sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Coringa (2019): risadas em busca de um corpo



O filme “Coringa” (Todd Phillips, 2019) começa mostrando Arthur Fleck, que sofre com gargalhadas, dissonantes dos seus sentimentos, e sobre as quais não tem controle. Explicadas como consequência de uma condição médica num cartão que Arthur entrega a seus interlocutores, suas risadas são incômodas principalmente para si mesmo, que passa por dificuldades em relação ao emprego e ao serviço público e gratuito onde recebe tratamento.

Lembrando “Alice no País das Maravilhas” (Lewis Carrol), o riso, no filme, é deslocado, como o do Gato de Cheshire que, antes de virar um sorriso sem corpo, explica à Alice que são “todos loucos. Eu sou louco. Você é louca.” Na minha leitura do longa, as risadas - que se precipitam fora do lugar e anacrônicas para Arthur - desaguarão no Coringa, cuja loucura lhes dá espaço e algum sentido, ainda que subversivo e violento.

Como palhaço ou comediante, os risos de Arthur soam anacrônicos e tristes, sem ecoar naqueles que o cercam. Todavia são os risos que acabam criando um corpo (persona) para os encarnar e gozar. O que Fleck não conseguiu nas profissões, o Coringa encontra na subversão, já sem se preocupar com o riso dos outros.

Se Arthur era uma vítima (paciente) sem razões para sorrir, o Coringa torna-se agente do caos, e solta gargalhadas, sem se constranger, expressando seu sentimento de alegria ao agir (reagir) com violência. Em vez de implodir, ele explode; sem medo ou vergonha, ele dança e se diverte no caos; seu riso agora vem de dentro e ecoa, violento e destrutivo, entre os marginalizados.

Arthur é ridicularizado ao se tornar uma piada. Já o Coringa conta suas próprias “piadas”, agressivas e fatais. No início, opostas aos sentimentos do “paciente” sob controle, suas risadas acabam se transformando em manifestações coerentes com o interior da personagem descontrolada. As gargalhadas perturbadoras persistem, porém o incômodo se desloca do protagonista para seus interlocutores. O algoz fantasiado confessa seus crimes e ri, loucamente. A plateia se divide, uns com medo, outros com raiva. Agora é a sua vez de rir, e ele gargalha.




quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Afinal, quem são os parasitas?


[Análise com spoilers] A malandragem não é um fenômeno apenas brasileiro; pode ser sul-coreano, como mostra o filme Parasitas, do cineasta Bong Joon Ho. O filme expõe como a globalização torna parecidas pessoas de qualquer grande cidade do mundo dominado pelo capitalismo. A família rica sul-coreana poderia ser carioca, do Leblon, bairro nobre da zona sul do Rio: não só em relação ao emprego, à mansão, aos padrões de consumo, modo de se vestir, mas também nos trejeitos, como se o “american way of life” fosse a única maneira de ser um vencedor ou, pelo menos, de exteriorizar esse sucesso – talvez em virtude do consumo em massa dos filmes e séries estadunidenses pelo mundo afora. É como se a ideologia dominante - a que por estarmos imersos sequer percebemos – se sustentasse no modo que os estadunidenses representam as pessoas nos seus produtos exportados pro resto do planeta, como séries e filmes, por exemplo.

E o que é malandragem? É esse jeitinho, muitas vezes talentoso, de se dar bem, de persuadir os outros a entregar algo desejado, de criar uma suposta relação de confiança, quando, na verdade, o objetivo principal é de interesse pessoal e material por parte do malandro. Em estruturas de desigualdade socioeconômica, as pessoas mais pobres lançam mão dos recursos de que dispõem para acessar aquilo que os mais ricos têm de sobra: dinheiro e tudo o que ele pode proporcionar em sociedades como a nossa. E agem assim sem usar violência, que é outro meio comum para conseguir bens necessários e/ou desejados em contextos de desigualdade.

No Brasil - último país do ocidente a acabar com a escravidão, figurando entre os 10 estados com maior desigualdade no mundo [1] -, a malandragem se tornou parte da cultura. Porém, com o crescimento da desigualdade causada pela adesão de vários países às políticas neoliberais [2], estas maneiras transversas, criativas e ardilosas de obter recursos parecem ter se espalhado por diferentes culturas. Da mesma forma que a globalização atingiu diferentes sociedades, alterando relações de produção e consumo, também parece ter influenciado o modo de agir e os princípios das pessoas envolvidas neste processo.

Também penso ser importante frisar algo curioso acerca da ideia de malandragem: de acordo com o que vejo (senso comum) sobre o fenômeno, é que malandros geralmente são representados como pessoas despossuídas e espertas o bastante para enganar e se dar bem. Mas será que a classe dominante não é malandra, ao fingir gentileza e civilidade diante dos explorados e ao criar e reforçar discursos como o da meritocracia, por exemplo, nos quais a desigualdade estrutural e sistêmica é atribuída à ausência de esforço dos mais pobres? Ou mesmo a ideia de bom funcionamento das leis e do “Estado democrático”, muito úteis para dar uma aparência de justiça e igualdade, bem como para manutenção de um status quo bastante desigual que lhes beneficia? Parece-me que a malandragem institucionalizada não recebe o devido nome, talvez por ser um fundamento da ideologia dominante, a qual passa despercebida da maioria que por estar imersa nela não a enxerga.

A narrativa cinematográfica apresenta duas famílias: uma pobre e outra rica, as duas formadas por quatro pessoas: pais que moram com um casal de filhos, sendo os pobres um pouco mais velhos que os ricos. Junto com uma pedra relativamente grande oferecida de presente como um amuleto de riqueza/prosperidade ao filho do núcleo despossuído/mais carente, o amigo universitário lhe faz uma proposta: como vai estudar no exterior, pretende indicar o amigo pobre para dar aulas particulares de inglês à filha adolescente da família abastada. E aqui já é exigido um desvio ético, pois terá que se apresentar como universitário, mesmo sem ter passado no vestibular, que tenta há anos. Desempregado, como o resto de sua família que vive de trabalhos informais e temporários, o jovem aceita a indicação e, com um falso documento feito por sua sagaz irmã, se apresenta à família rica.

Em contraposição ao seu lar apertado e localizado numa espécie de porão devassado e alvo de bêbados que ali urinam, o jovem pobre vai para um bairro de ricos, onde é recebido por uma empregada/governanta numa mansão espaçosa, iluminada e arejada, com um belo jardim. Enquanto sua casa fica num subsolo, obrigando-o a descer para poder entrar, a mansão fica no alto, simbolizando o patamar dos vencedores, dos bem-sucedidos e também um local aberto, claro e limpo, diferente daqueles que costumam abrigar insetos asquerosos como baratas.

Acerca da disparidade entre a altura das moradias, revelando a desigualdade socioeconômica, ao colocar os ricos no alto e os pobres sempre abaixo, merece destaque a cena em que, sob um temporal, três dos empregados são forçados a fugir da mansão e, a caminho de casa, descem muito, como a água da chuva que escorre para os bueiros, e ao chegarem ao porão, que está alagado. Ainda sobre a altura, chama atenção a localização de um objeto específico na casa dos pobres: o vaso sanitário, que fica em um patamar mais próximo do nível da rua, acima dos moradores, reforçando o rebaixamento deles, talvez para o esgoto.

Também há distinção nos sons, que na casa dos trabalhadores é abafado e cheio de ruídos – a denotar agitação e uma certa sensação de confusão -, enquanto na mansão os sons são mais puros e se percebem inclusive silêncios, a evidenciar tranquilidade, inexistente no porão dos empregados. Também há diferença nas cores predominantes em cada uma das residências, como apontou o youtuber Bruno Albuquerque [3], que destacou o uso de cores quentes na mansão e de cores frias na residência pobre. Durante todo o filme, há imagens e diálogos que fazem referência/s a parasitas, geralmente bem evidentes (o que torna desnecessário comentar a maioria deles) e associados à família pobre, ao menos numa análise mais superficial.

A malandragem pauta toda a relação desenvolvida entre os núcleos, desde a apresentação como universitário até as manipulações usadas para fazer com que toda a família do professor particular de inglês recém-contratado venha a assumir todas as vagas de emprego para servir a família rica. E isto implica forjar situações para causar a demissão do motorista e da governanta e indicar de forma ardilosa os novos ocupantes das vagas criadas.

Neste processo, é interessante destacar uma estratégia da família pobre que se assemelha ao que alguns insetos fazem para sobreviver na natureza e que pode passar despercebida no filme: a mimetização, que é a capacidade de copiar hábitos, cores ou formas de outro organismo ou ambiente para se proteger; uma espécie de imitação ou camuflagem. E neste ponto, creio que haja uso de metalinguagem, pois os atores representam personagens que fingem ser outras pessoas (com formações, origens e experiências distintas) por meio de atuação, havendo uma cena em que os malandros repassam as falas de um roteiro criado para o pai, num claro ensaio da dramatização arquitetada para enganar os ricos e convencê-los a satisfazer os interesses da trupe teatral.

E a ideia de mostrar as personagens da trama como animais irracionais (insetos, parasitas), animalizando seres humanos, se faz presente de várias formas, inclusive no uso do olfato como meio de se perceber a diferença entre os “bichos” de diferentes classes. Não é nada comum que pessoas - ainda mais habitantes de cidades grandes - usem o olfato para analisar e (re)conhecer outros indivíduos no convívio social. E é justamente o cheiro e a reação que ele provoca que denuncia as diferenças essenciais entre os núcleos e estabelece o maior conflito exposto na narrativa. Mesmo que camuflados em personagens bem construídos para ludibriar os ricos, os pobres não conseguem disfarçar o “fedor” inerente à sua condição precária e subalterna, nem o vínculo familiar que os une. O cheiro que exalam é igual, segundo constata o filho caçula dos abastados, e o “fedor” do motorista (pai “fracassado”) ultrapassa os limites tão caros ao pai bem-sucedido.

E é por este destaque no ato de farejar da família rica – que, a princípio, pode parece ser mais humana e atuar como hospedeira, não parasitária, pois apresenta modos limpos, belos, gentis e desenvolvidos - e também pelo ato violento do pai pobre - que acaba matando o rico, reagindo à expressão de nojo que este faz ao mover o corpo de outro despossuído -, além de todo o contexto de relativo ócio do núcleo abastado e, ainda, a evidente superioridade da inteligência/perspicácia da família pobre que subjuga a outra, muito ingênua e fraca em suas defesas ao espaço extremamente importante e vulnerável do lar; é por tudo isto que ocorre uma inversão (ou, pelo menos, uma aproximação ou ressignificação) sobre o papel de cada família na trama, com uma mudança fundamental no enquadramento de parasita/hospedeiro.

Isto porque um ser parasitário não é capaz de matar o hospedeiro de forma rápida e atuando individualmente, como fez o pai pobre e mais: o motorista agiu como predador, que nunca se confunde com o parasita, que suga mas preserva o hospedeiro, até porque depende da vida dele para sobreviver; entre humanos e animais irracionais, o ato de farejar pertence aos bichos, menos desenvolvidos nos outros sentidos e estratégias sócio-culturais avançadas; a supremacia dos meios ardilosos decorre da astúcia refinada dos pobres que invadiram com facilidade o lar dos abastados, que não foram nada inteligentes ao permitir o acesso de estranhos ao local de habitação, tão vulnerável. Tanto é assim que os ricos já haviam permitido a invasão do marido da ex-governanta ao seu lar e o pai vencedor acabou assassinado pelo empregado que ele mesmo admitiu para que o servisse de perto, numa proximidade física extrema, mas que no nível simbólico entendia como bem afastada, apesar do fedor que desrespeitava as fronteiras defendidas pelo patrão.

Todas estas evidências provam que os verdadeiros parasitas são os ricos, embora também possa se interpretar as situações destacadas como uma espécie de jogo de equiparação entre os núcleos, os quais, cada um à sua maneira, interagem como parasitas e hospedeiros um do outro, diante da dinâmica da apropriação dos recursos de que dispõem: mão de obra dos despossuídos e “capital” dos bem-sucedidos, no fim a contraposição de classes, proletários e burguesia. Coloco o termo contraposição, pois não há luta coletiva e engajada, apenas revoltas individuais, sem qualquer consciência de classe e organização coletiva.

E esta inversão sobre quais as personagens que representam os verdadeiros parasitas lembra “A metamorfose”, de F. Kafka, porque, na novela, aquele que se transforma em inseto é justamente a personagem Gregor Samsa, o filho que se sacrificava trabalhando numa função exaustiva e marcada por sua exploração para pagar uma dívida dos seus pais e sustentar a família, a qual tem a mesma composição daquelas mostradas no filme: mãe, pai e casal de irmãos.

Na minha interpretação desta obra literária, suponho que Gregor contrai uma doença grave - tuberculose, talvez - e por isso é forçado a parar de trabalhar, motivo pelo qual passa a se ver e a ser visto como um inseto, um parasita. Esta leitura se baseia no fato de que Gregor não se preocupa com sua transformação, mas, sim, com o seu atraso para o trabalho, além de o protagonista considerar a ideia de justificar sua ausência dizendo ao seu empregador que estava doente [4]; isso sem mencionar outros trechos da obra que indicam se tratar de uma enfermidade grave, progressiva e possivelmente contagiosa. Tudo a resultar numa reificação de Gregor, que somente poderia ser considerado humano, se fosse produtivo, capaz de trabalhar.

Também vejo uma inversão nesta novela de Kafka, tendo em vista que, embora o filho se transforme em inseto, são os pais que atuavam como parasitas ao se beneficiarem, ou melhor, dependerem totalmente da exploração do trabalho de Gregor que, mesmo metamorfoseado (ou gravemente doente), parece mais sensível e humano, se comparado com as outras personagens, mostrando-se até capaz de se comover diante da música executada por sua irmã no violino e se revoltar com os modos rudes dos inquilinos durante a bela apresentação, tolerados por seus pais que priorizavam os aluguéis pagos pela locação de um quarto na casa. [5]

Outra semelhança entre as narrativas é o uso de frutas como se fossem armas para atingir e causar danos a certas personagens. No filme, a família pobre usa pêssegos contra a ex-governanta, extremamente alérgica a esta fruta, cujo pó da casca foi usado, de modo eficaz, para causar sua demissão e também para enfraquecê-la numa briga, ou seja, o fruto foi utilizado como uma arma a fim de repelir uma pessoa indesejada. Na novela, Gregor-inseto é atingido por uma maçã que, atirada por seu pai para afastá-lo, acaba por penetrar nas suas costas, causando um sofrimento duradouro ao protagonista, já que esta grave ferida é abordada diversas vezes na trama.

Este deslocamento em relação à função principal e ordinária de alguns objetos também aparece noutra cena de “Parasita”, na qual um espeto de churrasco, com carnes nele enfiadas, é usado como uma espécie de punhal para ferir uma personagem. Do mesmo modo, uma lâmpada da mansão serve como meio de envio de mensagens em código morse; a privada situada no alto do banheiro dos empregados acaba servindo como refúgio no momento da enchente; e a pedra, recebida como um amuleto de prosperidade, transforma-se num instrumento contundente usado numa tentativa de homicídio.

Assim, tal como as frutas (maçã e pêssego) deveriam servir como alimento e acabam deslocados para dar vazão ao ódio e ferir pessoas, vários outros objetos são transformados (deslocados) de forma bastante peculiar e por isso inesperada, de modo que se pode observar uma relação direta com a metamorfose (desvio) dos personagens no decorrer da trama: como a maioria dos objetos citados, os empregados acabam relacionados a atos de violência, o que parece impossível até a metade do filme.

E esta desfiguração também acontece com as risadas no longa: depois de se recuperar dos ferimentos na cabeça, o jovem pobre passa a rir de tudo, inclusive de tragédias, soltando risadas inadequadas e anacrônicas que me fizeram lembrar do filme “Coringa”(Todd Phillips, 2019), no qual também se veem muitos risos e gargalhadas da mesma natureza, sofridas por uma personagem também marginalizada. Pessoas em dificuldade que riem sem razão pra rir; e o riso exigido dos pobres (empregados), como na cena da festa de aniversário do menino rico, em que o patrão faz o motorista se fantasiar de índio e, ainda, exige que o empregado sorria, finja estar contente com a surpresa planejada para animar o filho caçula de seus patrões. Diante da seriedade do empregado (cuja casa foi inundada na noite anterior), que não sorri nem entra no clima da brincadeira imposta, o rico fica incomodado e, deixando a gentileza de lado, diz ao empregado que ele está sendo pago pra fazer aquilo. Não são só as coisas e personagens que se deslocam e transmutam, mas também o riso. Em síntese, personagens que representam pessoas objetificadas acabam lançando mão de atos agressivos, nos quais usam coisas ou mesmo expressões - algumas até um tanto personificadas - desvirtuadas de seus atributos essenciais.

Outro ponto a se destacar é a descoberta de que o marido da ex-governanta vive numa espécie de bunker desprezado pelos ricos, diante da história que revela medo e covardia que levaram à construção do esconderijo, à época valorizado e, atualmente, motivo de vergonha. A trama surpreende ao revelar que a ex-governanta, mostrada como uma empregada muito eficiente e profissional, esconde seu marido dentro da casa dos patrões. Esta surpresa, que poderia unir os trabalhadores pobres e subalternizados, não tem este efeito agregador, que se prendem às diferenças, ainda que irrelevantes, e entram em conflito, demonstrando a divisão e desorganização que esvaziam a possibilidade da ação coletiva de classe capaz de alterar a estrutura do sistema. Mais uma vez prevalece o individualismo, sem dúvida um reflexo do acontece na prática, diante da ideologia capitalista em que as personagens estão imersas.

De qualquer modo, é bastante relevante no simbolismo da narrativa que o menino rico veja o miserável morador do seu porão como um fantasma: numa estrutura de desigualdade e concentração de renda e patrimônio, os miseráveis – os despossuídos alijados à marginalização - assombram aqueles que detém riquezas e vivem na fartura. A cena da aparição fantasmagórica é emblemática, já que a criança estava se lambuzando ao comer um bolo de aniversário de madrugada (uma refeição farta e fora do horário regular) degustada sob a luz forte que emana da geladeira lotada de alimentos de todo tipo e este menino rico é assombrado por aquele ser esquálido que surge de um patamar inferior e da escuridão. A mensagem parece clara: os poucos vencedores que vivem na fartura serão sempre assombrados pela massa de perdedores miseráveis.

Não há como deixar de mencionar a explicação que o pai pobre dá ao seu filho quando questionado sobre o plano que alegou ter pra lidar com a situação de conflito com a ex-governanta e o marido no bunker: “meu plano é não ter plano, porque aí nada pode dar errado, já que não há nada arquitetado, e você pode fazer o for necessário na hora que a situação se apresentar - pode fazer qualquer coisa -, sem se preocupar com regras e princípios preestabelecidos.” Parece uma estratégia de agir sem considerar princípios éticos e que acaba por fazer prevalecer a emoção e os instintos (animalescos) de sobrevivência sobre a razão, soando como um discurso de desespero de alguém que já desistiu de pensar e se preparar, diante de muitos planos frustrados. Eles fizeram um plano para iludir os ricos mas, ao surgirem imprevistos, o pai afirma que é melhor não ter planos.

As perguntas íntimas e um tanto ousadas, considerando a relação recente e de subordinação, que o motorista faz para seu chefe, indagando diretamente sobre o amor do patrão por sua mulher, podem ser interpretadas como uma curiosidade acerca dos sentimentos do jovem rico, no intuito de encontrar alguma identificação (ou sinal de vida real a gerar empatia) no representante de uma classe tão distinta e talvez isenta de emoções, dada a ausência de expressão dos sentimentos. A distância imposta pelo patrão no âmbito social, que revela uma tentativa de total impessoalidade, choca-se com a proximidade física e a convivência constante, dois elementos que seriam suficientes para motivar mais diálogos e, consequentemente, a revelação gradual de pensamentos e sentimentos entre indivíduos de uma mesma classe, ainda que tal exteriorização da intimidade pudesse ocorrer por vias indiretas e/ou por meio da percepção de outros sinais, subjacentes ao conteúdo literal das frases trocadas.

No entanto, a proibição às conversas, mesmo que tácita, acaba ensejando o questionamento direto feito pelo empregado com o objetivo de descobrir se o vínculo do casal de patrões se baseia no amor, o qual depende da sensibilidade inerente às elevadas capacidades humanas. O interesse no amor também reforça a natureza de hospedeiros dos despossuídos. Os ricos parasitas, ao menos superficialmente, parecem ter uma vida tão estável, confortável e perfeita, que nem parecem gente de verdade aos olhos dos mais pobres, que enfrentam inúmeras dificuldades inerentes à sua condição. Mais um elemento a indicar que os pobres seriam mais humanos, reais e vivos que os endinheirados, mas não pela animalização destes e sim por sua metamorfose em algo semelhante a robôs.

Nesse contexto interpretativo, a ação parasitária dos integrantes da classe dominante - com todas as nuances de distanciamento e impessoalidade ressaltadas - se apresenta como um mecanismo automático de caráter desumano que reforça a falta de empatia entre membros de diferentes classes. Ou seja, para que se preserve a situação de desigualdade e exploração faz-se necessário deixar bem claros os limites - tão defendidos pelo patrão, que não tolera qualquer invasão, nem pelo cheiro -, de modo a marcar a distinção entre as classes, negando-se aos subalternizados quaisquer elementos que pudessem torná-los de algum modo semelhantes aos exploradores, o que poderia se tornar uma ameaça ao status quo. Mesmo quando o patrão responde que ama sua esposa ao motorista, este parece não se convencer sobre a veracidade do conteúdo da resposta, pois refaz a pergunta em outra oportunidade, evidenciando-se a dificuldade de identificação e empatia, assim como a clara distinção entre parasitas e hospedeiros tão relevante à narrativa do filme.

E o bloqueio às conversas parece ser reforçado pelo modo como é usado o código morse no filme: a partir do esconderijo (quase prisão) no bunker, os homens pobres, que de algum modo violaram as leis do sistema - seja por não conseguir pagar os empréstimos (marido da ex-governanta) ou por ter matado um homem (pai e motorista) , mandam mensagens por meio de código morse, piscando lâmpadas na mansão. Agradecimentos, explicações e até pedido de socorro, e se trata de uma tentativa de comunicação sem ter meios de receber respostas ou sequer saber se alguém viu e entendeu o que foi dito, tudo a demonstrar a dificuldade ou até mesmo impossibilidade de comunicação e diálogo. A diferença social é tão grande que já não há como dialogar, então mensagens em código morse são enviadas de baixo, do fundo, e ignoradas pelos mais ricos, como o pedido de socorro feito pelo marido da ex-governanta que, embora visto e decodificado pelo filho caçula abastado, não provoca qualquer reação.

Por tudo isso, vemos que a narrativa do filme se aproxima bastante da novela de Kafka (publicada em 1915), diante das metamorfoses, da impossibilidade dos diálogos, das inversões e dos deslocamentos. E o mais intrigante é observar como os finais se parecem: em ambos ocorre a morte de um membro da família e, não muito tempo depois, as personagens sobreviventes se entregam ao sonho de alcançar prosperidade financeira para conseguir uma moradia melhor. O sonho da casa própria, o sonho da prosperidade, o sonho de ascender para a classe rica; o “sonho” que é de reprodução do sistema e não de rompimento. Um “sonho” nada original, individual e com roteiro (previamente) elaborado de acordo com a malandragem dominante, sonhado por aqueles que dormem nela imersos: o “sonho” de passar de hospedeiro, explorado, a parasita, sem arranhar as estruturas.


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Notas e referências:




[4] KAFKA, Franz. A metamorfose. Tradução de Modesto Carone. 11ª ed., São Paulo: Brasiliense, 1991. Páginas 7/11.

[5] KAFKA, Franz. A metamorfose. Tradução de Modesto Carone. 11ª ed., São Paulo: Brasiliense, 1991. Páginas 73/75.

Reportagens sobre a Coreia do Sul:








quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

A rua, o prédio e o povoado: passado, presente e futuro. O som ao redor, Aquarius e Bacurau. A trilogia do cineasta Kleber Mendonça Filho.


Aquele grupo de vigias disse ontem:
 - Antigamente, vocês nos escravizaram e mataram, “mas esse ano” nós não morremos, e ainda faremos vocês pagarem.
 Esta jornalista aposentada diz hoje: 
- Sou um pouco mais livre e, mesmo sozinha, agora eu luto por esse meu pedacinho há pouco conquistado.
Esse povo de Bacurau dirá amanhã:
 - Em anos futuros, teremos criado nosso espaço e estaremos vivenciando nossa liberdade: se vierem aqui, venham na paz. 

Se na trilogia do cineasta Kleber Mendonça Filho (com Juliano Dornelles na terceira produção) - composta por “O som ao redor” (2013); “Aquarius” (2016); e Bacurau (2019)-, uma personagem, ou um grupo delas, quisesse sintetizar a essência da narrativa numa única frase - de resgate, resistência ou aviso/prenúncio -, penso que estas aí em cima seriam escolhas razoáveis, ainda mais se imaginarmos como interlocutores aquelas personagens que agrediram, agridem ou tentarão agredi-los. (A fim de evitar a repetição exaustiva dos títulos dos filmes, vou comentá-los sempre na ordem cronológica e/ou usando números, de acordo com a data de lançamento acima descrita). 

As três obras dialogam de várias formas e a mais evidente é o tratamento dado ao espaço físico, que pode ser lido como personagem, talvez protagonista. Primeiro a rua, depois o prédio (apartamento) e, por fim, o povoado: todos apresentam disputas dos locais. Talvez um pouco menos óbvio que o espaço, mas não menos relevante e bastante claro, vemos a questão do tempo: o primeiro filme lançado - “O som ao redor” - trata do passado (resgate de uma violência sofrida anteriormente); o segundo - “Aquarius” -, do presente (resistência individualizada/atomizada a uma agressão atual, com ataque e contra-ataque simultâneos); e o terceiro – “Bacurau” -, vai ao futuro (resistência organizada coletivamente para lutar contra uma violência que ainda virá).A relação entre “ontem, hoje e amanhã” está em tudo que os longas apresentam, até nas aberturas de cada um, com destaque às músicas escolhidas para acompanhar as cenas iniciais. Os dois primeiros filmes se iniciam com fotografias antigas e o último, com filmagens feitas do espaço - talvez de uma nave , que acabam mostrando de cima o Brasil e a região Nordeste. 

E ainda há um detalhe acerca dos modos como as imagens inaugurais são registradas e mostradas:
1. horizontalidade: as fotografias retratam o mesmo plano do fotografo, de frente, todas numa relação horizontal;
2. Aquarius se inicia com fotos no mesmo plano (horizontalidade) que, em seguida, vão se afastando e subindo, aproximando-se de uma captação vertical, mas ainda de modo oblíquo;
3. Bacurau começa nas estrelas e vem descendo, de modo mais verticalizado, para a terra onde se dará o conflito. Desta forma, percebe-se a sequência entre as aberturas, em vários graus.

E aqui vale o destaque às músicas de cada abertura: no primeiro longa, ouvimos o som de batuques, percussão, sem vozes, algo que remete à ancestralidade afro-brasileira; no segundo, ouvimos “Hoje”, de Taiguara, que até no título da faixa remete ao presente; e, em Bacurau, “Não identificado”, na voz da Gal, que trata do futuro até nas promessas do eu poético (“Eu vou fazer uma canção pra ela ...”), que é uma canção (criação) brasileira, pra ser lançada amanhã (ainda a ser criada) e que “há de brilhar” “como um objeto não identificado” (é tão nosso e tão novo que ainda não tem nome). Essa relação íntima entre a letra da música e as tramas é algo constante no trabalho do cineasta pernambucano, como já comentei nos textos sobre cada uma das obras.

Acerca da violência, é importante deixar logo registrado que os protagonistas “proletários” (entre aspas porque em Bacurau há superação desta classificação, sendo ex-proletários) NUNCA inauguram o combate; os (ex)proletários sempre são agredidos antes pela burguesia, pelos mais poderosos. A violência das heroínas é sempre uma reação a uma agressão, nunca inicial. Só depois de atacados, é que respondem, para resgatar o passado, resistir no presente ou se defender no futuro, no qual já terão criado, coletivamente, algo novo pelo que vale a pena lutar.

Sobre a liberdade, a relação que vejo é a seguinte: ontem vocês usurparam nossa liberdade; hoje, vocês estão tentando destruir minha pequena e limitada “liberdade” recém-concedida (falsa liberdade, impressão de liberdade, mas não verdadeira já que somos “livres” para sermos como vocês); amanhã, teremos construído - coletivamente - nossa liberdade, essa, sim, criada e conquistada (não concedida), e se vocês não vierem na paz... 

Em síntese, a meu ver, a relação tempo/espaço na trilogia se dá da seguinte maneira:

Em “O Som ao redor”, a classe pobre de ex-escravizados - grupo desterritorializado - vem resgatar o passado em face dos latifundiários de ontem, os quais detinham, de certa forma, tanto o poder econômico quanto o político. Trata-se de um grupo (vigilantes) que veio do interior para a capital, a indicar a migração campo/cidade grande, lembrando os retirantes, os alijados, os marginalizados, aqueles aos quais se nega o território, inclusive o de moradia. Sem espaço próprio, ocupam intermitentemente a rua, para depois invadirem a propriedade privada do algoz e aí se vingarem. O plano é de resgate do que houve ontem: podemos parecer vigias que vieram te proteger, mas não somos e não esquecemos sua agressão. No tocante à identidade, parece-me que são colocados como oprimidos, colonizados, que vem se vingar e lutar por uma nova identidade. Nos momentos finais, se fala da violência original cometida pelo fazendeiro rico: “Por causa de uma cerca...”. Violência original não só da personagem, mas talvez da humanidade, pois, como disse Jean-Jacques Rossseu, “O primeiro homem que inventou de cercar uma parcela de terra e dizer "isto é meu", [...] , foi o autêntico fundador da sociedade civil. De quantos crimes, guerras, assassínios, desgraças e horrores teria livrado a humanidade se aquele, arrancando as cercas, tivesse gritado: Não, impostor.” E aqui se revela uma narrativa sobre o capitalismo e seu modo de produção, reprodução e opressão.

Em “Aquarius”, há uma protagonista individual - o que difere dos outros dois longas – e ela está num espaço seu, na cidade grande, de modo a representar a classe média brasileira, isolada no seu apartamento, já na qualidade de proprietária dum pequeno espaço de moradia, mas sem consciência de classe nem identificação mais profunda com os mais pobres. No que se refere à identidade, vejo uma certa imitação do opressor; ainda sem identidade própria, imita os dnos do poder. Ela luta, no presente e de forma isolada, contra o poder econômico nacional representado por uma empreiteira. Aqui se vê a hipertrofia do poder econômico e o esvaziamento do poder político, tão comum em tempos neoliberais com redução do Estado. Clara, praticamente sozinha, lutando contra uma sociedade empresarial, mostra bem o individualismo da classe média em face da organização coletiva dos donos do capital. E Clara parece reforçar as estruturas do sistema vigente, porque ela não deixa de ser uma “vencedora” dentro das regras impostas e de acordo com a falácia da “meritocracia”, pois teria emergido da pobreza, como sugere um diálogo racista no filme. Aqui se revela como parte do povo oprimido, proletário, pode se iludir com os sistema capitalista e achar que tudo se encerra em defender um espacinho individual – mas logo é lembrado que, se incomodar a burguesia, vai ter que lutar sozinho. Aqui, o oprimido ainda se ilude e sonha que seria uma maravilha ser parte da burguesia. Um pernambucano porreta dizia: “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor.” Paulo Freire avisou…

E, em “Bacurau”, um povoado que ainda será construído, num futuro próximo - já instalado num território “seu”, ocupado de forma coletiva, partilhada, comunitária e nova; não reproduzindo os modelos capitalistas, mas inaugurando uma forma autêntica -, vai superar a divisão em classes (ao menos em sua comunidade) com práticas de democracia direta, participativa e talvez de índole anarquista, ainda a se definir e, por isso, livre de definições velhas. No terceiro longa, o pêndulo da movimentação retorna ao interior/campo. E é a gente de Bacurau, coletivamente organizada, que representa a solução final da trilogia, resistindo amanhã contra os poderes políticos locais que já se venderam ao poder econômico internacional. O povoado revela a política em face da politicagem, a cidadania no lugar dos direitos do consumidor, o caminho para uma revolução – rompimento com o status quo, e não mera reprodução do sistema dominante. Nos dois primeiros longas há reação dos oprimidos; no último, há AÇÃO dos ex-oprimidos que provoca uma reação dos autoproclamados opressores. A gente de Bacurau não passa do papel de oprimida para se tornar opressora, mas cria o novo, transforma, liberta e aí a reação a esse futuro pós-classes vem de um passado capitalista que se originou de uma cerca e que deseja destruir tudo que não tenha a cerca como fundamento. Quanto à identidade, o povoado consegue criar uma sua, própria, nova, genuína. Bacurau derruba as cercas da propriedade privada e trava o modo de produção capitalista, ao criar “um anti-computador sentimental” cheio de amor. E mais uma vez, Paulo Freire: “A educação é um ato de amor, por isso, um ato de coragem.” e “Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção.” e “Nenhuma pedagogia que seja verdadeiramente libertadora pode permanecer distante do oprimido, tratando-os como infelizes e apresentando-os aos seus modelos de emulação entre os opressores. Os oprimidos devem ser o seu próprio exemplo na luta pela sua redenção”. Nosso caminho não está numa teoria nem na história, há de ser criado ainda. Ainda “há de brilhar” “como um objeto não identificado”.

Os três filmes os abordam sistemas de produção ao longo da história, primeiro com um capitalismo mercantilista, de colonização; depois, um capitalismo mais moderno e ainda de viés produtivo (ainda nacional, como a empreiteira do filme Aquarius, e ainda com algumas regras); por fim, um capitalismo financeiro, de caráter especulativo, internacional, muito bem representado no jogo (game) que tenta se impor a Bacurau. As regras mudam, não são previamente conhecidas (desregulamentação) e mesmo que o povoado não queria jogar, o jogo lhe é imposto. Não é à toa que por várias vezes a gente de Bacurau pergunte aos assassinos por que eles estavam fazendo aquilo... 

Os títulos também dizem muito: “O som ao redor” é o do povo vindo de lá onde foi alijado e explorado, do passado; o povo chegando perto. “Aquarius” é o presente, nossa era, como dizem alguns, e que tem semelhanças com o signo que a representa, como a comunicação veloz, a busca pelo que ainda virá e a luta contra o autoritarismo, ainda que marcada pelo individualismo nesses tempos. “Bacurau”, ave nativa também conhecida como curiango (quase Coringa), curiango-comum, ju-jau, carimbamba, amanhã-eu-vou (em Minas Gerais), é sobretudo indígena, no sentido de que ocupava uma área antes da colonização e que, após a invasão, resiste, de modo a não se integrar aos invasores. “Amanhã-eu-vou” deriva do seu cantar. Até o pássaro título avisa sobre o futuro.

Ao assistir aos longas como uma só história, podemos tentar observar a divisão clássica em três atos, cada um dos filmes representando o que seria essencial em cada ato. É óbvio que esta divagação decorre da análise de um contexto suposto sobre a ligação entre cada narrativa, sendo certo que cada um dos longas apresenta divisões internas de atos. Ou seja, aqui se propõe uma ideia de divisão, que não representa necessariamente o que de fato se realizou. Nesse contexto, conversando com o saudoso Belchior:
1. apresentação: dos grupos (pertencentes a classes) antagonistas e do contexto histórico com raízes no passado (ontem morremos, agora nos sobrou o resgate);
2. confrontação: resisto hoje (neste “ano eu não morro” - eu luto); e
3. resolução: construímos um espaço nosso e, se vocês não vierem em paz, pra nos defendermos, nós te mataremos no ano que vem.

Ainda divagando, se a trilogia fosse um livro, um romance, e fôssemos analisar o narrador: em “o som ao redor”, os oprimidos teriam sido totalmente narrados pelos opressores, objetificados, chegando no máximo a coadjuvantes. Em “Aquarius”, o oprimido pode até se destacar como uma personagem mais relevante, achando-se até protagonista, mas apenas na exata medida em que imita o opressor (reage dentro da estrutura - não age), que continua como narrador, dono da trama e pronto pra matar qualquer oprimido que ouse disputar a elaboração e o curso da história (alguns chegam até a sustentar ao fim da história – sem história, sem disputa). Em bacurau, os ex-oprimidos alcançarão, coletivamente, a liberdade real de narrar, construir, criar novos processos, originais, fora da estrutura e, por isso, não reativos e sim ativos: não ocuparão o papel de opressor: passarão de ex-oprimidos para uma história completamente outra, um novo romance. E saberão - unidos - defender sua narrativa coletiva, caso outros pretensiosos narradores não venham em paz. Pode haver diálogo, mas pode haver luta. Depende de como vocês vierem.

No tocante aos anos de lançamento, só tenho a dizer que o primeiro foi lançado em 2013, ano das “jornadas de junho”; o segundo, em 2016, ano em que Clara se viu só e Dilma sofreu o golpe; o terceiro, em 2019, a 17 km daquele que tomou posse - e é bom que, se vier, venha em paz. 

Salvo engano, apenas um ator trabalha nos três filmes, o talentoso Rubens Santos. E os personagens que ele encarna em cada um dos longas dizem muito: no primeiro, ele é Adaílton, um empregado, de uniforme, oprimido, porém disposto a revidar as agressões cotidianas. No segundo, Rubens interpreta Rivanildo, o qual começa como empregado da empreiteira que ataca Aquarius, mas depois deixa de ser empregado e, sem uniforme, vai ajudar Clara, heroína, sem querer nada em troca, apenas pelo certo – e é simbólico que uma revelação tão crucial para a resistência da jornalista (classe média) venha de um desempregado pobre, capaz de deixar o medo dos poderosos de lado para ajudar a “oprimida” proprietária de um apartamento em frente à praia. Em Bacurau, ele é Erivaldo, que abre o filme, sem uniforme, livre, indo e vindo com a água, tão essencial, em seu caminhão-pipa. Trabalhador digno, que dá carona a gente de Bacurau que retorna à terra. Motorista que admira Lunga e que não fica olhando pelo retrovisor naquela área do povo, mesmo quando seu caminhão é alvejado; ele olha pra frente, pro futuro, como tudo em Bacurau.

E pra fechar com falas – do mesmo modo que abrimos:

- Não tivemos espaço; lutamos e morremos; você nos via como coisa e muitos de nós acreditaram na visão de vocês; alguns resistimos (re-existimos) e viemos provar a custa do seu sangue. Sua visão te traiu e alguns já não acreditam em vocês.
- Eu luto por esse pedacinho recém-concedido; você quer me ver como uma pessoa menor diante da sua organização empresarial; resisto isolada e provo minha força agora. Nunca acreditei na visão de vocês sobre mim. E penso que nem vocês acreditam. Mas no fundo acredito na visão que vocês têm de si mesmos.- Teremos construído um espaço nosso, coletivamente livre; te aviso que lutaremos, se vocês (you) não vierem na paz. Resistiremos. Vivemos de acordo com nossas visões. Apesar de nossos esforços para tentar entender a visão de vocês, não conseguimos: desconfiamos que vocês estão com os olhos totalmente tapados (talvez por óculos de realidade virtual) e nem percebem. Estamos vivendo, não “jogando” como vocês.


E canta Bacurau: “amanhã-eu-vou”. 



 


 




segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

"O sol só vem depois" e a poesia de AmarElo (Emicida, 2019)

AmarElo, do Emicida, lançado recentemente, é fabuloso. Nas palavras do artista, o álbum tem o objetivo de devolver a calma às pessoas. E realmente devolve, por tudo que apresenta nas melodias, nas letras e até nas conversas gravadas.

A música que mais me tocou até agora é “Ordem natural das coisas” (que coloquei abaixo). Sugiro que escutem esta faixa e leiam sua bela poesia (letra), antes de prosseguirem neste meu textinho, que traz minha leitura da canção. Na verdade, meus comentários não são nada demais, até porque o Emicida (com part. Mc Tha) já disse tudo na faixa.

Desejo apenas ressaltar a sensibilidade e criatividade poética da letra, que coloca A VIDA - das pessoas, da semente que germina e até das aranhas - antes e ACIMA DO SOL. E há um monólogo (ou talvez diálogo) dentro da canção, em que o eu poético (lírico) insiste que “o sol é o astro rei”, e a resposta é: “okay, mas vem depois/o sol só vem depois.” E isto pra mim soa como: okay, eu tô ligado na grandeza do sol, na importância dele, no reinado do sistema solar, tudo isso aí; mas ele - mesmo sendo uma grande estrela - vem depois da vida; vem depois da merendeira e do pessoal que pega o ônibus na madruga; vem depois da dona Maria e de tudo que vive, ama, respira e suspira antes de o sol pensar em nascer. Ele - o astro rei - não pensa nem nasce, porque não tem vida, e é aí que ele perde: “o som das criança indo pra escola convence/ O feijão germina no algodão, a vida sempre vence”.

Na “ordem natural das coisas”, a vida vem antes e sempre vence. Esta letra é uma das coisas mais lindas que já (ou)vi. Em tempos de reificação, o cara diz - da forma mais bela com a qual jamais sonhei - que antes de tudo vem a vida, e não importa que seja a do broto de feijão, das aranhas ou das pessoas - qualquer ser vivo vem antes das coisas. O sol, esta enorme estrela que coloca geral pra girar ao seu redor, que foi e é indispensável à vida, não deixa de ser uma coisa e, por isso, vem depois. "O sol só vem depois".





terça-feira, 3 de dezembro de 2019

A metamorfose, de F. Kafka (texto publicado no blog Café com impressões).



Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso.”

Assim começa A metamorfose, de Franz Kafka, obra escrita em 1912, na qual um narrador neutro (“cara de pau”, segundo o tradutor Modesto Carone) conta a história de um homem que se transformou num inseto e a reação de sua família, que até então era sustentada por ele. A frieza do narrador, que não se espanta, não explica e sequer divaga sobre o absurdo da situação é assombrosa.

Como é possível narrar a transformação de um homem em um inseto sem se surpreender com o fato, sem ao menos tentar descobrir por que Gregor acordou daquele jeito?

Essa postura narrativa, contudo, é uma das principais características da obra, na medida em que afasta a atenção da metamorfose – que é colocada como um fato ordinário – e se atém às conseqüências da transformação. Até o protagonista, que simplesmente acorda inseto, não se espanta com a sua mutação; pelo contrário, sua preocupação é como irá se levantar para ir ao trabalho.

Em nossa conversa sobre a obra, falamos sobre essa indiferença do narrador, que chegou a causar frustração a uma das leitoras. No entanto, é justamente nessa impassibilidade que reside a liberdade interpretativa de A metamorfose.

Como lemos em O retrato de Dorian Gray, “definir é limitar”; não é preciso muito esforço para perceber que o nosso debate não teria sido tão rico se Kafka houvesse elucidado os motivos da transformação. Por não haver uma definição imposta a priori pelo escritor, nós, leitores, temos liberdade para divagar sobre o porquê da transformação de Gregor.

Surgiram, portanto, em nosso debate, três interpretações, todas muito interessantes a meu ver: a metamorfose seria uma doença? Seria uma manifestação do subconsciente da personagem para se livrar do trabalho? Ou haveria uma inversão na narrativa: Gregor adoece e por isso passa a se ver como um inseto, um parasita?

Em nossa reunião, discutimos ainda a reação da família (exploração, repugnância, ingratidão, dificuldade de comunicação, vínculo puramente econômico, dependência etc.) e a reificação do ser humano - que somente seria considerado importante se capaz de produzir (relação de trabalho) -, ligando essas questões a nossas relações interpessoais. Além disso, falamos um pouco sobre a conturbada relação de Kafka com seu pai, que, segundo alguns críticos, influenciou toda a sua obra.

Não há conclusão, mas apenas indagações: será que tratamos certas pessoas como insetos? Já nos sentimos como insetos em alguma situação? Até que ponto somos fungíveis ou descartáveis?

Por fim, nada melhor que citar a opinião do próprio autor sobre literatura:

Apenas deveríamos ler os livros que nos picam e que nos mordem. Se o livro que lemos não nos desperta como um murro no crânio, para que lê-lo?

Talvez a metamorfose mais relevante seja a dos leitores...

Nota: 8,75.

Uma ideia para uma versão pós-moderna de A metamorfose:

ecosprosaicos.blogspot.com/search/label/Kafka

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Texto publicado no blog Café com impressões, criado com o objetivo de registrar as conversas de um grupo que se reunia para conversar sobre leituras.