Aquarius
(2016), do cineasta Kleber Mendonça Filho, narra o conflito entre a
jornalista aposentada Clara (Sônia Braga) e a construtora que
pretende demolir o edifício que dá nome ao longa para erguer um
arranha-céu. Moradora antiga do prédio ameaçado, a protagonista é
a única que se recusou a vender seu apartamento à empresa. Trata-se
do segundo longa da trilogia que se iniciou em 2013 com O som ao
redor e terminou em 2019 com Bacurau, havendo forte ligação entre os filmes, como será demonstrado adiante.
Clara
é uma representação humana da cidade, com suas histórias,
estigmas, aspectos naturais e construções; ela e Recife misturam-se
e, neste processo, não ocorre uma reificação da moradora, mas uma
humanização da cidade, que se destaca como local onde pessoas
diferentes tentam (sobre)viver. O filme é um “zoom” em uma
destas pessoas: uma mulher arretada, capaz de abraçar as novidades
sem negar seu passado e suas cicatrizes.
No entanto, há uma cisão evidente entre Clara e Recife: enquanto a mulher consegue conciliar harmonicamente passado e presente, a cidade é atacada por empreiteiras que destroem indiscriminadamente edifícios históricos para construir prédios grotescos, como ninhos de cupim.
No entanto, há uma cisão evidente entre Clara e Recife: enquanto a mulher consegue conciliar harmonicamente passado e presente, a cidade é atacada por empreiteiras que destroem indiscriminadamente edifícios históricos para construir prédios grotescos, como ninhos de cupim.
"Aquarius" - prédio que integra o corpo de Recife – é atacado pela
construtora, da mesma forma que Clara enfrentou um câncer, doença
em que as células se multiplicam descontroladamente. As construções
de uma cidade, como as células num corpo, devem funcionar em
harmonia, para não comprometer o organismo como um todo. Novos
prédios são importantes e necessários, mas a atuação das
empresas não deve ser desordenada como um câncer; caso contrário, a história, as memórias e a própria identidade local estarão em risco.
Muitos
parecem temer apenas o poder excessivo do Estado, mas a iniciativa
privada também pode oprimir. No neoliberalismo, o Estado - esvaziado
da função de regular as atividades de grandes empresas - é inflado
para vigiar, punir e varrer para longe os mais pobres, que geralmente
só têm a posse do local onde moram. Por não serem proprietários
como a personagem de classe média, são despejados para zonas cada
vez mais afastadas. A
música "Hoje", de Taiguara, tocada duas vezes no longa,
tem tudo a ver com o enredo; lançada em 1969, expôs a violência da
ditadura militar e agora se encaixa perfeitamente à tirania das
grandes empresas.
Também é
interessante mencionar a relação de Aquarius (2016) com
os outros dois longas que fazem parte da trilogia do cineasta Kleber
Mendonça Filho: O som ao
redor (2013) e Bacurau (2019). Na
minha leitura do conjunto da obra, penso que o primeiro filme
lançado trata do passado (resgate de uma violência
sofrida anteriormente); o segundo (tema deste
texto), aborda o presente (resistência
individualizada/atomizada a uma agressão atual – ataque e
contra-ataque simultâneos); e o terceiro - lançado neste ano
-, vai ao futuro (resistência organizada coletivamente para
lutar contra uma violência que ainda virá).
Comparando
Clara com os protagonistas dos outros dois filmes, percebe-se o
isolamento da heroína de Aquarius: ela age de forma atomizada - não
em grupo, como em O som ao redor, nem em comunidade (Bacurau) -
e, a meu ver, isto ocorre justamente porque ela representa uma
integrante da classe média, talvez até alguém que tenha "ascendido" de uma origem pobre, como sugere um diálogo racista no filme.
Neste
contexto, Clara parece mostrar a solidão daqueles que,
excepcionalmente, conseguiram algum espaço numa classe intermediária
entre os mais pobres e as elites, sendo capazes de lutar - de forma
isolada - apenas por seu restrito espaço individual
(apartamento/prédio/suas memórias afetivas/história pessoal e
familiar), sem enxergar e sequer arranhar o sistema, até porque a jornalista aposentada não deixa de ser uma “vencedora” - singular e rara - dentro da estrutura e de acordo com "discurso de meritocracia” (falacioso num país onde a desigualdade é histórica e imensa, com extrema desvantagem para a classe marginalizada).
A
classe média brasileira - mesmo a parcela mais progressista - parece
não ter muita consciência de classe nem, muito menos, organização,
tampouco identificação com os mais pobres; pelo contrário, tudo
indica que se ilude com quaisquer “proximidades” com as elites,
de modo a superestimar eventuais semelhanças com os mais ricos
(acesso a viagens, modelos de carros, locais etc. dos mais ricos) e subestimar -
ou até negar - possíveis afinidades com os menos favorecidos.
De
qualquer forma, fica evidenciado nos três longas uma certa
equivalência entre as pessoas mais pobres e as de classe média:
ambas são (foram ou serão) atacadas pelas elites, donas do(s)
poder(es) político e/ou econômico. Porém, de acordo com as três
narrativas cinematográficas, é a organização coletiva (comunitária,
criativa, a ser construída) que se destaca como melhor solução,
frisando-se que esta se baseia na ação, e não nas meras reações que se
veem nos dois primeiros filmes.
Por
fim, voltando a “Aquarius”, certo é que, quando ações
desenfreadas reduzem tudo - até a moradia - a produto, consumo e
lucro, e o “novo” faz questão de matar o antigo, para usurpar
totalmente seu espaço, arrancando suas raízes do solo do passado,
as consequências atingem não só o morador do local, mas a todos,
pois bloqueiam as memórias e interrompem a história, causando
irreparável destruição. Como pragas. Como um câncer.
_______________________________
PS.
Outra leitura de Aquarius, relacionando-o ao golpe sofrido por
Dilma/PT no
link: https://ecosprosaicos.blogspot.com/2016/09/aquarius-poder-economico-e-impeachment.html
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