em três atos bem marcados na história contada na tela.

As primeiras cenas mostram um caminhão-pipa, dirigido por Erivaldo (Rubens Santos), indo para Bacurau; um senhor que coloca uma semente - um psicotrópico que é dado como uma hóstia - na boca de Teresa (Bárbara Colen), neta da falecida que acabou de chegar (voltar) a sua cidade natal; o velório e o cortejo fúnebre da matriarca Carmelita, entre outras cenas que descrevem o cotidiano do povo de Bacurau. Percebemos, rapidamente, que a comunidade é bastante unida e toma decisões coletivamente, na praça, e vive bem desta maneira democrática, autônoma (em tudo que consegue) e auto-organizada, apesar das dificuldades.

Ou seja, o primeiro ato apresenta o(s) protagonista(s): a cidade e as pessoas que ali vivem, convivem e resistem. Personagens de todas as cores e orientações sexuais, é importante dizer, destacando que a produção contou com a participação de pessoas de povoados locais do sertão do Nordeste. Bacurau é fictícia, mas a cidade de Barra/RN[1] existe, no mapa e na realidade, e é de lá que vieram muitas das pessoas que aparecem no filme. Deste modo, e também pela escolha dos atores principais, a produção conseguiu respeitar a representatividade bem como os tons, os sotaques e a linguagem locais.


O segundo ato - cujo início se dá com a chegada de cavalos desgovernados a Bacurau - expõe o começo do conflito: para surpresa de seus habitantes, o povoado some do mapa, e chegam ali forasteiros das regiões Sudeste e Sul, com roupas coloridas e pilotando motos de trilha com a intenção de preparar o terreno para o “jogo” de sangue e morte que será disputado na cidade.
  
Não vou descrever tudo, é claro, mas chamo a atenção para o diálogo sobre o nome “Bacurau”, no qual uma de suas habitantes explica que o nome refere-se a um pássaro, e não a um passarinho, que é menor, respondendo à carioca invasora. E, no mesmo botequim, ouvindo a pergunta da turista sobre quem nasce em naquele lugar (´"Bacurauense?"), uma criança arremata, "É gente!". Também merecem realce os insistentes convites dos habitantes dali para os forasteiros conhecerem o museu, o que os “sudestinos” rejeitam, mas que poderia ajudá-los a perceber o que os esperava adiante.

Não dá pra deixar de mencionar o violeiro do lugarejo, que canta um repente para os forasteiros e os provoca, zomba mesmo - até chama São Paulo de paiol num verso -, e recusa a oferta de dinheiro, que representa perfeitamente o que muitos habitantes do Sudeste e do Sul entendem como forma de lidar com o Nordeste e seu povo. A mensagem é clara: o violeiro não quer grana, mas, sim, rir da cara desse povo arrogante e ridículo do “sul maravilha” (v. Henfil)[2].

É no segundo ato que a violência explode. Cenas de assassinatos, muitas armas, pessoas mortas, tiros no caminhão-pipa que vaza água pelos furos de bala. E se descobre que há um grupo de turistas assassinos que foi a Bacurau para caçar habitantes daquele povoado. Sim, caçadores de pessoas, seres humanos; barbárie pura e intensa, praticada por homens e mulheres brancos, de países supostamente civilizados, como Alemanha e EUA. A História é pródiga em registros de atos bárbaros cometidos por instituições e pessoas de países “civilizados”.

O grupo de estrangeiros pretende usar armas antigas (“vintage”) para promover a chacina dos habitantes de Bacurau e conta com a ajuda dos “sudestinos” motoqueiros, que acabam sendo executados pelos turistas caçadores, porque não são tão brancos e diferentes dos nordestinos, como imaginavam. Vale muito a pena o diálogo em que os sudestinos colaboracionistas são confrontados com a realidade de que, para os estrangeiros, são brasileiros, miscigenados, latinos, e foram apenas usados no jogo.

A “aventura” dos turistas estrangeiros é um jogo (“game”) de sangue e morte. Um “drone” interativo - em formato de disco voador, numa referência intencionalmente cômica - filma o povoado, os assassinatos, além de orientar os turistas participantes, que seguem regras e se submetem um sistema de pontuação para cada execução, na caça de pessoas.

Se do lado dos turistas “caçadores” há organização, planejamento, tecnologia e muitas armas; do lado da resistência de Bacurau, aparece Lunga (vivido por Silverio Pereira), uma espécie de cangaceira(o) pós-gênero futurista, uma guerreira “queer” ou “drag queen”, que é um(a) criminoso(a) procurado(a) pela polícia.

E por falar em polícia, é icônica a cena que mostra uma viatura policial enferrujada e crivada de balas, abandonada no mato com outras sucatas de carros. As personagens deixam claro que não há qualquer autoridade policial institucionalizada em Bacurau. É a própria comunidade que se organiza e se protege, diante do descaso do poder público.

Quando Lunga chega (volta, como muitas das personagens) a Bacurau - com cabelos longos e roupa estilosa - uma senhora pergunta algo mais ou menos assim: “mas que roupa é essa, menino?”. É um dos trechos engraçados do filme, que também tem outras cenas e tiradas bem-humoradas, aliviando um pouco a tensão e o suspense da trama. O filme apresenta muitas frases de efeito e encanta também pelos diálogos.

Apesar da importância de Lunga, a trama não indica uma heroína considerada individualmente. Na verdade, várias personagens se destacam e Bacurau é a principal delas, no aspecto coletivo, o que distingue a produção de outras, enlatadas, que costumam dar destaque a heróis individualmente representados. Com homens, mulheres e uma personagem pós-gênero, a trama de Bacurau evidencia a ação do povoado como um todo, deixando claro que a união é pedra fundamental e a argamassa da história que está sendo contada. De forma bela e original, o heroísmo é atribuído ao coletivo.  

Durante o filme as personagens fazem uso de uma sementinha, que é um psicotrópico, como já citado acima. Perguntado sobre o que tem a tal “droga”, o diretor Kleber Mendonça Filho disse que a semente contém “coragem, tesão e compaixão, coisas que não faltam a milhões de brasileiros.”[3]

Merece destaque a personagem de Tony Junior (representado por Thardelly Lima), prefeito politiqueiro, almofadinha, entreguista e, claro, detestado na comunidade de Bacurau. Tony trata livros como lixo, despejando-os de um caminhão no chão de terra batida, e envia ao povoado remédios psiquiátricos que deixam as pessoas “lesas”, como revelado à população local pela médica Domingas (Sônia Braga).

O filme ataca a politicagem e o entreguismo, mas não a política, uma vez que a comunidade é bastante politizada e seus cidadãos tomam decisões coletivamente, em reuniões na praça, com ampla participação popular, a indicar uma espécie de anarquismo bem-sucedido no sertão brasileiro, já que ali as instituições do Estado parecem não chegar para resolver os problemas, mas apenas para pedir (ou tentar comprar) votos e explorar, como se vê na cena que Tony arrasta para seu carro uma mulher, que é garota de programa, contra a vontade dela e de outras mulheres que se manifestam em defesa da pessoa reduzida a objeto pelo politiqueiro.

As mulheres do filme são fortes, guerreiras, assumem todo tipo de protagonismo, na resistência armada, no sexo, na força de existir e se impor. As grandes personagens da narrativa, além de Bacurau, são mulheres ou pessoas além do enquadramento binário de gênero, como a personagem Lunga, a cangaceira drag, reiterando que o heroísmo cabe ao coletivo.

Aí vem o terceiro ato, no qual o conflito final vem à tona. Bacurau já estava fora do mapa, sem acesso a internet e, após, sem energia elétrica, que é cortada. Uma criança é assassinada friamente. Um menino que portava apenas uma lanterna é executado e o turista assassino justifica-se afirmando que a criança parecia um adolescente armado. Qualquer semelhança com as crianças e adolescentes - em sua maioria afrodescentes e pobres - que estão sendo assassinados pela polícia nas favelas não pode ser coincidência. A vítima mais recente foi Ághata Felix, de 8 anos, assassinada no Complexo do Alemão, na Cidade do Rio de Janeiro/RJ [4].

É incrível a cena em que Domingas - depois de tentar salvar a vida de uma das turistas caçadoras, resgatada pelas pessoas que havia tentado matar - recebe o líder dos turistas assassinos com suco de caju, um prato típico local e ao som da canção “True”, da banda Spandau Ballet, cuja melodia leve, lenta e harmoniosa se choca com a tensão do encontro do assassino com a médica da comunidade, o encontro daquele que mata por prazer com aquela que salva vidas, e ela indaga, singela e profundamente, "Por que vocês estão estão fazendo isso?". Para mim, esta cena representa a forma cordial e amigável com a qual os brasileiros costumam receber os estrangeiros, inclusive os bárbaros que vêm aqui explorar e massacrar.

O mais curioso é que a letra de “True”, quando traduzida para o português, tem a muito ver com a narrativa cinematográfica. Os versos da música, “I bought a ticket to the world/But now I've come back again (…) With a thrill in my head and a pill on my tongue/Dissolve the nerves that have just begun”, numa tradução livre, significam: “Eu comprei uma passagem para o mundo/Mas agora estou de volta (…) Com uma emoção na minha cabeça e uma pílula em minha língua/Dissolvo o nervosismo que acabou de começar”. Ir pro mundo e voltar bem como colocar uma pílula (semente) na língua tem tudo a ver com a história narrada. Será que os diretores pensaram até nisso? Aparentemente, sim, pois não acredito em tanta coincidência.

Em seguida, o avanço dos assassinos e a resistência do povo de Bacurau, que se organiza e luta a partir de dois locais principais: a escola e o museu. Nada mais simbólico e belo. Os habitantes do povoado - juntos com Lunga, seu bando e Pacote - matam, em legítima defesa, os turristas sanguinários. E os estrangeiros são decapitados, da mesma forma que fizeram com Lampião, Maria Bonita e outros de seu bando, numa referência ao cangaço e todo o seu peso histórico, político e social naquela região específica e no Brasil.

No final, percebe-se que a resistência usou algumas armas ainda mais “vintage” que os “jogadores” estrangeiros, e que a violência se voltou contra os turistas assassinos. As marcas de sangue deste conflito são preservadas nas paredes do museu, que incorpora esta nova violência, que representa a tentativa de invasão, assim como a luta e a resistência do povoado. Tudo coletivamente, jamais individualmente.

Com a exceção de Michael (líder forasteiro interpretado por Udo Kier), que tem a vida poupada, os demais jogadores sanguinários são mortos. Tony Junior, então, aparece com uma van para buscar os “turistas” mas, apesar de o politiqueiro tentar se desvincular dos estrangeiros, o líder dos assassinos o reconhece e chama por ele, gritando "Tony" que, como tudo indica, havia oferecido (entregado) Bacurau para o jogo de sangue e morte.

Ambos - o líder dos assassinos e Tony Junior - têm suas penas definidas e executadas nas ruas de Bacurau, com participação popular. Interessa mais comentar a punição do líder do jogo de morte: simbolicamente, ele é enjaulado vivo numa cela subterrânea, de onde ameaça ressurgir, como o fascismo que, ao longo da história foi derrotado algumas vezes, mas ainda insiste em retornar.

A ideia original para o título deste texto era “Lunga Livre”, mas pareceria um “spoiler” - que poderia sugerir uma suposta prisão de Lunga - e, por isso, o evitei. No entanto, aqui no final, além de recomendar a todos que vejam (e revejam) o filme e o interpretem como quiserem, fecho com duas frases: Lunga Vive! Lunga Livre!

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Referências e notas:

[1] Reportagem do programa Fantástico sobre a cidade de Barra/RN: https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2019/08/25/conheca-a-cidade-que-serviu-de-cenario-para-bacurau.ghtml

[3] Explicação do diretor sobre a semente de Bacurau aos 3:55min. no vídeo: https://youtu.be/R-DX9hdBcus

Entrevistas com Silvero Pereira (a Lunga de Bacurau):

Outros textos e vídeos sobre Bacurau e o coletivo que o fez nascer:

https://youtu.be/JW9vcFmK9Fw




Ficha técnica do filme:

Nome Original: Bacurau
Cor filmagem: Colorida
Origem: Brasil e França
Ano de produção: 2014
Gênero: ação / suspense / western
Duração: 132 min
Direção: Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles