sábado, 11 de dezembro de 2010

Crise? Para quem?

Quem realmente sofreu com a última crise econômica? O sistema financeiro internacional? Os bancos?

"A atual 'contração do crédito' não é resultado de um insucesso dos bancos," adverte Bauman. "Ao contrário, [a crise] é fruto de seu extraordinário sucesso - sucesso ao transformar uma enorme maioria de homens e mulheres, velhos e jovens numa raça de devedores. (...) A presente 'crise de crédito' não sinaliza o fim do capitalismo, somente o sucessivo esgotamento de uma fonte de pastagem."

BAUMAN, Zigmunt. Vida a crédito.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Capacho vazio

Hoje, desde o momento em que acordei, já abri a porta de saída do apartamento umas quatro vezes. Não recebi visitas nem as esperava e a campainha tampouco soou. Na verdade, abri a porta para constatar uma ausência: o capacho vazio.

Ontem, 31 de agosto de 2010, quando eu saía para o trabalho, minha avó me mostrou o jornal e disse: "é o último; vou guardá-lo".

O capacho está vazio e assim continuará; mas nós, por habito, esperamos (em vão) pela chegada do JB. Creio que outras pessoas também estejam sentindo essa carência. O rapaz que entregava o jornal e os homens da gráfica também devem estar passando por algo semelhante; talvez a falta lhes seja até maior, uma vez que o jornal significava emprego para eles.

Como já havia falado sobre as barcas no texto "o furto", repito aqui: não sou um saudosista inveterado, nem um casmurro fechado às novidades: meu apego não é ao passado, mas ao que é melhor.

Até ontem eu conseguia ler o JB em qualquer lugar - na praia, na praça, no ônibus... -; hoje, para tanto, preciso de um computador portátil ligado à internet. O papel, essa invenção arcaica, tem um pacto com a liberdade. No entanto, as telas, cada vez mais avançadas - e é preciso sempre evoluir, criar novos produtos -, estão mais valorizadas.

Às vezes é imprescindível dizer o óbvio, pois parece que não enxergamos o que está claro demais, como se sofrêssemos de uma "treva branca": o computador, essa máquina que surgiu para auxilar o homem no trabalho, tornou-se o indispensável para a realização de muitas atividades de boa parte das pessoas. É nele que trabalhamos, guardamos nossas fotos, vemos filmes, comunicamo-nos com parentes e amigos, discutimos, lemos jornais, encontramos "perfis" - egos virtuais - nas redes sociais etc.

Isso afeta as fronteiras entre o que é trabalho e o que não é. No trabalho, posso enviar e-mails para amigos e em casa executar alguma tarefa profissional. Contudo, as últimas notícias referentes ao avanço tecnológico parecem demonstrar que essa "liberdade" de trafegar no mundo virtual está com os dias contados, visto que uma grande empresa está desenvolvendo um sistema que controla o que o usuário está fazendo no seu PC; ou seja, daqui a algum tempo, é possível que o seu chefe saiba que, em vez de você estar trabalhando no projeto, está lendo o jornal ou analisando sua conta corrente.

O capacho está vazio e as telas, cheias. Quem sabe se amanhã os defensores do progresso não sentirão falta do jornal de papel?


Link para a matéria indicada pelo Rafael (Acenos do Abismo):


ESPN.com.br / Pontapé Inicial - Informação é o nosso esporte - VÍDEO: Jornal do Brasil sai das bancas após 119 anos de história; veja depoimentos

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Catadores

Publicado recentemente no Brasil, A política da mudança climática, de Anthony Giddens, trata da "mudança climática sobretudo como uma questão política e defende que toda decisão deve observar o contexto econômico e geopolítico mundial."

Semana passada, comprei o livro numa livraria do centro do Rio. Ao sair de lá, caminhei em direção ao Terminal Menezes Côrtes, a fim de pegar o ônibus de volta para casa. Eu não havia andado por dez minutos quando deparei com montanhas de papel. Não, não estou exagerando: ao lado do Terminal os catadores se reúnem todas as noites, para coletar o lixo reciclável. O contraste foi enorme: em pouquíssimo tempo eu havia passado do livro de Giddens, um livro novo, papel novo, teoria, a homens catando papéis usados, lixo, realidade. A tese do sociólogo – exposta com estilo – pareceu-me distante demais da vida.


Não estou dizendo que as questões ambientais não devam ser discutidas; pelo contrário: elas precisam, sim, ser trazidas à luz, debatidas; contudo, num lugar em que pessoas catam papéis na rua, até altas horas, sem qualquer proteção, tanto física quanto jurídica (sem luvas, botas e sem vínculo empregatício), o clima se torna algo demasiadamente afastado.

Na verdade, Giddens tornou-se-me distante, na medida em que tenho poucas esperanças quanto à eficácia do debate sobre os problemas ambientais. Vivemos num sistema econômico que necessita de crescimento constante, que se baseia no consumo; logo, os problemas ambientais são apenas conseqüência e não serão resolvidos enquanto não houver uma intervenção nas causas.

Ostentando suas bolsas de pano - última moda entre os "preocupados com o futuro do planeta" - as pessoas falam sobre proteção ambiental, mas trocam de celular, computador, TV, carro, toca-mp3 etc. toda hora, assim que conseguem – mesmo que para tanto tenham que se endividar, o que também faz parte do jogo. Falar de preocupação em relação à natureza enquanto se consome tudo o que pode (e também o que não pode!) é cegueira, ignorância ou hipocrisia.

Os catadores com certeza não são uma ameaça ao equilíbrio ambiental: eles consomem pouco, não possuem veículos poluidores e ainda promovem a reciclagem. Quem são esses homens - esses “consumidores falhos”[1] -, que, como os camelôs, vagam pelas ruas, sem qualquer proteção, coletando os restos, as sobras?

Estamos na era da desregulamentação, da privatização: o Estado, cada vez menor, não se mete no trabalho desses homens. Os lixeiros têm ainda alguma proteção, uma relação de emprego, enquanto os catadores – homens invisíveis que ajudam a reciclar - ficam à margem, embora desempenhem uma função importante.

Em “A queda”, Albert Camus fala sobre a inércia de um homem diante da queda de uma suicida no rio:

“Já havia percorrido uns cinqüenta metros aproximadamente, quando ouvi um ruído que, apesar da distância, me pareceu , no silêncio da noite, de um corpo caindo na água. Parei instintivamente, sem me voltar. Quase ao mesmo tempo, ouvi um grito, repetido várias vezes, que descia também o rio, e que se extinguiu bruscamente.”

Estou cansado de passar por pessoas que se jogam e gritam; nada faço, porém. Há um ano escrevi sobre os camelôs (refrões da cidade e escravos de ganho) e à época meu desejo era escrever sobre outras funções de “homens livres” das grandes cidades. Sou um catador de palavras.

Sobre consumo e lixo, escrevi há algum tempo:

Fungível

Não discuta,
Não reflita!
Pega o que lhe dão
E siga em frente,
Não só porque atrás vem gente,
Mas também porque não se deve parar nunca -
Ainda mais, assim, de repente!

Aceite, ceda,
Não resista ao que se lhe apresenta;
Um pedaço é melhor que nada.
Pegue-o, use-o,
Consuma-o, descarte-o,
Afinal, moramos em Leônia.

E não se preocupe nunca!
Você precisa mesmo descartar este pedaço
Para consumir o outro que virá.
É sempre hora de trocar:
Larga pois o que tem em mãos
E agarra hoje o novo que lhe dão!

Sobre o tema, diz Bauman em "Amor líquido" (p. 11):

"Se lhes perguntassem, os habitantes de Leônia, uma das 'Cidades Invisíveis' de Italo Calvino, diriam que sua paixão é 'desfrutar coisas novas e diferentes'. De fato. A cada manhã eles 'vestem roupas novas em folha, tiram latas fechadas do mais recente modelo de geladeira, ouvindo jingles recém-lançados na estação de rádio mais quente do momento'. Mas a cada manhã 'as sobras da Leônia de ontem aguardam o caminhão de lixo', e cabe indagar se a verdadeira paixão dos leonianos na verdade não seria o 'prazer de expelir, descartar, limpar-se de uma impureza recorrente'. Caso contrário, por que os varredores de rua seriam 'recebidos como anjos', mesmo que sua missão fosse 'cercada de um silêncio respeitoso' (o que é compreensível: 'ninguém quer voltar a pensar em coisas que já foram rejeitadas')?"

No entanto, é isso que tenho feito: ando pelo lixo catando palavras. Eu sou o lixo. Olho, vejo e escrevo, mas nada reparo. [2]

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Notas:

[1] “Uma vez que o critério da pureza é a aptidão de participar do jogo consumista, os deixados de fora como um ‘problema’, como a ‘sujeira’ que precisa ser removida, são consumidores falhos – pessoas que são incapazes de responder aos atrativos do mercado consumidor porque lhes faltam os recursos requeridos, pessoas incapazes de ser ‘indivíduos livres’ conforme o senso de ‘liberdade’ definido em função do poder de escolha do consumidor.” BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. P. 24.

[2] "Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara." SARAMAGO, José. Prólogo de Ensaio sobre a cegueira.

Links para os textos citados:

ecosprosaicos.blogspot.com/2009/08/poderia-ser-ficcao.html


ecosprosaicos.blogspot.com/2009/08/refroes-da-cidade.html

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Jornal do Brasil: telas são indiferentes às lágrimas

Para mim, três cheiros tem o café da manhã: de café, de pão e de jornal. Na verdade, é um cheiro só, que é a mistura disso tudo; os aromas, altruístas, sabem se unir para compor um novo cheiro.

As imagens são mais esnobes, individualistas, egoístas, pois não permitem esse sincretismo criativo; é preciso saber morrer, saber deixar o ego de lado, para se fundir com outros elementos e criar dessa forma um novo.

Os cheiros, menos egoístas, possuem um senso comunitário apurado, uma legítima vontade de se unir. Pensando melhor, o som também é capaz dessa espécie de altruísmo; os sabores também, embora a língua hoje não possa se dedicar muito ao seu ofício, na medida em que o cérebro pós-moderno exige antes de tudo poucas calorias e o tempo para degustar é cada vez mais curto. Do tato, pobrezinho, não falarei muito: o coitado foi privatizado e anda cada vez mais esquecido...

Na minha opinião a culpa disso tudo é da ditadura das imagens. Veja: o olho é um tirano! As imagens determinam nossas vidas! Na verdade, as imagens são apenas testas de ferro e os olhos, tão voláteis e ingênuos, não sabem o que fazem. A ditadura é econômica.* E agora mais uma batalha foi vencida: será excluído do meu café da manhã um de seus cheiros: o Jornal do Brasil será puramente digital!

O JB faz parte da minha vida. Aqui em casa somos assinantes há quase quarenta anos. Hoje moramos num prédio, porém há cinco anos ainda recebíamos o JB por cima do muro, na nossa velha casa. Às vezes tínhamos que catá-lo entre as plantas, e nos dias de chuva, minha avó acordava preocupada para buscar o jornal antes que molhasse.

Há quase quarenta anos, minha avó Marly busca o jornal na porta, desembrulha-o, passa os olhos nas manchetes e o deixa separado para ler mais tarde. Quando morávamos todos juntos - minha avó, seus três filhos e eu -, o JB, que sempre ficava no centro da casa, era como um membro da família. Muita vez a conversa, que logo se transformava em debate regado a café, era iniciada com uma manchete do jornal. As conversas estão acabando; os jornais estão virando telas, imagens.

Assim que minha avó soube, ligou para o JB e explicou que possui mais de setenta anos, assina há décadas o jornal e não sabe acessar sozinha a internet. “Além disso," disse ela, "gosto de recortar as reportagens que me interessam”. Do quarto, ao ouvir suas palavras, meus olhos encheram d´água. Estamos de luto aqui em casa. A folha do jornal, que agora será tela – fria, rígida, vertical, estática, sem cheiro, imune ao vento – já acolheu minhas lágrimas; o papel do JB já ficou molhado com minhas lágrimas. As telas são indiferentes às lágrimas.

Tenho uma gaveta cheia de folhas do JB. Minha avó sempre separa para mim o caderno “idéias e livros”. É um trato que firmamos sem palavras mas que se repete há bastante tempo. Todo sábado ela separa para mim o caderno, o qual recebo como todo o carinho. No dia seguinte ou na segunda, durante o café da manhã, conversamos sobre o que li no caderno que ela me deu.

Em breve, arrancarão de nós o JB: o seu cheiro, o acesso, o direito de recortá-lo, as conversas que tínhamos sobre seus textos.

Parece que o futuro é das telas. Pra que lágrimas?
* http://www.youtube.com/watch?v=EyOcrtCwekM

sábado, 17 de julho de 2010

Águas de março

“É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho...”

"Definir é limitar". Embora toda obra seja aberta ao olhar de quem a contempla, poucas conseguem ser tão livres quanto Águas de março, música de Tom Jobim. Em vez de construir frases com significado fechado, o compositor, com simplicidade - origem de sua liberdade -, brinca com palavras soltas:

"(...) É a lenha, é o dia, é o fim da picada,
É a garrafa de cana, o estilhaço na estrada..."

Ouvir Águas de março é como folhear um álbum de fotografias: cada imagem desperta uma lembrança. O Eu-lírico, despretensioso, concede ao interlocutor a liberdade de buscar dentro de si, em suas lembranças, múltiplos significados.

"(...) É um peixe, é um gesto, é uma prata brilhando,
É a luz da manhã, é o tijolo chegando..."

Os versos são tijolos com os quais cada um de nós (re)constrói a sua própria história. Os tijolos nos são doados, mas é nossa a argamassa que vai uni-los.

"É a chuva chovendo, é conversa ribeira
Das águas de março, é o fim da canseira..."

Trata-se de uma enxurrada de imagens prosaicas capaz de penetrar na memória e desprender lembranças, como a chuva faz com a poeira esquecida no chão.

"É o fundo do poço, é o fim do caminho,
No rosto o desgosto, é um pouco sozinho..."

As recordações, mesmo as tristes, guardam sempre alguma ternura; da dor de ontem é possível e provável que se sinta saudade. São de março as águas nas quais se diluem nossas lembranças, como no tempo se diluem nossas vidas.*

"São as águas de março fechando o verão,
É promessa de vida no teu coração."



_________________________
* Mudei a forma, mas a comparação é de Saramago. "(...) No tempo desaparece também a vida." Pág. 326. História do Cerco de Lisboa.

sábado, 10 de julho de 2010

DIRETAS JÁ - DEMOCRACIA NA COPA

Apoiado por mais de 1/3 da Câmara, o Deputado Federal Armando Górgias, do PFF - Partido da Frente Futebolística -, apresentou em 08/07/10, uma PEC importantíssima para Estado brasileiro, na medida em que fomenta a participação popular na escolha do representante de um dos cargos mais relevantes para a estrutura política nacional.

A PEC, apelidada carinhosamente de Diretas Já, visa criar eleições diretas para uma das funções mais importantes do Brasil: a de Técnico da Seleção Brasileira de Futebol. “O povo, numa democracia, deve escolher seus próprios caminhos. Escolhemos, desde o fim da ditadura, os membros do Legislativo e os Chefes do Executivo; por que não ir às urnas, então, para escolher o Técnico da Seleção Brasileira de Futebol? Poucos sabem, mas a CBF é de natureza privada, o que é um absurdo! Chega de decisões indiretas; chega de escolhas equivocadas: entreguemos ao povo o que lhe pertence!”, asseverou Górgias, na defesa da PEC.

Apesar do apoio da maioria ao Deputado do PFF, membros da oposição criticaram a proposta. “Embora a função seja de suma importância, não nos parece adequado, na atual conjuntura, apoiar uma alteração constitucional dessa monta. A medida vem em má hora; trata-se, na verdade, de pura demagogia levantar essa bandeira em ano eleitoral”, afirmou o Deputado João Pernadura. “A PEC é, sem dúvida, inconstitucional; além disso, a sua aprovação aumentará os gastos do Estado, vez que os titulares de funções semelhantes deverão ser escolhidos da mesma forma, em razão da isonomia”.


Deputados mais radicais já sugerem emendas à proposta de Górgias: escolher só o Técnico é pouco, o povo deve escolher a seleção inteira, todos os jogadores - titulares e reservas. “O povo deve ir às ruas exigir o que a Carta Maior lhe assegura no parágrafo único do artigo 1º: 'todo poder emana do povo'! 

Viva a democracia!




sexta-feira, 2 de julho de 2010

Fracasso


O fracasso ronda a cidade. Ombros caídos, ruas vazias, rostos tristes. Nas chuteiras a expectativa concentrada. Tudo terminou em frustração; a trilha sonora é um silêncio imposto, severo.


Uma euforia, uma energia guardada não sei onde explodia antes e durante a partida. Hora e meia depois, o fim. Aos poucos ouve-se o barulho da vida retornando: as cornetas cessaram, os ônibus voltaram a circular, as pessoas estão voltando às suas casas, lentas, melancólicas. No ar o cheiro da derrota, a pólvora queimada.

Os grupos de torcedores, moléculas cujos átomos eram atraídos pela energia intensa mas fugaz do anseio de vitória, fragmentam-se em pessoas solitárias; a orgia da torcida, a festa, o sentimento de comunidade, de união é fulminado pelo apito do fim de jogo.

Éramos nós há pouco?

Agora seguimos sós?

Sempre estivemos sós.

O álcool, nos bares, mascara a derrota, perpetua a euforia; mas depois do porre o sentimento de fracasso virá.

Que fracasso é esse? A quem ele pertence? Isso é o fracasso?

Não! Isso é só um jogo de bola. O fracasso antecede a copa; o fracasso atravessa as copas, as comemorações de ano novo, os jogos, as festas. A derrota já nos atingiu faz tempo. Na verdade, nunca conhecemos a vitória.

Estamos separados: a união não existe - é pura ilusão. Isso é fracasso.

Paga-se para estudar. Paga-se para ser atendido num hospital. E quem não paga? Submete-se, espera, morre.

Abaixa a cabeça para ter um emprego de merda e poder com o pouco que ganha pagar comida, escola, médico, teto, uma TV pra ver jogo de bola. Tão nos devendo isso tudo: cadê o cobrador?

Derrotados. Fudidos. Medrosos. Não foi um gol que nos derrotou. Os fracassados tem imunidade ao fracasso, assim como os mortos são imunes à morte.

Que as pessoas chorem. Mas que chorem pelos que morrem sem atendimento, pelos que não conseguem ir à escola, pelos que deixam o campo (não o de futebol, mas a terra seca, árida, sem torcida, sem propagandas nas bordas) para tentar a vida na cidade grande, num barraco. Isso é fracasso. O resto é circo.

sábado, 26 de junho de 2010

E agora, José?

A fim de continuar a homenagem a Saramago, preparava-me para escrever sobre a criação de Israel, abordando-a de forma não maniqueísta, desde o início do movimento sionista. Porém, depois de refletir um pouco, cheguei à conclusão de que poderia falar do tema sem ir tão longe. Em vez de falar de Israel, resolvi tratar do retorno dos índios ao litoral de Niterói.

Talvez o leitor, a princípio, possa achar a associação inusitada, mas olhando de perto perceber-se-á que o retorno à terra antes ocupada vincula diretamente os dois fatos.

Farei, inicialmente, um brevíssimo resumo dos acontecimentos.

Sobre Israel:

“Em novembro de 1947, as Nações Unidas recomendaram a partição da Palestina em um Estado judeu, um Estado árabe e uma administração direta das Nações Unidas sob Jerusalém. A partição foi aceita pelos líderes sionistas, mas rejeitada pelos líderes árabes, o que conduziu à Guerra Civil de 1947-1948. Israel declarou sua independência em 14 de maio de 1948 e Estados árabes vizinhos atacaram o país no dia seguinte. Desde então, Israel travou uma série de guerras com os Estados árabes vizinho e, como consequência, Israel atualmente controla territórios além daqueles delineados no Armistício israelo-árabe de 1949. Algumas das fronteiras internacionais do país continuam em disputa, mas Israel assinou tratados de paz com o Egito e com a Jordânia e apesar de esforços para resolver o conflito com os palestinos, até agora só se encontrou sucesso limitado.” [1]

A criação de Israel tem origem no sionismo, "movimento político que defende o direito à autodeterminação do povo judeu e à existência de um Estado Judaico, por isso sendo também chamado de nacionalismo judaico. Ele se desenvolveu a partir da segunda metade do século XIX, em especial entre os Judeus da Europa central e do leste europeu, sob pressão de pogroms e do anti-semitismo crônico destas regiões, mas também na Europa ocidental, em seguida ao choque causado pelo caso Dreyfus.” (...)

Apesar de não haver evidência de qualquer interrupção da presença judaica na Palestina há mais de três milênios, é fato incontroverso o concurso de várias migrações substitutivas em massa, com a saída de judeus e a entrada de outros povos, notadamente árabes. (...) [2]

Sobre os Guaranis:

“Nas primeiras décadas do século XVI, quando o processo colonizador mercantilista ainda não havia compreendido com maior clareza a geografia humana nativa no continente sul-americano, os indígenas, que posteriormente serão chamados, genericamente, de Guaranis, eram conhecidos como carijós no Brasil e cariós no Paraguai colonial. O termo Guarani, que significa guerreiro, passou a ser empregado a partir do século XVII, quando a ordem tribal já estava bastante esfacelada por mais de 100 anos de exploração colonial, para designar um grande número de índios que viviam em aldeamentos pertencentes a grupos falantes de dialetos da língua Guarani da família linguística Tupi-guarani. (...)

A antiga e intensa política de ocupação dizimou a população indígena, todavia as populações desta etnia ainda mantém fortes indícios de unidade linguística e cultural, desenvolvendo sempre formas estratégicas relacionais diante das realidades nacionais com as quais são obrigados a conviver.

As populações guaranis contemporâneas vivem em pequenas reservas, acampamentos a beira de rodovias ou habitam ainda espaços geograficamente isolados. Suas principais atividades econômicas são a confecção e a venda de artesanato - cestas com taquara e cipó, estátuas em madeira e colares com sementes nativas - a coleta de raízes, ervas e frutos silvestres e o plantio de suas sementes tradicionais.” [3]

Por fim, a associação óbvia: se os Judeus, depois de milênios, têm direito de criar um Estado, por que os Guaranis não podem morar num sítio arqueológico em Camboinhas, Niterói?

Como se sabe, o litoral, há cinco séculos, pertencia aos índios, que, dizimados e deslocados ao longo da história, atualmente ocupam pequenas áreas. As razões que fundamentaram a criação, manutenção e expansão de Israel serviriam para legitimar o retorno de todos (os poucos que sobraram) índios descendentes dos que viviam no litoral.

A grande diferença é que os índios são uma minoria muito mais fraca e fragmentada. A terra que lhes pertenceu ontem é hoje propriedade, protegida pelo Estado. Os palestinos (agora minoria no território que ocuparam por séculos) tiveram que ceder suas terras aos "judeus israelitas", que voltavam ao "Sião". Os proprietários de Camboinhas (maioria), com certeza, não deixarão que os Guaranis se instalem.

Holocausto quer dizer imolação; etimologicamente relaciona-se à cremação de corpos em sacrifícios religiosos. Na história dos índios há vários holocaustos, embora não se fale muito deles.

O pior é que tais sacrifícios não fazem parte só do passado distante: há dois anos, ocorreu um incêndio aparentemente criminoso na aldeia de Camboinhas. Parece que o holocausto dos índios, apesar de não tão divulgado, continua.

E agora, José? Os judeus têm direito e os índios não?



(Foi difícil achar um vídeo sem propagandas...)

Referências

[1] Retirei o trecho da Wikipedia em 26/06/2010, às 12:05h - pt.wikipedia.org/wiki/Israel. Assim fiz para evitar que me acusem de maniqueísmo. O texto pareceu-me imparcial.

[2] Trecho também retirado da Wikipedia, às 12:14h - pt.wikipedia.org/wiki/Sionismo.

[3] Wikipedia, consulta realizada à 12:18 - pt.wikipedia.org/wiki/Guaranis.

Link para matéria de “O Globo”: g1.globo.com/Noticias/Rio/0,,MUL456844-5606,00-ALDEIA+EM+PRAIA+DE+NITEROI+OPOE+INDIOS+A+DONOS+DE+CASAS+DE+LUXO.html.

Link sobre o incêndio: webradiobrasilindigena.wordpress.com/2008/07/18/um-incendio-criminoso-ocorreu-na-aldeia-dos-indios-guarani-em-camboinhas-niteroi-rj/


PS. Informo desde logo que não sou a favor de um Estado indígena! Gostaria que o Estado constituído os protegesse melhor, até porque há grupos que usam os direitos indígenas apenas como discurso para invadir e controlar certos espaços.

Deixo claro (como já havia falado no texto anterior, em relação ao Saramago) que não tenho nada contra nenhum povo, etnia ou grupo social. Minha crítica se dirige apenas à forma como foi criado Israel.

sábado, 19 de junho de 2010

O assassinato de José

Há poucas semanas fiquei bastante preocupado com o Saramago. Não, não foi por causa do problema de saúde; minha preocupação nasceu quando vi uma biografia dele numa grande livraria do centro do Rio.

Podem me chamar de supersticioso, não me importo; mas, para mim, o que mata um escritor são as biografias que insistem em escrever sobre eles. Obviamente, quando o próprio se mete a escrever sobre si podemos considerá-lo suicida; sim, uma autobiografia é quase como tomar cianureto.

Exceções existem, é claro: há autores que vivem um bom tempo depois do lançamento de suas biografias; porém, isso apenas confirma a regra. E não estou sozinho na minha teoria: Gabriel García Márquez foge de biografias justamente por isso, e já chegou a perguntar a um escritor-urubu, que insistiu em entrevistá-lo para colher material para o homicídio: “por que você quer escrever uma biografia? Biografias significam morte.”

Esse é um dos principais motivos pelos quais eu nunca leio biografias de pessoas vivas; afinal, não gosto de compactuar com homicidas. Não tenho o mesmo pensamento quanto às autobiografias, pois respeito os suicidas: acho muito digna a pessoa, que já de saco cheio da vida, resolve dar fim à sua existência, escrevendo sobre si mesma. Prefiro essa espécie de suicídio às mais ordinárias, como tiro na cabeça, salto de prédio ou ponte, envenenamento...

Chega a ser bela a morte assim: o autor se esvai em palavras. Quem dera se Hemingway (e muitos outros), em vez de ter empunhar uma arma contra si, tivesse se metido a contar a sua história.

O fato é que Saramago morreu e, embora eu tenha quase certeza de que o homicídio foi premeditado - a biografia foi lançada pouco antes da sua morte! -, as pessoas em geral (e a própria lei) não condenarão o autor-urubu. No fundo, também não quero que o pobre-coitado seja condenado, visto que um cara desse, preso, sem nada pra fazer, pode cismar de escrever mais biografias e se tornar um verdadeiro serial killer.

E também não é justo prender um homem por uma morte tão irrelevante como a que ocorreu ontem.

Acalmem-se! Posso explicar.

Na verdade, Saramago não morreu; ele está vivo: ele está nos livros, nas palavras que escreveu durante sua vida. Podem conferir: ele está mais vivo que muita gente que anda por aí. Um artista nunca morre: sua obra é sua alma. Se olharmos bem, a censura é uma das piores espécies de assassinato.

Pilar pode chorar a morte do seu companheiro; a família e os amigos do José também têm direito às lágrimas. Nós, leitores, no entanto, podemos chorar apenas pelas obras que Saramago deixou de escrever; podemos imaginar como seria o seu próximo romance e chorar por não poder lê-lo. Bom, quem quiser chorar pelo José, que chore! Pode ser que eu é que só tenha um vínculo com a obra e não com a carne...

Posso dizer que o próprio não era refratário à morte; em intermitências da morte, o narrador se mostra um defensor do temido mas inevitável - e necessário - destino de todos nós. A morte não deixa de ser renovação.

Para sentir a vida de Saramago basta lê-lo e relê-lo, sempre. Como ele mesmo afirmou, “as coisas que parecem ter passado são as que nunca acabam de passar.” Mas não é só isso que podemos fazer para senti-lo: podemos (a meu ver devemos) também fazer ecoar os seus gritos de lucidez, levar adiante os seus pensamentos.

Portanto, para terminar essa homenagem ao homem que apesar das dificuldades nunca desistiu de escrever, faço o que imagino que ele faria. Poderia ecoar muitas de suas lúcidas críticas: à igreja (no vídeo abaixo ele fala sobre ela), ao sistema econômico, ao que chamam de democracia mas que na realidade é outra coisa bem diversa...

Todavia, optei por criticar, como ele fez tantas e tantas vezes, o absurdo que acontece na Palestina. Minha escolha não foi aleatória; escolhi o ponto justamente porque Saramago foi uma das únicas vozes que conseguiu se expressar sobre o assunto (manisfestando uma opinião contrária a da maioria) no ocidente, e por tais declarações foi atacado de todas as formas, sendo injustamente acusado de anti-semita.

Injustamente porque ele nunca foi se manifestou contra qualquer povo ou etnia - e nunca o faria. Posso dizer com tranquilidade que se fossem os palestinos, ajudados pelos Russos, que tivessem criado uma espécie de Israel, ele faria as mesmas críticas. Nada mais justo que citá-lo:

"O que ocorre na Palestina é um crime que podemos comparar a Auschwitz."

O que a Alemanha nazista fez foi um absurdo. Todos sabemos disso e a mídia sempre nos lembra do extermínio daquelas pessoas, e embora se refira quase sempre a só um dos grupos, sabe-se que faziam parte dos grupos perseguidos ciganos, eslavos, militantes comunistas, homossexuais, judeus, deficientes motores, deficientes mentais, prisioneiros de guerra, membros da elite intelectual polaca, russa e de outros países do Leste Europeu, além de ativistas políticos, testemunhas de Jeová, dentre outros.

A mídia, sem dúvida, deve sempre nos lembrar das crises do passado; no entanto, parece não há uma preocupação equivalente com o presente dos palestinos, que também deveria ser divulgado. Os crimes cometidos ontem não podem servir de justificativa para os crimes de hoje.

Um homem não morre quando o motivo por que luta permanece vivo em outros homens.



Vale a pena transcrever um trecho da entrevista:

"Quando a igreja inventou o pecado, inventou um instrumento de controle - não tanto das almas, porque à igreja não importam nada as almas -; um instrumento de controle dos corpos (...). Aquilo que perturba a igreja católica é o corpo: o corpo com a sua liberdade, o corpo com seus apetites, o corpo com suas necessidades..."

PS. Confesso que quando fui pegar um vídeo para colocar aqui chorei um pouco. Acho que lembrei de outros vídeos que assisti, dos romances, das entrevistas, daquele senhor falando com calma e emoção sobre sua percepção do mundo; acho que vi o homem atrás das palavras. Talvez eu tenha chorado a minha morte; afinal, toda morte é um anúncio sobre o fim.

PS1. Para compreender melhor o que acontece na Palestina, sugiro a leitura de CHOMSKY, Noam. Estados Fracassados. p. 194 e seguintes.

PS2. Pra quem quiser ler uma biografia de Saramago, acho mais interessante as pequenas memórias, do próprio.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Barcas: transporte público ou shopping?

Num post abaixo (Muro disfarçado de ponte, de 16/10/09) falo sobre o caos do transporte público e o absurdo da criação de um catamarã de luxo (Charitas) que beneficia apenas ínfima parcela das pessoas que precisam ir ao Rio todos os dias.

Agora, o foco são as Barcas, que, em vez de melhorar a prestação do serviço, piora a cada dia. Embora tenham sido criadas barcas novas, mais modernas e rápidas, o tempo de espera na estação aumentou muito, visto que elas têm somente a metade da capacidade das antigas. A travessia demora 12 minutos (a barca tradicional demorava 20), mas a espera, nos horários de maior movimento, pode chegar a uma hora!

E, recentemente, para piorar, a empresa ainda substituiu algumas roletas por mesas de certa lanchonete localizada à direita - Estação Praça XV.

Como nós, usuários, ficamos esperando um tempão para embarcar, acabamos comprando lanches e outros produtos nas lojas situadas na estação; assim, ao gastarmos nosso dinheiro ali, a Barcas S/A lucra, pois, quanto mais compramos, mais valorizado se torna aquele espaço.

O consumo de produtos na estação está gerando lucro e a espera - criada pela própria empresa - beneficia esse comércio. Não é à toa que A ESTAÇÃO SE TRANSFORMOU NUM VERDADEIRO SHOPPING, com direito a propaganda em todos os lugares - nas paredes, nos bancos e até na fachada das  embarcações, fazendo-as parecer um ridículo pacotão de sabão em pó!

Será que o lucro obtido dessa forma é abatido do valor da tarifa? Só quando houver transparência  poderemos descobrir...

A estratégia da empresa é antiga. Vocês já devem ter reparado que os supermercados e lojas de departamento oferecem produtos baratos, de consumo imediato, situados justamente nos corredores onde se formam as filas para os caixas. Isso obviamente é feito de propósito, tendo em vista que a ansiedade da espera faz com que o consumidor gaste mais, adquirindo coisas que nem pensava em comprar quando entrou na loja - é quase um consumo automático, inconsciente. Quem nunca comeu chocolates ou balas enquanto esperava para pagar?

E o pior é que, segundo o liberalismo - opção do Estado brasileiro (ou imposição acatada) -, não existem cidadãos, há apenas consumidores. Sob essa perspectiva, não é só o transporte público que está se transformando em shopping, produto, mas também a saúde e a educação - o que é muito mais grave.

Voltando à questão do transporte, a meu ver, para demonstrar nossa insatisfação, deveríamos evitar gastar nosso dinheiro nas estações, para que nossa espera (que é cada vez maior!) não gere ainda mais lucro para a Empresa.

SE O COMÉRCIO E A PUBLICIDADE NÃO REDUZEM A TARIFA, POR QUE MANTÊ-LOS?  

Nunca fui contra a beber um cafezinho, ao esperar 10 ou 15 minutos. Mas do jeito que está, a solução parece ser mesmo não consumir nada para não fomentar a indústria da espera.

Se continuarmos dando lucro fácil, a situação só vai piorar. O transporte público tem que servir ao cidadão e não se tornar fonte de exploração da iniciativa privada, que visa somente LUCRAR!




Foto da estação em 1958 - quando as barcas ainda serviam para realizar o transporte de cidadãos.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Machado de Assis e Woody Allen: Tudo pode dar certo



Se você, leitor, acha que vai encontrar aqui uma resenha do filme de Woody Allen, pode parar de ler agora! Não vou falar que esse longa foi o retorno do cineasta a N.Y., depois do exílio na Europa, nem que o ator principal encarnou os trejeitos do diretor.

É mais ou menos isso que Boris, protagonista de “Tudo pode dar certo”, faz no início do filme: ele é um narrador-personagem que fala diretamente com o público. Comuns em literatura, narrativas em primeira pessoa são raras no cinema. 

Boris brinca com sua onisciência de narrador, gabando-se de sua visão do todo. Ele quebra a quarta parede e, enquanto fala com o público, as outras personagens acham que o rabugento tá resmungando sozinho...

Esse início do longa - em primeira pessoa, com justificativas irônicas e  "rabugens de pessimismo" - me lembrou “Memórias póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis (abaixo, a linda edição recém-laçada pela Antofágica, com ilustrações de Portinari e perfil do autor escrito pelo Ale Santos @savagefiction). No romance, o  defunto narrador esclarece ao leitor que escreveu a obra com "a pena da galhofa e a tinta da melancolia”.

Outra semelhança, além dos nomes (Boris e Brás), é a forma irônica como eles tratam a morte. As tentativas de suicídio de Boris e seu pânico diante da ideia do fim da vida, fazem da morte motivo de riso, o que também acontece quando Brás Cubas dedica suas memórias “ao verme que primeiro roeu as frias carnes do [seu] cadáver”, havendo no longa um diálogo mencionando os mesmos parasitas. E, ainda, a hipocondria, que  é combatida pelo "emplasto Brás Cubas" e consome as energias de Boris. 

Não é segredo que W. Allen admira Machado, seu “ídolo brasileiro” como revelou em entrevista: “Li (…) ‘Epitaph for a Small Winner’ [‘Memórias Póstumas...] (…) e fiquei muito impressionado. (...) Achei Machado de Assis excepcionalmente espirituoso, dono de uma perspectiva sofisticada e contemporânea, o que é incomum, já que o livro foi escrito há tantos anos. Fiquei muito surpreso. É muito sofisticado, divertido, irônico.” (Link: entrevista completa).

Parece que o cineasta se inspirou no nosso Bruxo do Cosme Velho. Boris conta sua própria história e o faz depois de quase morrer: um narrador quase-finado que, como o falecido Brás, zomba da existência e não perde a chance de relembrar e reclamar, mesmo sem conhecer sua plateia...



quinta-feira, 20 de maio de 2010

Quincas Berro Dágua

Quem me conhece sabe o quanto eu gosto de Jorge Amado e especialmente de sua novela A morte e a morte de Quincas Berro Dágua. Tenho inclusive duas edições dela: uma com um interessante prefácio do Vinicius de Moraes e outra na qual, além dessa novela, há ainda Capitão-de-longo-curso, outra deliciosa história do saudoso baiano.

Há algum tempo me avisaram que o livro ia virar filme; hoje, para minha surpresa e alegria, descobri que estréia amanhã no cinema. Sem dúvida, a trama já valeria a ida ao cinema; mas me aparece (apesar de não ter visto uma cena do filme - só vi o trailer depois de escrever) que há outros bons motivos para assistir à comédia: Paulo José "encarna" o morto mais vivo já visto nas ruas de Salvador e Marieta Severo, a sua amada.

Nas palavras do narrador, "Quincas [é] um recordista da morte, um campeão do falecimento", visto que morreu três vezes: a primeira morte foi moral (quando Quincas Berro Dágua se libertou do que restava do Sr. Joaquim Soares da Cunha); a segunda, a atestada pelo médico, pela manhã (defendida pela família como a verdadeira); e a terceira, a da noite, na qual Berro Dágua, "por livre e espontânea vontade," decidiu partir, dizendo (atenção às suas derradeiras palavras):

- "Me enterro como entender na hora que resolver. Podem guardar meu caixão pra melhor ocasião. Não vou me deixar prender em cova rasa no chão!"

Para os que acreditam que a morte é o fim, o filme é obrigatório. Talvez Quincas tenha "vivido" muito mais na sua última noite do que muita gente em toda a vida.

domingo, 25 de abril de 2010

Brasília: cidade dos sonhos


Brasília é a cidade incapaz de abraçar os homens que a ergueram. É a cidade dos sonhos: não só para quem a projetou, mas também para os que deixaram suas terras e seguiram rumo ao nada, cheios de esperança.

No entanto, ao abrirem os olhos, uns encontraram suas casas; outros, o fim do trabalho, o fim do pão, o fim de sua utilidade: o nada, o adeus - sem promessas.

Marco Polo, em “As cidade invisíveis” - de Italo Calvino -, conversa com Kublai Khan sobre as cidades que visitou. Certa vez, “descreve uma ponte, pedra por pedra:
- Mas qual é a pedra que sustenta a ponte? – pergunta Kublai Khan.
- A ponte não é sustentada por esta ou aquela pedra - responde Marco -, mas pela curva do arco que estas formam.
Kublai Khan permanece em silêncio, refletindo. Depois acrescenta:
- Por que falar das pedras? Só o arco me interessa.
Polo responde:
- Sem pedras o arco não existe."



Trecho do documentário "Brasília: contradições de uma cidade nova", de Joaquim Pedro de Andrade (cineasta, diretor de Macunaíma), que, contratado para fazer um curta institucional, encontrou, já em 1965, apenas um terço dos habitante do DF morando no plano piloto de Brasília.

domingo, 18 de abril de 2010

Uma homenagem a Armando Nogueira

O Botafogo, ao vencer o Flamengo por 2 a 1, tornou-se o Campeão Carioca de 2010; sem dúvida, uma mais que merecida homenagem a Armando Nogueira, jornalista e botafoguense ilustre, que faleceu há pouquíssimo tempo.
Junto-me ao alvinegro carioca para homenageá-lo, mas não só por ter sido um torcedor apaixonado e um grande jornalista, mas por ter tido a sensibilidade de unir dois de seus maiores amores: o futebol e a literatura.
Armando jogava com as palavras - tratava-as com a mesma habilidade com que um craque trata a bola. Uma pelada, a seus olhos, era pura poesia:

Pelada de Subúrbio
(Armando Nogueira)

"Nova Iguaçu, quatro horas da tarde, sábado de sol. Dois times suam a alma numa pelada barulhenta; o campo em que correm os dois times abre-se como um clarão de barro vermelho cercado por uma ponte velha, um matagal e uma chácara silenciosa, de muros altos.

A bola, das brancas, é nova e rola como um presente a encher o grande vazio de vidas tão humildes que, formalmente divididas, na verdade, juntam-se para conquistar a liberdade na abstração de uma vitória.

Um chute errado manda a bola, pelos ares, lá nos limites da chácara, de onde é devolvida, sem demora, por um arremesso misterioso. Alguns minutos mais tarde, outra vez a bola foi cair nos terrenos da chácara, de onde voltou lançada com as duas mãos por um velhinho com jeito de caseiro.

Na terceira, a bola ficou por lá; ou melhor, veio mas, cinco minutos depois, embaixo do braço de um homem gordo, cabeludo, vestido numa calça de pijama e nu da cintura para cima. Era o dono da chácara.

A rapaziada, meio assustada, ficou na defensiva, olhando: ele entrou, foi andando para o centro do campo, pôs a bola no chão e, quando os dois times ameaçavam agradecer, com palmas e risos, o gesto do vizinho generoso, o homem tirou da cintura um revólver e disparou seis tiros na bola.

No campo, invadido pela sombra da morte, só ficou a bola, murcha."

(Nogueira, Armando. "Os melhores da crônica brasileira", José Olympio Editora - Rio de Janeiro, 1977, pág. 22 - extraído do site www.releituras.com/anogueira_suburbio.asp)

quarta-feira, 14 de abril de 2010

"Obscuro horizonte"

“É estupendo! Quando cheguei aqui e contemplei, da colina, esse formoso vale, fui atraído por ele por todas as formas e com um irresistível encanto... Lá embaixo, o pequeno bosque... 'Ah! Se eu pudesse abrigar-me a sua sombra!...' Lá em cima, o cume da montanha... 'Ah! Se eu pudesse contemplar dali a paisagem enorme...' E as colinas encadeadas entre si, e os vales discretos... 'Oh! Se eu pudesse me perder neles!' Corria até lá e voltava, sem haver encontrado o que esperava. Acontece com o futuro o mesmo que com as coisas que estão longe. Um imenso, obscuro horizonte se estende diante de nossa alma; perdem-se nele nossos sentimentos, bem como nossos olhares, e ardemos, sim!, do desejo de dar tudo o que somos para saborear plenamente as delícias de um sentimento único, enorme, sublime... E quando chegamos lá, quando o distante se tornou aqui, tudo é o mesmo que antes – continuamos na miséria, em nossa esfera restrita, e nossa alma suspira pela ventura que lhe escapou.”

GOETHE, Johann Wolfgang. Os sofrimentos do jovem Werther / Johann Wolfgang Goethe; tradução de Leonardo César Lack. São paulo: Abril, 2010. P. 39 (Carta de 21 de julho).