quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Afinal, quem são os parasitas?


[Análise com spoilers] A malandragem não é um fenômeno apenas brasileiro; pode ser sul-coreano, como mostra o filme Parasitas, do cineasta Bong Joon Ho. O filme expõe como a globalização torna parecidas pessoas de qualquer grande cidade do mundo dominado pelo capitalismo. A família rica sul-coreana poderia ser carioca, do Leblon, bairro nobre da zona sul do Rio: não só em relação ao emprego, à mansão, aos padrões de consumo, modo de se vestir, mas também nos trejeitos, como se o “american way of life” fosse a única maneira de ser um vencedor ou, pelo menos, de exteriorizar esse sucesso – talvez em virtude do consumo em massa dos filmes e séries estadunidenses pelo mundo afora. É como se a ideologia dominante - a que por estarmos imersos sequer percebemos – se sustentasse no modo que os estadunidenses representam as pessoas nos seus produtos exportados pro resto do planeta, como séries e filmes, por exemplo.

E o que é malandragem? É esse jeitinho, muitas vezes talentoso, de se dar bem, de persuadir os outros a entregar algo desejado, de criar uma suposta relação de confiança, quando, na verdade, o objetivo principal é de interesse pessoal e material por parte do malandro. Em estruturas de desigualdade socioeconômica, as pessoas mais pobres lançam mão dos recursos de que dispõem para acessar aquilo que os mais ricos têm de sobra: dinheiro e tudo o que ele pode proporcionar em sociedades como a nossa. E agem assim sem usar violência, que é outro meio comum para conseguir bens necessários e/ou desejados em contextos de desigualdade.

No Brasil - último país do ocidente a acabar com a escravidão, figurando entre os 10 estados com maior desigualdade no mundo [1] -, a malandragem se tornou parte da cultura. Porém, com o crescimento da desigualdade causada pela adesão de vários países às políticas neoliberais [2], estas maneiras transversas, criativas e ardilosas de obter recursos parecem ter se espalhado por diferentes culturas. Da mesma forma que a globalização atingiu diferentes sociedades, alterando relações de produção e consumo, também parece ter influenciado o modo de agir e os princípios das pessoas envolvidas neste processo.

Também penso ser importante frisar algo curioso acerca da ideia de malandragem: de acordo com o que vejo (senso comum) sobre o fenômeno, é que malandros geralmente são representados como pessoas despossuídas e espertas o bastante para enganar e se dar bem. Mas será que a classe dominante não é malandra, ao fingir gentileza e civilidade diante dos explorados e ao criar e reforçar discursos como o da meritocracia, por exemplo, nos quais a desigualdade estrutural e sistêmica é atribuída à ausência de esforço dos mais pobres? Ou mesmo a ideia de bom funcionamento das leis e do “Estado democrático”, muito úteis para dar uma aparência de justiça e igualdade, bem como para manutenção de um status quo bastante desigual que lhes beneficia? Parece-me que a malandragem institucionalizada não recebe o devido nome, talvez por ser um fundamento da ideologia dominante, a qual passa despercebida da maioria que por estar imersa nela não a enxerga.

A narrativa cinematográfica apresenta duas famílias: uma pobre e outra rica, as duas formadas por quatro pessoas: pais que moram com um casal de filhos, sendo os pobres um pouco mais velhos que os ricos. Junto com uma pedra relativamente grande oferecida de presente como um amuleto de riqueza/prosperidade ao filho do núcleo despossuído/mais carente, o amigo universitário lhe faz uma proposta: como vai estudar no exterior, pretende indicar o amigo pobre para dar aulas particulares de inglês à filha adolescente da família abastada. E aqui já é exigido um desvio ético, pois terá que se apresentar como universitário, mesmo sem ter passado no vestibular, que tenta há anos. Desempregado, como o resto de sua família que vive de trabalhos informais e temporários, o jovem aceita a indicação e, com um falso documento feito por sua sagaz irmã, se apresenta à família rica.

Em contraposição ao seu lar apertado e localizado numa espécie de porão devassado e alvo de bêbados que ali urinam, o jovem pobre vai para um bairro de ricos, onde é recebido por uma empregada/governanta numa mansão espaçosa, iluminada e arejada, com um belo jardim. Enquanto sua casa fica num subsolo, obrigando-o a descer para poder entrar, a mansão fica no alto, simbolizando o patamar dos vencedores, dos bem-sucedidos e também um local aberto, claro e limpo, diferente daqueles que costumam abrigar insetos asquerosos como baratas.

Acerca da disparidade entre a altura das moradias, revelando a desigualdade socioeconômica, ao colocar os ricos no alto e os pobres sempre abaixo, merece destaque a cena em que, sob um temporal, três dos empregados são forçados a fugir da mansão e, a caminho de casa, descem muito, como a água da chuva que escorre para os bueiros, e ao chegarem ao porão, que está alagado. Ainda sobre a altura, chama atenção a localização de um objeto específico na casa dos pobres: o vaso sanitário, que fica em um patamar mais próximo do nível da rua, acima dos moradores, reforçando o rebaixamento deles, talvez para o esgoto.

Também há distinção nos sons, que na casa dos trabalhadores é abafado e cheio de ruídos – a denotar agitação e uma certa sensação de confusão -, enquanto na mansão os sons são mais puros e se percebem inclusive silêncios, a evidenciar tranquilidade, inexistente no porão dos empregados. Também há diferença nas cores predominantes em cada uma das residências, como apontou o youtuber Bruno Albuquerque [3], que destacou o uso de cores quentes na mansão e de cores frias na residência pobre. Durante todo o filme, há imagens e diálogos que fazem referência/s a parasitas, geralmente bem evidentes (o que torna desnecessário comentar a maioria deles) e associados à família pobre, ao menos numa análise mais superficial.

A malandragem pauta toda a relação desenvolvida entre os núcleos, desde a apresentação como universitário até as manipulações usadas para fazer com que toda a família do professor particular de inglês recém-contratado venha a assumir todas as vagas de emprego para servir a família rica. E isto implica forjar situações para causar a demissão do motorista e da governanta e indicar de forma ardilosa os novos ocupantes das vagas criadas.

Neste processo, é interessante destacar uma estratégia da família pobre que se assemelha ao que alguns insetos fazem para sobreviver na natureza e que pode passar despercebida no filme: a mimetização, que é a capacidade de copiar hábitos, cores ou formas de outro organismo ou ambiente para se proteger; uma espécie de imitação ou camuflagem. E neste ponto, creio que haja uso de metalinguagem, pois os atores representam personagens que fingem ser outras pessoas (com formações, origens e experiências distintas) por meio de atuação, havendo uma cena em que os malandros repassam as falas de um roteiro criado para o pai, num claro ensaio da dramatização arquitetada para enganar os ricos e convencê-los a satisfazer os interesses da trupe teatral.

E a ideia de mostrar as personagens da trama como animais irracionais (insetos, parasitas), animalizando seres humanos, se faz presente de várias formas, inclusive no uso do olfato como meio de se perceber a diferença entre os “bichos” de diferentes classes. Não é nada comum que pessoas - ainda mais habitantes de cidades grandes - usem o olfato para analisar e (re)conhecer outros indivíduos no convívio social. E é justamente o cheiro e a reação que ele provoca que denuncia as diferenças essenciais entre os núcleos e estabelece o maior conflito exposto na narrativa. Mesmo que camuflados em personagens bem construídos para ludibriar os ricos, os pobres não conseguem disfarçar o “fedor” inerente à sua condição precária e subalterna, nem o vínculo familiar que os une. O cheiro que exalam é igual, segundo constata o filho caçula dos abastados, e o “fedor” do motorista (pai “fracassado”) ultrapassa os limites tão caros ao pai bem-sucedido.

E é por este destaque no ato de farejar da família rica – que, a princípio, pode parece ser mais humana e atuar como hospedeira, não parasitária, pois apresenta modos limpos, belos, gentis e desenvolvidos - e também pelo ato violento do pai pobre - que acaba matando o rico, reagindo à expressão de nojo que este faz ao mover o corpo de outro despossuído -, além de todo o contexto de relativo ócio do núcleo abastado e, ainda, a evidente superioridade da inteligência/perspicácia da família pobre que subjuga a outra, muito ingênua e fraca em suas defesas ao espaço extremamente importante e vulnerável do lar; é por tudo isto que ocorre uma inversão (ou, pelo menos, uma aproximação ou ressignificação) sobre o papel de cada família na trama, com uma mudança fundamental no enquadramento de parasita/hospedeiro.

Isto porque um ser parasitário não é capaz de matar o hospedeiro de forma rápida e atuando individualmente, como fez o pai pobre e mais: o motorista agiu como predador, que nunca se confunde com o parasita, que suga mas preserva o hospedeiro, até porque depende da vida dele para sobreviver; entre humanos e animais irracionais, o ato de farejar pertence aos bichos, menos desenvolvidos nos outros sentidos e estratégias sócio-culturais avançadas; a supremacia dos meios ardilosos decorre da astúcia refinada dos pobres que invadiram com facilidade o lar dos abastados, que não foram nada inteligentes ao permitir o acesso de estranhos ao local de habitação, tão vulnerável. Tanto é assim que os ricos já haviam permitido a invasão do marido da ex-governanta ao seu lar e o pai vencedor acabou assassinado pelo empregado que ele mesmo admitiu para que o servisse de perto, numa proximidade física extrema, mas que no nível simbólico entendia como bem afastada, apesar do fedor que desrespeitava as fronteiras defendidas pelo patrão.

Todas estas evidências provam que os verdadeiros parasitas são os ricos, embora também possa se interpretar as situações destacadas como uma espécie de jogo de equiparação entre os núcleos, os quais, cada um à sua maneira, interagem como parasitas e hospedeiros um do outro, diante da dinâmica da apropriação dos recursos de que dispõem: mão de obra dos despossuídos e “capital” dos bem-sucedidos, no fim a contraposição de classes, proletários e burguesia. Coloco o termo contraposição, pois não há luta coletiva e engajada, apenas revoltas individuais, sem qualquer consciência de classe e organização coletiva.

E esta inversão sobre quais as personagens que representam os verdadeiros parasitas lembra “A metamorfose”, de F. Kafka, porque, na novela, aquele que se transforma em inseto é justamente a personagem Gregor Samsa, o filho que se sacrificava trabalhando numa função exaustiva e marcada por sua exploração para pagar uma dívida dos seus pais e sustentar a família, a qual tem a mesma composição daquelas mostradas no filme: mãe, pai e casal de irmãos.

Na minha interpretação desta obra literária, suponho que Gregor contrai uma doença grave - tuberculose, talvez - e por isso é forçado a parar de trabalhar, motivo pelo qual passa a se ver e a ser visto como um inseto, um parasita. Esta leitura se baseia no fato de que Gregor não se preocupa com sua transformação, mas, sim, com o seu atraso para o trabalho, além de o protagonista considerar a ideia de justificar sua ausência dizendo ao seu empregador que estava doente [4]; isso sem mencionar outros trechos da obra que indicam se tratar de uma enfermidade grave, progressiva e possivelmente contagiosa. Tudo a resultar numa reificação de Gregor, que somente poderia ser considerado humano, se fosse produtivo, capaz de trabalhar.

Também vejo uma inversão nesta novela de Kafka, tendo em vista que, embora o filho se transforme em inseto, são os pais que atuavam como parasitas ao se beneficiarem, ou melhor, dependerem totalmente da exploração do trabalho de Gregor que, mesmo metamorfoseado (ou gravemente doente), parece mais sensível e humano, se comparado com as outras personagens, mostrando-se até capaz de se comover diante da música executada por sua irmã no violino e se revoltar com os modos rudes dos inquilinos durante a bela apresentação, tolerados por seus pais que priorizavam os aluguéis pagos pela locação de um quarto na casa. [5]

Outra semelhança entre as narrativas é o uso de frutas como se fossem armas para atingir e causar danos a certas personagens. No filme, a família pobre usa pêssegos contra a ex-governanta, extremamente alérgica a esta fruta, cujo pó da casca foi usado, de modo eficaz, para causar sua demissão e também para enfraquecê-la numa briga, ou seja, o fruto foi utilizado como uma arma a fim de repelir uma pessoa indesejada. Na novela, Gregor-inseto é atingido por uma maçã que, atirada por seu pai para afastá-lo, acaba por penetrar nas suas costas, causando um sofrimento duradouro ao protagonista, já que esta grave ferida é abordada diversas vezes na trama.

Este deslocamento em relação à função principal e ordinária de alguns objetos também aparece noutra cena de “Parasita”, na qual um espeto de churrasco, com carnes nele enfiadas, é usado como uma espécie de punhal para ferir uma personagem. Do mesmo modo, uma lâmpada da mansão serve como meio de envio de mensagens em código morse; a privada situada no alto do banheiro dos empregados acaba servindo como refúgio no momento da enchente; e a pedra, recebida como um amuleto de prosperidade, transforma-se num instrumento contundente usado numa tentativa de homicídio.

Assim, tal como as frutas (maçã e pêssego) deveriam servir como alimento e acabam deslocados para dar vazão ao ódio e ferir pessoas, vários outros objetos são transformados (deslocados) de forma bastante peculiar e por isso inesperada, de modo que se pode observar uma relação direta com a metamorfose (desvio) dos personagens no decorrer da trama: como a maioria dos objetos citados, os empregados acabam relacionados a atos de violência, o que parece impossível até a metade do filme.

E esta desfiguração também acontece com as risadas no longa: depois de se recuperar dos ferimentos na cabeça, o jovem pobre passa a rir de tudo, inclusive de tragédias, soltando risadas inadequadas e anacrônicas que me fizeram lembrar do filme “Coringa”(Todd Phillips, 2019), no qual também se veem muitos risos e gargalhadas da mesma natureza, sofridas por uma personagem também marginalizada. Pessoas em dificuldade que riem sem razão pra rir; e o riso exigido dos pobres (empregados), como na cena da festa de aniversário do menino rico, em que o patrão faz o motorista se fantasiar de índio e, ainda, exige que o empregado sorria, finja estar contente com a surpresa planejada para animar o filho caçula de seus patrões. Diante da seriedade do empregado (cuja casa foi inundada na noite anterior), que não sorri nem entra no clima da brincadeira imposta, o rico fica incomodado e, deixando a gentileza de lado, diz ao empregado que ele está sendo pago pra fazer aquilo. Não são só as coisas e personagens que se deslocam e transmutam, mas também o riso. Em síntese, personagens que representam pessoas objetificadas acabam lançando mão de atos agressivos, nos quais usam coisas ou mesmo expressões - algumas até um tanto personificadas - desvirtuadas de seus atributos essenciais.

Outro ponto a se destacar é a descoberta de que o marido da ex-governanta vive numa espécie de bunker desprezado pelos ricos, diante da história que revela medo e covardia que levaram à construção do esconderijo, à época valorizado e, atualmente, motivo de vergonha. A trama surpreende ao revelar que a ex-governanta, mostrada como uma empregada muito eficiente e profissional, esconde seu marido dentro da casa dos patrões. Esta surpresa, que poderia unir os trabalhadores pobres e subalternizados, não tem este efeito agregador, que se prendem às diferenças, ainda que irrelevantes, e entram em conflito, demonstrando a divisão e desorganização que esvaziam a possibilidade da ação coletiva de classe capaz de alterar a estrutura do sistema. Mais uma vez prevalece o individualismo, sem dúvida um reflexo do acontece na prática, diante da ideologia capitalista em que as personagens estão imersas.

De qualquer modo, é bastante relevante no simbolismo da narrativa que o menino rico veja o miserável morador do seu porão como um fantasma: numa estrutura de desigualdade e concentração de renda e patrimônio, os miseráveis – os despossuídos alijados à marginalização - assombram aqueles que detém riquezas e vivem na fartura. A cena da aparição fantasmagórica é emblemática, já que a criança estava se lambuzando ao comer um bolo de aniversário de madrugada (uma refeição farta e fora do horário regular) degustada sob a luz forte que emana da geladeira lotada de alimentos de todo tipo e este menino rico é assombrado por aquele ser esquálido que surge de um patamar inferior e da escuridão. A mensagem parece clara: os poucos vencedores que vivem na fartura serão sempre assombrados pela massa de perdedores miseráveis.

Não há como deixar de mencionar a explicação que o pai pobre dá ao seu filho quando questionado sobre o plano que alegou ter pra lidar com a situação de conflito com a ex-governanta e o marido no bunker: “meu plano é não ter plano, porque aí nada pode dar errado, já que não há nada arquitetado, e você pode fazer o for necessário na hora que a situação se apresentar - pode fazer qualquer coisa -, sem se preocupar com regras e princípios preestabelecidos.” Parece uma estratégia de agir sem considerar princípios éticos e que acaba por fazer prevalecer a emoção e os instintos (animalescos) de sobrevivência sobre a razão, soando como um discurso de desespero de alguém que já desistiu de pensar e se preparar, diante de muitos planos frustrados. Eles fizeram um plano para iludir os ricos mas, ao surgirem imprevistos, o pai afirma que é melhor não ter planos.

As perguntas íntimas e um tanto ousadas, considerando a relação recente e de subordinação, que o motorista faz para seu chefe, indagando diretamente sobre o amor do patrão por sua mulher, podem ser interpretadas como uma curiosidade acerca dos sentimentos do jovem rico, no intuito de encontrar alguma identificação (ou sinal de vida real a gerar empatia) no representante de uma classe tão distinta e talvez isenta de emoções, dada a ausência de expressão dos sentimentos. A distância imposta pelo patrão no âmbito social, que revela uma tentativa de total impessoalidade, choca-se com a proximidade física e a convivência constante, dois elementos que seriam suficientes para motivar mais diálogos e, consequentemente, a revelação gradual de pensamentos e sentimentos entre indivíduos de uma mesma classe, ainda que tal exteriorização da intimidade pudesse ocorrer por vias indiretas e/ou por meio da percepção de outros sinais, subjacentes ao conteúdo literal das frases trocadas.

No entanto, a proibição às conversas, mesmo que tácita, acaba ensejando o questionamento direto feito pelo empregado com o objetivo de descobrir se o vínculo do casal de patrões se baseia no amor, o qual depende da sensibilidade inerente às elevadas capacidades humanas. O interesse no amor também reforça a natureza de hospedeiros dos despossuídos. Os ricos parasitas, ao menos superficialmente, parecem ter uma vida tão estável, confortável e perfeita, que nem parecem gente de verdade aos olhos dos mais pobres, que enfrentam inúmeras dificuldades inerentes à sua condição. Mais um elemento a indicar que os pobres seriam mais humanos, reais e vivos que os endinheirados, mas não pela animalização destes e sim por sua metamorfose em algo semelhante a robôs.

Nesse contexto interpretativo, a ação parasitária dos integrantes da classe dominante - com todas as nuances de distanciamento e impessoalidade ressaltadas - se apresenta como um mecanismo automático de caráter desumano que reforça a falta de empatia entre membros de diferentes classes. Ou seja, para que se preserve a situação de desigualdade e exploração faz-se necessário deixar bem claros os limites - tão defendidos pelo patrão, que não tolera qualquer invasão, nem pelo cheiro -, de modo a marcar a distinção entre as classes, negando-se aos subalternizados quaisquer elementos que pudessem torná-los de algum modo semelhantes aos exploradores, o que poderia se tornar uma ameaça ao status quo. Mesmo quando o patrão responde que ama sua esposa ao motorista, este parece não se convencer sobre a veracidade do conteúdo da resposta, pois refaz a pergunta em outra oportunidade, evidenciando-se a dificuldade de identificação e empatia, assim como a clara distinção entre parasitas e hospedeiros tão relevante à narrativa do filme.

E o bloqueio às conversas parece ser reforçado pelo modo como é usado o código morse no filme: a partir do esconderijo (quase prisão) no bunker, os homens pobres, que de algum modo violaram as leis do sistema - seja por não conseguir pagar os empréstimos (marido da ex-governanta) ou por ter matado um homem (pai e motorista) , mandam mensagens por meio de código morse, piscando lâmpadas na mansão. Agradecimentos, explicações e até pedido de socorro, e se trata de uma tentativa de comunicação sem ter meios de receber respostas ou sequer saber se alguém viu e entendeu o que foi dito, tudo a demonstrar a dificuldade ou até mesmo impossibilidade de comunicação e diálogo. A diferença social é tão grande que já não há como dialogar, então mensagens em código morse são enviadas de baixo, do fundo, e ignoradas pelos mais ricos, como o pedido de socorro feito pelo marido da ex-governanta que, embora visto e decodificado pelo filho caçula abastado, não provoca qualquer reação.

Por tudo isso, vemos que a narrativa do filme se aproxima bastante da novela de Kafka (publicada em 1915), diante das metamorfoses, da impossibilidade dos diálogos, das inversões e dos deslocamentos. E o mais intrigante é observar como os finais se parecem: em ambos ocorre a morte de um membro da família e, não muito tempo depois, as personagens sobreviventes se entregam ao sonho de alcançar prosperidade financeira para conseguir uma moradia melhor. O sonho da casa própria, o sonho da prosperidade, o sonho de ascender para a classe rica; o “sonho” que é de reprodução do sistema e não de rompimento. Um “sonho” nada original, individual e com roteiro (previamente) elaborado de acordo com a malandragem dominante, sonhado por aqueles que dormem nela imersos: o “sonho” de passar de hospedeiro, explorado, a parasita, sem arranhar as estruturas.


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Notas e referências:




[4] KAFKA, Franz. A metamorfose. Tradução de Modesto Carone. 11ª ed., São Paulo: Brasiliense, 1991. Páginas 7/11.

[5] KAFKA, Franz. A metamorfose. Tradução de Modesto Carone. 11ª ed., São Paulo: Brasiliense, 1991. Páginas 73/75.

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