sábado, 5 de outubro de 2019

Aquarius: a cidade-mulher e o câncer imobiliário (relação com a trilogia)





Aquarius (2016), do cineasta Kleber Mendonça Filho, narra o conflito entre a jornalista aposentada Clara (Sônia Braga) e a construtora que pretende demolir o edifício que dá nome ao longa para erguer um arranha-céu. Moradora antiga do prédio ameaçado, a protagonista é a única que se recusou a vender seu apartamento à empresa. Trata-se do segundo longa da trilogia que se iniciou em 2013 com O som ao redor e terminou em 2019 com Bacurau, havendo forte ligação entre os filmes, como será demonstrado adiante. 

Clara é uma representação humana da cidade, com suas histórias, estigmas, aspectos naturais e construções; ela e Recife misturam-se e, neste processo, não ocorre uma reificação da moradora, mas uma humanização da cidade, que se destaca como local onde pessoas diferentes tentam (sobre)viver. O filme é um “zoom” em uma destas pessoas: uma mulher arretada, capaz de abraçar as novidades sem negar seu passado e suas cicatrizes. 

No entanto, há uma cisão evidente entre Clara e Recife: enquanto a mulher consegue conciliar harmonicamente passado e presente, a cidade é atacada por empreiteiras que destroem indiscriminadamente edifícios históricos para construir prédios grotescos, como ninhos de cupim. 

"Aquarius" - prédio que integra o corpo de Recife – é atacado pela construtora, da mesma forma que Clara enfrentou um câncer, doença em que as células se multiplicam descontroladamente. As construções de uma cidade, como as células num corpo, devem funcionar em harmonia, para não comprometer o organismo como um todo. Novos prédios são importantes e necessários, mas a atuação das empresas não deve ser desordenada como um câncer; caso contrário, a história, as memórias e a própria identidade local estarão em risco. 

Muitos parecem temer apenas o poder excessivo do Estado, mas a iniciativa privada também pode oprimir. No neoliberalismo, o Estado - esvaziado da função de regular as atividades de grandes empresas - é inflado para vigiar, punir e varrer para longe os mais pobres, que geralmente só têm a posse do local onde moram. Por não serem proprietários como a personagem de classe média, são despejados para zonas cada vez mais afastadas. A música "Hoje", de Taiguara, tocada duas vezes no longa, tem tudo a ver com o enredo; lançada em 1969, expôs a violência da ditadura militar e agora se encaixa perfeitamente à tirania das grandes empresas.

Também é interessante mencionar a relação de Aquarius (2016) com os outros dois  longas que fazem parte da trilogia do cineasta Kleber Mendonça Filho: O som ao redor (2013) e Bacurau (2019). Na minha leitura do conjunto da obra, penso que o primeiro filme lançado trata do passado (resgate de uma violência sofrida anteriormente); o segundo (tema deste texto), aborda o presente (resistência individualizada/atomizada a uma agressão atual – ataque e contra-ataque simultâneos); e o terceiro - lançado neste ano -, vai ao futuro (resistência organizada coletivamente para lutar contra uma violência que ainda virá). 

Comparando Clara com os protagonistas dos outros dois filmes, percebe-se o isolamento da heroína de Aquarius: ela age de forma atomizada - não em grupo, como em O som ao redor, nem em comunidade (Bacurau) - e, a meu ver, isto ocorre justamente porque ela representa uma integrante da classe média, talvez até alguém que tenha "ascendido" de uma origem pobre, como sugere um diálogo racista no filme.

Neste contexto, Clara parece mostrar a solidão daqueles que, excepcionalmente, conseguiram algum espaço numa classe intermediária entre os mais pobres e as elites, sendo capazes de lutar - de forma isolada - apenas por seu restrito espaço individual (apartamento/prédio/suas memórias afetivas/história pessoal e familiar), sem enxergar e sequer arranhar o sistema, até porque a jornalista aposentada não deixa de ser uma “vencedora” - singular e rara - dentro da estrutura e de acordo com "discurso de meritocracia” (falacioso num país onde a desigualdade é histórica e imensa, com extrema desvantagem para a classe marginalizada). 

A classe média brasileira - mesmo a parcela mais progressista - parece não ter muita consciência de classe nem, muito menos, organização, tampouco identificação com os mais pobres; pelo contrário, tudo indica que se ilude com quaisquer “proximidades” com as elites, de modo a superestimar eventuais semelhanças com os mais ricos (acesso a viagens, modelos de carros, locais etc. dos mais ricos) e subestimar - ou até negar - possíveis afinidades com os menos favorecidos.

De qualquer forma, fica evidenciado nos três longas uma certa equivalência entre as pessoas mais pobres e as de classe média: ambas são (foram ou serão) atacadas pelas elites, donas do(s) poder(es) político e/ou econômico. Porém, de acordo com as três narrativas cinematográficas, é a organização coletiva (comunitária, criativa, a ser construída) que se destaca como melhor solução, frisando-se que esta se baseia na ação, e não nas meras reações que se veem nos dois primeiros filmes.

Por fim, voltando a “Aquarius”, certo é que, quando ações desenfreadas reduzem tudo - até a moradia - a produto, consumo e lucro, e o “novo” faz questão de matar o antigo, para usurpar totalmente seu espaço, arrancando suas raízes do solo do passado, as consequências atingem não só o morador do local, mas a todos, pois bloqueiam as memórias e interrompem a história, causando irreparável destruição. Como pragas. Como um câncer.
 
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PS. Outra leitura de Aquarius, relacionando-o ao golpe sofrido por Dilma/PT no link: https://ecosprosaicos.blogspot.com/2016/09/aquarius-poder-economico-e-impeachment.html

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