[Análise
com spoilers] A malandragem não é um fenômeno apenas brasileiro;
pode ser sul-coreano, como mostra o filme Parasitas, do cineasta Bong
Joon Ho. O filme expõe como a globalização torna parecidas pessoas
de qualquer grande cidade do mundo dominado pelo capitalismo. A
família rica sul-coreana poderia ser carioca, do Leblon, bairro
nobre da zona sul do Rio: não só em relação ao emprego, à
mansão, aos padrões de consumo, modo de se vestir, mas também nos
trejeitos, como se o “american way of life” fosse a única
maneira de ser um vencedor ou, pelo menos, de exteriorizar esse
sucesso – talvez em virtude do consumo em massa dos filmes e séries
estadunidenses pelo mundo afora. É como se a ideologia dominante - a
que por estarmos imersos sequer percebemos – se sustentasse no modo
que os estadunidenses representam as pessoas nos seus produtos
exportados pro resto do planeta, como séries e filmes, por exemplo.
E
o que é malandragem? É esse jeitinho, muitas vezes talentoso, de se
dar bem, de persuadir os outros a entregar algo desejado, de criar
uma suposta relação de confiança, quando, na verdade, o objetivo
principal é de interesse pessoal e material por parte do malandro.
Em estruturas de desigualdade socioeconômica, as pessoas mais pobres
lançam mão dos recursos de que dispõem para acessar aquilo que os
mais ricos têm de sobra: dinheiro e tudo o que ele pode proporcionar
em sociedades como a nossa. E agem assim sem usar violência, que é
outro meio comum para conseguir bens necessários e/ou desejados em
contextos de desigualdade.
No
Brasil - último país do ocidente a acabar com a escravidão,
figurando entre os 10 estados com maior desigualdade no mundo [1] -,
a malandragem se tornou parte da cultura. Porém, com o crescimento
da desigualdade causada pela adesão de vários países às políticas
neoliberais [2], estas maneiras transversas, criativas e ardilosas de
obter recursos parecem ter se espalhado por diferentes culturas. Da
mesma forma que a globalização atingiu diferentes sociedades,
alterando relações de produção e consumo, também parece ter
influenciado o modo de agir e os princípios das pessoas envolvidas
neste processo.
Também
penso ser importante frisar algo curioso acerca da ideia de
malandragem: de acordo com o que vejo (senso comum) sobre o fenômeno,
é que malandros geralmente são representados como pessoas
despossuídas e espertas o bastante para enganar e se dar bem. Mas
será que a classe dominante não é malandra, ao fingir gentileza e
civilidade diante dos explorados e ao criar e reforçar discursos
como o da meritocracia, por exemplo, nos quais a desigualdade
estrutural e sistêmica é atribuída à ausência de esforço dos
mais pobres? Ou mesmo a ideia de bom funcionamento das leis e do
“Estado democrático”, muito úteis para dar uma aparência de
justiça e igualdade, bem como para manutenção de um status quo
bastante desigual que lhes beneficia? Parece-me que a malandragem
institucionalizada não recebe o devido nome, talvez por ser um
fundamento da ideologia dominante, a qual passa despercebida da
maioria que por estar imersa nela não a enxerga.
A
narrativa cinematográfica apresenta duas famílias: uma pobre e
outra rica, as duas formadas por quatro pessoas: pais que moram com
um casal de filhos, sendo os pobres um pouco mais velhos que os
ricos. Junto com uma pedra relativamente grande oferecida de presente
como um amuleto de riqueza/prosperidade ao filho do núcleo
despossuído/mais carente, o amigo universitário lhe faz uma
proposta: como vai estudar no exterior, pretende indicar o amigo
pobre para dar aulas particulares de inglês à filha adolescente da
família abastada. E aqui já é exigido um desvio ético, pois terá
que se apresentar como universitário, mesmo sem ter passado no
vestibular, que tenta há anos. Desempregado, como o resto de sua
família que vive de trabalhos informais e temporários, o jovem
aceita a indicação e, com um falso documento feito por sua sagaz
irmã, se apresenta à família rica.
Em
contraposição ao seu lar apertado e localizado numa espécie de
porão devassado e alvo de bêbados que ali urinam, o jovem pobre vai
para um bairro de ricos, onde é recebido por uma
empregada/governanta numa mansão espaçosa, iluminada e arejada, com
um belo jardim. Enquanto sua casa fica num subsolo, obrigando-o a
descer para poder entrar, a mansão fica no alto, simbolizando o
patamar dos vencedores, dos bem-sucedidos e também um local aberto,
claro e limpo, diferente daqueles que costumam abrigar insetos
asquerosos como baratas.
Acerca
da disparidade entre a altura das moradias, revelando a desigualdade
socioeconômica, ao colocar os ricos no alto e os pobres sempre
abaixo, merece destaque a cena em que, sob um temporal, três dos
empregados são forçados a fugir da mansão e, a caminho de casa,
descem muito, como a água da chuva que escorre para os bueiros, e ao
chegarem ao porão, que está alagado. Ainda sobre a altura, chama
atenção a localização de um objeto específico na casa dos
pobres: o vaso sanitário, que fica em um patamar mais próximo do
nível da rua, acima dos moradores, reforçando o rebaixamento deles,
talvez para o esgoto.
Também
há distinção nos sons, que na casa dos trabalhadores é abafado e
cheio de ruídos – a denotar agitação e uma certa sensação de
confusão -, enquanto na mansão os sons são mais puros e se
percebem inclusive silêncios, a evidenciar tranquilidade,
inexistente no porão dos empregados. Também há diferença nas
cores predominantes em cada uma das residências, como apontou o
youtuber Bruno Albuquerque [3], que destacou o uso de cores quentes
na mansão e de cores frias na residência pobre. Durante todo o
filme, há imagens e diálogos que fazem referência/s a parasitas,
geralmente bem evidentes (o que torna desnecessário comentar a
maioria deles) e associados à família pobre, ao menos numa análise
mais superficial.
A
malandragem pauta toda a relação desenvolvida entre os núcleos,
desde a apresentação como universitário até as manipulações
usadas para fazer com que toda a família do professor particular de
inglês recém-contratado venha a assumir todas as vagas de emprego
para servir a família rica. E isto implica forjar situações para
causar a demissão do motorista e da governanta e indicar de forma
ardilosa os novos ocupantes das vagas criadas.
Neste
processo, é interessante destacar uma estratégia da família pobre
que se assemelha ao que alguns insetos fazem para sobreviver na
natureza e que pode passar despercebida no filme: a mimetização,
que é a capacidade de copiar hábitos, cores ou formas de outro
organismo ou ambiente para se proteger; uma espécie de imitação ou
camuflagem. E neste ponto, creio que haja uso de metalinguagem, pois
os atores representam personagens que fingem ser outras pessoas (com
formações, origens e experiências distintas) por meio de atuação,
havendo uma cena em que os malandros repassam as falas de um roteiro
criado para o pai, num claro ensaio da dramatização arquitetada
para enganar os ricos e convencê-los a satisfazer os interesses da
trupe teatral.
E
a ideia de mostrar as personagens da trama como animais irracionais
(insetos, parasitas), animalizando seres humanos, se faz presente de
várias formas, inclusive no uso do olfato como meio de se perceber a
diferença entre os “bichos” de diferentes classes. Não é nada
comum que pessoas - ainda mais habitantes de cidades grandes - usem o
olfato para analisar e (re)conhecer outros indivíduos no convívio
social. E é justamente o cheiro e a reação que ele provoca que
denuncia as diferenças essenciais entre os núcleos e estabelece o
maior conflito exposto na narrativa. Mesmo que camuflados em
personagens bem construídos para ludibriar os ricos, os pobres não
conseguem disfarçar o “fedor” inerente à sua condição
precária e subalterna, nem o vínculo familiar que os une. O cheiro
que exalam é igual, segundo constata o filho caçula dos abastados,
e o “fedor” do motorista (pai “fracassado”) ultrapassa os
limites tão caros ao pai bem-sucedido.
E
é por este destaque no ato de farejar da família rica – que, a
princípio, pode parece ser mais humana e atuar como hospedeira, não
parasitária, pois apresenta modos limpos, belos, gentis e
desenvolvidos - e também pelo ato violento do pai pobre - que acaba
matando o rico, reagindo à expressão de nojo que este faz ao mover
o corpo de outro despossuído -, além de todo o contexto de relativo
ócio do núcleo abastado e, ainda, a evidente superioridade da
inteligência/perspicácia da família pobre que subjuga a outra,
muito ingênua e fraca em suas defesas ao espaço extremamente
importante e vulnerável do lar; é por tudo isto que ocorre uma
inversão (ou, pelo menos, uma aproximação ou ressignificação)
sobre o papel de cada família na trama, com uma mudança fundamental
no enquadramento de parasita/hospedeiro.
Isto
porque um ser parasitário não é capaz de matar o hospedeiro de
forma rápida e atuando individualmente, como fez o pai pobre e mais:
o motorista agiu como predador, que nunca se confunde com o parasita,
que suga mas preserva o hospedeiro, até porque depende da vida dele
para sobreviver; entre humanos e animais irracionais, o ato de
farejar pertence aos bichos, menos desenvolvidos nos outros sentidos
e estratégias sócio-culturais avançadas; a supremacia dos meios
ardilosos decorre da astúcia refinada dos pobres que invadiram com
facilidade o lar dos abastados, que não foram nada inteligentes ao
permitir o acesso de estranhos ao local de habitação, tão
vulnerável. Tanto é assim que os ricos já haviam permitido a
invasão do marido da ex-governanta ao seu lar e o pai vencedor
acabou assassinado pelo empregado que ele mesmo admitiu para que o
servisse de perto, numa proximidade física extrema, mas que no nível
simbólico entendia como bem afastada, apesar do fedor que
desrespeitava as fronteiras defendidas pelo patrão.
Todas
estas evidências provam que os verdadeiros parasitas são os ricos,
embora também possa se interpretar as situações destacadas como
uma espécie de jogo de equiparação entre os núcleos, os quais,
cada um à sua maneira, interagem como parasitas e hospedeiros um do
outro, diante da dinâmica da apropriação dos recursos de que
dispõem: mão de obra dos despossuídos e “capital” dos
bem-sucedidos, no fim a contraposição de classes, proletários e
burguesia. Coloco o termo contraposição, pois não há luta
coletiva e engajada, apenas revoltas individuais, sem qualquer
consciência de classe e organização coletiva.
E
esta inversão sobre quais as personagens que representam os
verdadeiros parasitas lembra “A metamorfose”, de F. Kafka,
porque, na novela, aquele que se transforma em inseto é justamente a
personagem Gregor Samsa, o filho que se sacrificava trabalhando numa
função exaustiva e marcada por sua exploração para pagar uma
dívida dos seus pais e sustentar a família, a qual tem a mesma
composição daquelas mostradas no filme: mãe, pai e casal de
irmãos.
Na
minha interpretação desta obra literária, suponho que Gregor
contrai uma doença grave - tuberculose, talvez - e por isso é
forçado a parar de trabalhar, motivo pelo qual passa a se ver e a
ser visto como um inseto, um parasita. Esta leitura se baseia no fato
de que Gregor não se preocupa com sua transformação, mas, sim, com
o seu atraso para o trabalho, além de o protagonista considerar a
ideia de justificar sua ausência dizendo ao seu empregador que
estava doente [4]; isso sem mencionar outros trechos da obra que
indicam se tratar de uma enfermidade grave, progressiva e
possivelmente contagiosa. Tudo a resultar numa reificação de
Gregor, que somente poderia ser considerado humano, se fosse
produtivo, capaz de trabalhar.
Também
vejo uma inversão nesta novela de Kafka, tendo em vista que, embora
o filho se transforme em inseto, são os pais que atuavam como
parasitas ao se beneficiarem, ou melhor, dependerem totalmente da
exploração do trabalho de Gregor que, mesmo metamorfoseado (ou
gravemente doente),
parece mais sensível e humano, se comparado com as outras
personagens, mostrando-se até capaz de se comover diante da música
executada por sua irmã no violino e se revoltar com os modos rudes
dos inquilinos durante a bela apresentação, tolerados por seus pais
que priorizavam os aluguéis pagos pela locação de um quarto na
casa. [5]
Outra
semelhança entre as narrativas é o uso de frutas como se fossem
armas para atingir e causar danos a certas personagens. No filme, a
família pobre usa pêssegos contra a ex-governanta, extremamente
alérgica a esta fruta, cujo pó da casca foi usado, de modo eficaz,
para causar sua demissão e também para enfraquecê-la numa briga,
ou seja, o fruto foi utilizado como uma arma a fim de repelir uma
pessoa indesejada. Na novela, Gregor-inseto é atingido por uma maçã
que, atirada por seu pai para afastá-lo, acaba por penetrar nas suas
costas, causando um sofrimento duradouro ao protagonista, já que
esta grave ferida é abordada diversas vezes na trama.
Este
deslocamento em relação à função principal e ordinária de
alguns objetos também aparece noutra cena de “Parasita”, na qual
um espeto de churrasco, com carnes nele enfiadas, é usado como uma
espécie de punhal para ferir uma personagem. Do mesmo modo, uma
lâmpada da mansão serve como meio de envio de mensagens em código
morse; a privada situada no alto do banheiro dos empregados acaba
servindo como refúgio no momento da enchente; e a pedra, recebida
como um amuleto de prosperidade, transforma-se num instrumento
contundente usado numa tentativa de homicídio.
Assim,
tal como as frutas (maçã e pêssego) deveriam servir como alimento
e acabam deslocados para dar vazão ao ódio e ferir pessoas, vários
outros objetos são transformados (deslocados) de forma bastante
peculiar e por isso inesperada, de modo que se pode observar uma
relação direta com a metamorfose (desvio) dos personagens no
decorrer da trama: como a maioria dos objetos citados, os empregados
acabam relacionados a atos de violência, o que parece impossível
até a metade do filme.
E
esta desfiguração também acontece com as risadas no longa: depois
de se recuperar dos ferimentos na cabeça, o jovem pobre passa a rir
de tudo, inclusive de tragédias, soltando risadas inadequadas e
anacrônicas que me fizeram lembrar do filme “Coringa”(Todd
Phillips,
2019),
no qual também se veem muitos risos e gargalhadas da mesma natureza,
sofridas
por uma personagem também marginalizada. Pessoas
em dificuldade que
riem sem razão pra rir; e o riso exigido dos pobres
(empregados),
como na
cena da festa de aniversário do menino rico, em
que o
patrão faz o motorista se fantasiar de índio e, ainda, exige que o
empregado sorria, finja estar contente com a surpresa planejada para
animar o filho caçula de
seus
patrões. Diante
da seriedade do empregado (cuja
casa foi inundada na noite anterior),
que não sorri nem entra no clima da brincadeira imposta, o rico fica
incomodado e, deixando a gentileza de lado, diz
ao empregado que ele está sendo pago pra fazer aquilo. Não são só
as coisas e personagens que se deslocam e transmutam, mas também o
riso. Em síntese, personagens que representam pessoas objetificadas
acabam lançando mão de atos agressivos, nos quais usam coisas ou
mesmo expressões - algumas até um tanto personificadas -
desvirtuadas de seus atributos essenciais.
Outro
ponto a se destacar é a descoberta de que o marido da ex-governanta
vive numa espécie de bunker desprezado pelos ricos, diante da
história que revela medo e covardia que levaram à construção do
esconderijo, à época valorizado e, atualmente, motivo de vergonha.
A trama surpreende ao revelar que a ex-governanta, mostrada como uma
empregada muito eficiente e profissional, esconde seu marido dentro
da casa dos patrões. Esta surpresa, que poderia unir os
trabalhadores pobres e subalternizados, não tem este efeito
agregador, que se prendem às diferenças, ainda que irrelevantes, e
entram em conflito, demonstrando a divisão e desorganização que
esvaziam a possibilidade da ação coletiva de classe capaz de
alterar a estrutura do sistema. Mais uma vez prevalece o
individualismo, sem dúvida um reflexo do acontece na prática,
diante da ideologia capitalista em que as personagens estão imersas.
De
qualquer modo, é bastante relevante no simbolismo da narrativa que o
menino rico veja o miserável morador do seu porão como um fantasma:
numa estrutura de desigualdade e concentração de renda e
patrimônio, os miseráveis – os despossuídos alijados à
marginalização - assombram aqueles que detém riquezas e vivem na
fartura. A cena da aparição fantasmagórica é emblemática, já
que a criança estava se lambuzando ao comer um bolo de aniversário
de madrugada (uma refeição farta e fora do horário regular)
degustada sob a luz forte que emana da geladeira lotada de alimentos
de todo tipo e este menino rico é assombrado por aquele ser
esquálido que surge de um patamar inferior e da escuridão. A
mensagem parece clara: os poucos vencedores que vivem na fartura
serão sempre assombrados pela massa de perdedores miseráveis.
Não
há como deixar de mencionar a explicação que o pai pobre dá ao
seu filho quando questionado sobre o plano que alegou ter pra lidar
com a situação de conflito com a ex-governanta e o marido no
bunker: “meu plano é não ter plano, porque aí nada pode dar
errado, já que não há nada arquitetado, e você pode fazer o for
necessário na hora que a situação se apresentar - pode fazer
qualquer coisa -, sem se preocupar com regras e princípios
preestabelecidos.” Parece uma estratégia de agir sem considerar
princípios éticos e que acaba por fazer prevalecer a emoção e os
instintos (animalescos) de sobrevivência sobre a razão, soando como
um discurso de desespero de alguém que já desistiu de pensar e se
preparar, diante de muitos planos frustrados. Eles fizeram um plano
para iludir os ricos mas, ao surgirem imprevistos, o pai afirma que é
melhor não ter planos.
As
perguntas íntimas e um tanto ousadas, considerando a relação
recente e de subordinação, que o motorista faz para seu chefe,
indagando diretamente sobre o amor do patrão por sua mulher, podem
ser interpretadas como uma curiosidade acerca dos sentimentos do
jovem rico, no intuito de encontrar alguma identificação (ou sinal
de vida real a gerar empatia) no representante de uma classe tão
distinta e talvez isenta de emoções, dada a ausência de expressão
dos sentimentos. A distância imposta pelo patrão no âmbito social,
que revela uma tentativa de total impessoalidade, choca-se com a
proximidade física e a convivência constante, dois elementos que
seriam suficientes para motivar mais diálogos e, consequentemente, a
revelação gradual de pensamentos e sentimentos entre indivíduos de
uma mesma classe, ainda que tal exteriorização da intimidade
pudesse ocorrer por vias indiretas e/ou por meio da percepção de
outros sinais, subjacentes ao conteúdo literal das frases trocadas.
No
entanto, a proibição às conversas, mesmo que tácita, acaba
ensejando o questionamento direto feito pelo empregado com o
objetivo de descobrir se o vínculo do casal de patrões se baseia no
amor, o qual depende da sensibilidade inerente às elevadas
capacidades humanas. O interesse no amor também reforça a natureza
de hospedeiros dos despossuídos. Os ricos parasitas, ao menos
superficialmente, parecem ter uma vida tão estável, confortável e
perfeita, que nem parecem gente de verdade aos olhos dos mais pobres,
que enfrentam inúmeras dificuldades inerentes à sua condição.
Mais um elemento a indicar que os pobres seriam mais humanos, reais e
vivos que os endinheirados, mas não pela animalização destes e sim
por sua metamorfose em algo semelhante a robôs.
Nesse
contexto interpretativo, a ação parasitária dos integrantes da
classe dominante - com todas as nuances de distanciamento e
impessoalidade ressaltadas - se apresenta como um mecanismo
automático de caráter desumano que reforça a falta de empatia
entre membros de diferentes classes. Ou seja, para que se preserve a
situação de desigualdade e exploração faz-se necessário deixar
bem claros os limites - tão defendidos pelo patrão, que não tolera
qualquer invasão, nem pelo cheiro -,
de modo a marcar a distinção entre as classes, negando-se
aos subalternizados quaisquer elementos que pudessem torná-los de
algum modo semelhantes aos exploradores, o que poderia se tornar uma
ameaça ao status quo. Mesmo quando o patrão responde que ama sua
esposa ao motorista, este parece não se convencer sobre a veracidade
do conteúdo da resposta, pois refaz a pergunta em outra
oportunidade, evidenciando-se a dificuldade de identificação e
empatia, assim como a clara distinção entre parasitas e hospedeiros
tão relevante à narrativa do filme.
E
o bloqueio às conversas parece ser reforçado pelo modo como é
usado o código morse no filme: a partir do esconderijo (quase
prisão) no bunker, os homens pobres, que de algum modo violaram as
leis do sistema - seja por não conseguir pagar os empréstimos
(marido da ex-governanta) ou por ter matado um homem (pai e
motorista) , mandam mensagens por meio de código morse, piscando
lâmpadas na mansão. Agradecimentos, explicações e até pedido de
socorro, e se trata de uma tentativa de comunicação sem ter meios
de receber respostas ou sequer saber se alguém viu e entendeu o que
foi dito, tudo a demonstrar a dificuldade ou até mesmo
impossibilidade de comunicação e diálogo. A diferença social é
tão grande que já não há como dialogar, então mensagens em
código morse são enviadas de baixo, do fundo, e ignoradas pelos
mais ricos, como o pedido de socorro feito pelo marido da
ex-governanta que, embora visto e decodificado pelo filho caçula
abastado, não provoca qualquer reação.
Por tudo isso, vemos que a narrativa do filme se aproxima bastante da novela de Kafka (publicada em 1915), diante das metamorfoses, da impossibilidade dos diálogos, das inversões e dos deslocamentos. E o mais intrigante é observar como os finais se parecem: em ambos ocorre a morte de um membro da família e, não muito tempo depois, as personagens sobreviventes se entregam ao sonho de alcançar prosperidade financeira para conseguir uma moradia melhor. O sonho da casa própria, o sonho da prosperidade, o sonho de ascender para a classe rica; o “sonho” que é de reprodução do sistema e não de rompimento. Um “sonho” nada original, individual e com roteiro (previamente) elaborado de acordo com a malandragem dominante, sonhado por aqueles que dormem nela imersos: o “sonho” de passar de hospedeiro, explorado, a parasita, sem arranhar as estruturas.
__________________________________
Notas
e referências:
[4]
KAFKA, Franz. A metamorfose. Tradução de Modesto Carone. 11ª
ed., São Paulo: Brasiliense, 1991. Páginas 7/11.
[5]
KAFKA,
Franz. A metamorfose. Tradução de Modesto Carone. 11ª ed., São
Paulo: Brasiliense, 1991. Páginas 73/75.
Reportagens
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