sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Muro disfarçado de ponte

Em tempos de segregação, é importante refletir sobre as ações do Estado diante do problema: o Poder Público tem construído pontes ou muros? As edificações públicas promovem a aproximação e a integração ou refletem e reforçam a discriminação? Será que as propaladas “pontes” erigidas pela Administração Pública permitem o trânsito de todos ou possuem barreiras em suas entradas e por isso funcionam, na verdade, como muros?

Parece que as pontes, os meios de ligação, possuem barreiras, as quais se abrem apenas a uma pequena parcela da população. Embora projetados pelo Estado, certos caminhos e meios de transporte públicos são inacessíveis a grande parte da coletividade. A fim de refletir sobre essa questão, analiso uma obra do Município de Niterói: a estação hidroviária de Charitas, projetada por Oscar Niemeyer.

Olhando a construção da calçada, veem-se as embarcações (que levam os passageiros até o centro do Rio em 15 ou 20 minutos) e o mar. Todavia, observando-a da areia, vê-se a enorme favela que se ergue no morro em frente. A pergunta que faço é a seguinte: de que maneira o dinheiro público investido nesse empreendimento beneficiou a integração e não a segregação? Os moradores da favela do Preventório, que abriga grande parte das pessoas que moram no referido bairro, têm acesso à belíssima obra de Niemeyer?



(A Estação vista da calçada)

A resposta é clara: o público da estação hidroviária não mora em favelas. O bilhete hoje custa entre R$ 8,00 e 9,00 - mais de três vezes o valor da barca simples e quase duas vezes o valor da passagem dos ônibus que levam ao mesmo destino. Além da estação, há, no local, lojas cujo público alvo é a classe média e ainda um restaurante de luxo que ocupa o ápice da construção.

Ressalto que não sou contra a criação de novos meios para facilitar o tráfego de pessoas para o Rio; pelo contrário, reconheço a necessidade, tanto por conhecer a crise no trânsito em Niterói quanto pelo fato de que, como grande parte da população de Niterói, trabalho no Rio.

A questão é: por que o Município escolheu gastar dinheiro com esta obra específica e qual a parcela da população de Niterói é beneficiada?

Construir novas estações hidroviárias é importante, na medida em que desafoga o trânsito: as pessoas não precisam ir até o Centro de Niterói para pegar a embarcação até o Rio. Sem dúvida! Mas isso só seria relevante se o número de pessoas que os catamarãs luxuosos levam não fosse irrisório. Nos horários de pico, a barca leva 2000 pessoas e sai a cada 10 minutos. Os catamarãs levam 200 pessoas (10% da capacidade das barcas) e saem a cada 30 minutos. A viagem de uma barca equivale a 10 viagens do catamarã! Será que uma obra assinada por Niemeyer é um investimento proporcional ao ganho que de fato se obteve?

Quanto à segunda pergunta, é óbvio que o público da estação de Charitas é restrito, já que exige um gasto alto. Afinal, quem pode pagar mais que o dobro do que pagam os que vão de ônibus (pela ponte) ou barca (saindo do Centro)? Considerando que o mês possui em média 22 dias úteis (ida e volta) o valor mensal só com o catamarã - sem levar em consideração o preço do ônibus até a estação ou o estacionamento - é de R$ 396,00, ao passo que usando a barca o gasto mensal é de R$ 123,20 (e o preço da barca é caro – R$ 2,80), ou seja, menos de um terço.

Portanto, o que parece uma ponte, é na verdade um muro. Não só por essa barreira, mas também porque o ponto mais alto do prédio tem o acesso praticamente vedado àqueles que não puderem pagar caro por uma refeição. O que poderia ser um mirante, um museu, uma biblioteca pública ou uma praça - lugares acessíveis a todos -, é um restaurante de luxo. A obra é pública (seus gastos foram pagos pelo povo), mas os benefícios são privados, restritos a uma ínfima parcela dos habitantes da cidade. O engarrafamento para chegar ao Centro de Niterói piora a cada dia (já que a falsa solução individualista de comprar carros é na verdade uma das causas do problema) e as barcas populares continuam lotadas. Somente aqueles que podem pagar caro para passar pela roleta se livraram do problema. Uma "ponte" com roletas, guichês e bilhetes caros é um muro.


(O outro lado: o morro do Preventório visto da Estação)

3 comentários:

  1. Muro alto e eletrificado. É caríssimo e ineficiente. Antes de me mudar de S. Francisco, ia até ao Centro pegar a barca, o que muito causava estranheza às pessoas. Contando tudo, valia mais a pena ir ao Rio do Centro de Niterói, mesmo morando tão perto do catamarã Charitas.

    Bjs,
    Mônica

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  2. É isso mesmo, Bernardo. Essa estação não foi construída com o intuito de resolver o problema da população, mas garantir a minoria com dinheiro a travessia sem contato com o povão. Enquanto isso, o nosso transporte público fica cada vez pior.

    E ainda estou devendo o meu blog...

    Um abraço!

    Rafael Monteiro

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  3. É impressionante o gasto de dinheiro público com esse projeto, que só resolve o problema de um pequeno grupo. Transporte público tem que ser acessível, barato.
    O Estado está cada vez mais vinculado aos recursos da iniciativa privada, que, como sabemos, só investe se houver lucro; e pontes livres não dão lucro - só as que tem roletas, guichês...

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