sábado, 29 de fevereiro de 2020

A voz da gente (Mangueira, 2020)



Não sei qual é o melhor modo de medir a redução das desigualdades, de verificar como estamos lidando com os abismos históricos. Mas penso que a capacidade de falar, de se expressar e, mais importante, de narrar, contar sua visão, e ser ouvido, é um bom critério. Se houver só uma história, reproduzida por todos, é sinal de que apenas um narrador prevaleceu, volume máximo, outras vozes abafadas, caladas, esquecidas, inaudíveis.


Mesmo que o narrador branco, rico e velho continue falando bastante e alto nas TVs, rádios, grandes empresas, gabinetes, jornais etc., um pancadão (ou batuquejê) toma força, ganha volume, e interrompe o discurso do coroa. No meio da prosa monótona, burocrática, arcaica, ouvimos música, poesia, vemos dança, arte e outras versões da história, contadas como “o avesso do mesmo lugar”.

Favela, pega a visão” (e a bateria vira de samba pra funk), fala a Mangueira. Canta, dança, atravessa a avenida, a cidade, os noticiários. Não é de hoje que vozes se destacam, mas de 2015 pra cá, a Estação Primeira se fez ouvir quando c(a/o)ntou “Brasis”, “a história que a história não conta”, com “rosto negro, sangue índio, corpo de mulher”. Se agora (2020) os versos trouxeram o evangelho segundo o pessoal do buraco quente, há 5 anos eles avisaram que “a nossa Maria não é brincadeira/ É raça, é fibra, é jequitibá!”.

Como no “Auto da compadecida” (A. Suassuna), a Mangueira, em 2015, chama a mulher, “rainha”, “guerreira”, “vovó”, “mãe do samba que dança pro seu orixá”, citando D. Neuma e D. Zica. Como sempre, dá um salve pras baianas, saravá! Tá na história do samba: as baianas da origem, como as ganhadeiras, que lavaram a alma da Viradouro este ano.

Nos anos seguintes, até o “Jesus da Gente”, cantou sobre M. Bethânia, sincretismo religioso, avisou que “com ou sem dinheiro” ia brincar e, ainda, deu a letra sobre o “sangue retinto pisado / atrás do herói emoldurado.” Não é só uma voz. É pegar a narrativa, é falar dos seus “heróis dos barracões”, “um país de Lecis, Jamelões”. “Brasil, meu nego,” ouça o que a Mangueira tem pra contar…






quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Quem conta a história em "Coringa"?



Quem é, afinal, o narrador no filme “Coringa” (Todd Phillips, 2019)?

Acredito que há mais de um. Ou talvez só um narrador, mas que apresenta versões variadas, pura fantasia ou não, sobre as mesmas situações. Com vozes plurais, é certo que a trama apresenta versões diferentes para os mesmos fatos, como, p. ex, o relacionamento de Fleck com a vizinha.

Esta maneira de contar a história, em que há cenas distintas sobre as mesmas situações, levanta, no mínimo, dúvida sobre o que está rolando na trama, a “veracidade” interna relativa à ficção em si. Isso pode gerar alguma confusão ao espectador, e pode ser lido de muitas formas, uma das mais óbvias é a de que a primeira versão encenada é a imaginada por Arthur Fleck (Coringa) e a segunda, os fatos “reais”, descritos por um narrador impessoal, terceira pessoa, de fora, narrador deus, que tudo sabe.

Não se trata de algo novo no cinema. O filme “Uma mente brilhante” (Ron Howard) - vencedor do Oscar de 2002 nas categorias de melhor filme, roteiro adaptado, diretor e atriz coadjuvante - foi ousado e muito feliz ao apresentar dois narradores. E o fez de modo desafiador, pois durante boa parte do longa - da abertura até metade ou mais - as cenas contam uma versão, dada como única, “verídica” (lógica interna), sem dar pistas (fáceis) de que eram criações ou distorções do protagonista, da mente dele.

E aí o espectador é levado a “sentir” sintomas da doença que acomete o matemático, a esquizofrenia. Alucinações, paranoias, ilusões persecutórias só são questionadas, reencenadas, expostas, lá na frente. “A ilha do medo” (M. Scorsese, 2009) também joga com confrontos narrativos, apresentando um belo trabalho com plurivocidade, a contrapor o que era pura imaginação de um personagem e o que houve de fato.

De tudo, ficam as perguntas: até que ponto a visão (subjetiva) dos personagens interfere? O que é verdade (ou seriam verdades?) Como deve ser a experiência de ter delírios? Como confiar nas narrativas?   








terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Arthur Fleck (Coringa) sofreu psicofobia?


No filme “Coringa” (Todd Phillips, 2019), em uma das cenas que mostra o caderno de anotações pessoais de Arthur Fleck (Coringa) -, há uma frase que diz: “a pior parte de ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você se comporte como se não tivesse”. Não só por esta frase, mas também por muitas situações envolvendo o personagem, revela-se a psicofobia. E o que é isso?

Pra resumir, é o preconceito em relação às pessoas com transtornos ou doenças mentais. No longa, Fleck sofre com gargalhadas dissonantes dos seus sentimentos, sobre as quais não tem controle, e as explica como consequência de uma condição médica num cartão que entrega a seus interlocutores. Também sofre com pensamentos ruins muito frequentes, toma remédios psiquiátricos, é bastante solitário e geralmente visto como esquisitão. Tudo isso parece contribuir para despertar o Coringa, que acaba se vingando, violentamente, de algumas personagens que foram psicofóbicas com ele.

No entanto, esta reação agressiva do vilão de HQ em relação a preconceituosos parece se distanciar do acontece na maioria das vezes no mundo real, porque há estatísticas indicando que 93% das pessoas com doenças psiquiátricas não são violentas e que umas das principais consequências da psicofobia são o isolamento do paciente e a dificuldade para buscar tratamento adequado e permanecer nele.

Quando alguém diz que “depressão é frescura”, “terapia é coisa de maluco”, age com desrespeito ou agressividade, apresentando medo infundado, atitudes de discriminação, criticando quem usa remédios psiquiátricos, chamando pacientes de loucos etc., causa impacto direto nas pessoas que apresentam quadros desta natureza.  

Como no filme, a realidade está marcada pela psicofobia, que reforça os estigmas e os tabus relacionados às doenças da mente. Se a trama do longa não for suficiente pra (re)pensar o assunto, dê uma chance ao discurso do Joaquim Phoenix no Oscar, ao receber o prêmio de melhor ator, por Coringa. Ficção e vida se entrelaçam indicando outros caminhos...