quarta-feira, 8 de abril de 2020

Mulheres do Século 20 (Mike Mills, 2017): uma família diferente.



Resumindo bastante, a trama gira em torno de uma senhora que foi mãe aos 40 anos, o seu filho adolescente e as mulheres mais jovens a quem ela pede ajuda para preparar seu filho pra vida. É um filme que aborda conflitos entre gerações e o faz com criatividade, fugindo dos clichês.

O longa tem um roteiro bastante original, já que a história é contada em primeira pessoa por mais de um personagem, com flashbacks e flashforwards muito bem executados. Falando assim pode parecer um filme difícil, mas não é.

Pra mim, além da originalidade narrativa, o mais interessante é que o filme mostra o conflito entre gerações e não coloca o adolescente como problemático, rebelde, incomunicável, expondo também as dificuldades da mãe nesse processo.

A trilha sonora merece destaque e tem muito a ver com as tentativas de mãe de compreender seu filho. Disponível na @netflixbrasil.




terça-feira, 7 de abril de 2020

Ghost: do Outro Lado da Vida (Jerry Zucker, 1990) e Atlantique (Mati Diop, 2019): respostas do além.


Imagine um personagem traído. Imagine uma injustiça das grandes. Imagine uma história de amor. Ainda está no começo do filme, mas você torce pelo ele, você quer ver como a trama vai se desenrolar, você quer que ele seja feliz, que fique com o grande amor da vida, que resolva aquela injustiça ou traição.

E aí, muito antes do final da história, o herói some, desaparece, morre. Só uma resposta do além pode restabelecer o amor, a verdade, a justiça.

Atlantique é um longa de 2019; Ghost, de 1990. Os dois são muito bons e estão na Netflix. Prefiro não falar mais nada pra não dar spoilers. Recomendo demais. 






domingo, 5 de abril de 2020

Que Horas Ela Volta? (Anna Muylaert, 2015): um lindo tapa na cara.

Há muitos anos uma mulher, Val, interpretada por Regina Casé, saiu de pernambuco e foi pra São Paulo trabalhar como empregada doméstica numa casa de sudestinos com grana.

O filme aborda as complicações e superações relativas à vinda da filha da Val, Jéssica, para prestar vestibular. O longa é muito bem executado, com ótimas atuações e, a meu ver, dá um lindo tapa na cara da classe média abastada, individualista e hipócrita. 

Recomendo demais esse filme da grande diretora Anna Muylaert. Também  gosto de outros trabalhos da cineasta, como Durval Discos (2002) e Mãe Só Há Uma (2016).






sábado, 4 de abril de 2020

Faça a Coisa Certa (Spike Lee, 1989): minorias, maiorias, amor e ódio.

Dança e luta abrem o filme. A música é forte, os movimentos, também. O locutor da rádio local avisa que vai esquentar e que a cor do dia é preto. E a trama esquenta mesmo, como a temperatura.

Na pizzaria do ítalo-americano Sal, encravada num bairro de maioria afro-americana, há vários retratos de celebridades brancas de origem italiana na parede. Um dia um cliente negro questiona a inexistência de retratos de negros ali. É expulso com agressividade. Daí em diante o calor aumenta ainda mais.

A meu ver, o filme é uma metáfora muito bem realizada sobre a concentração de poder nas mãos de poucos, que fazem o que bem entendem, desconsiderando o que sentem e pensam a maior parte das pessoas, alijadas do poder como minorias com baixa representatividade.

A narrativa mostra personagens interessantes. Sal, por exemplo, o dono da pizzaria, não é um vilão que só faz maldade. Mas reforça uma estrutura racista e excludente, defendendo que o direito de propriedade prevalece - no seu restaurante ele faz o que bem entender. 

Além de Faça a Coisa Certa, Spike Lee tem outros trabalhos muito legais, como o recente Infiltrado na Klan, Malcolm X, O Verão de Sam, O Plano Perfeito, entre outros longas, além de clipes, como They Don't Care About Us do Michael Jackson, e séries.



terça-feira, 31 de março de 2020

Amnésia/Memento (Christopher Nolan, 2000) e Uma mente Brilhante (Ron Howard, 2001): o espectador na pele do personagem

Além da originalidade dos roteiros, em especial o de Memento/Amnésia (idas e vindas na narrativa que exigem atenção), o espectador é colocado na condição do protagonista, na pele dele, e pode demorar a se dar conta disso.

Não há uma câmera na nuca do personagem principal; ele até pode narrar alguns trechos, mas não é uma narrativa em primeira pessoa comum. É como se você visse, vivesse e percebesse o mundo através dele, na mesma condição peculiar que o marca - nos longas, uma condição mental distinta.

Para evitar spoilers, digo apenas que, em Memento, o protagonista tem uma espécie de amnésia em que não consegue reter as memórias recentes e o roteiro foi construído em cima dessa condição, colocando-nos como o personagem, meio que perdidos entre um passado distante que é lembrado, memórias mais recentes que se esvaem e confusão sobre as outras personagens e os fatos, além de uma narrativa linear, em preto e branco, contando uma história paralela e complementar, que se mistura à vida do protagonista.

Já em Uma Mente Brilhante, fica complicado contar alguma coisa sem revelar a trama e certas surpresas importantes para a narrativa do longa. Sem perceber, o espectador é colocado na pele do protagonista, e o roteiro é incrível, embora menos chocante que o de Memento, que insiste na inversão em vários sentidos.

Vale a pena conferir os dois longas, que tiveram sucesso de público e de crítica.

O Irlandês (M. Scorsese, 2019): narrativas e tempo

Há muitas maneiras de contar uma história. A mais comum é a linear, começo, meio e fim, “the end”. Mas há filmes que fogem dos modos mais fáceis de narrar, brincam com o tempo, e contam, de forma original, os fatos, sem seguir a ordem cronológica: O Irlandês é um deles.

No mais recente longa de M. Scorsese, o espectador, inicialmente, é levado, num plano sequência interessante, até o narrador, já idoso e cheio de lembranças, que vai contar sua vida, como chegou até ali. É aí que a narrativa dá um primeiro pulo ao passado (como se voltasse ao “meio da história”), destacando uma viagem de carro de dois casais para um casamento.

E, ao falar dessa viagem ao casamento que é revisitada durante todo o filme, o narrador fala sobre um passado mais distante, explicando como ele se envolveu com as pessoas que mudaram sua vida, inclusive (e principalmente) do cara que está viajando com ele para o tal casório da filha de um dos personagens da trama.

O mais interessante é que o filme começa no presente (idoso narrador que se encontra numa espécie de casa de repouso), volta à viagem dos casais, regride mais no tempo, falando das origens, e vai intercalando, às vezes voltando ao presente, outras tratando do “meio” (viagem ao casamento) e também narrando como se deu seu envolvimento com certas pessoas e atividades - tudo isso num roteiro incrível, que, lá na frente, mostra o que houve de relevante no trajeto até a celebração do matrimônio.

O senhor, “ex-pintor de paredes”, faz vários flashbacks e flashforwards, indo, vindo, voltando e adiantando, até fechar a história, de modo muito bem construído, encaixando-se perfeitamente.

Outro filme que merece destaque na manipulação do tempo é Pulp Fiction (Q. Tarantino, 1994), em que a primeira cena é retomada no final, depois de algumas ramificações envolvendo núcleos de personagens diferentes, mas que se interligam de alguma forma. Obra-prima que ganhou o Oscar de melhor roteiro original. Ficam as indicações dos longas, que além da originalidade narrativa, são filmes incríveis.







sábado, 29 de fevereiro de 2020

A voz da gente (Mangueira, 2020)



Não sei qual é o melhor modo de medir a redução das desigualdades, de verificar como estamos lidando com os abismos históricos. Mas penso que a capacidade de falar, de se expressar e, mais importante, de narrar, contar sua visão, e ser ouvido, é um bom critério. Se houver só uma história, reproduzida por todos, é sinal de que apenas um narrador prevaleceu, volume máximo, outras vozes abafadas, caladas, esquecidas, inaudíveis.


Mesmo que o narrador branco, rico e velho continue falando bastante e alto nas TVs, rádios, grandes empresas, gabinetes, jornais etc., um pancadão (ou batuquejê) toma força, ganha volume, e interrompe o discurso do coroa. No meio da prosa monótona, burocrática, arcaica, ouvimos música, poesia, vemos dança, arte e outras versões da história, contadas como “o avesso do mesmo lugar”.

Favela, pega a visão” (e a bateria vira de samba pra funk), fala a Mangueira. Canta, dança, atravessa a avenida, a cidade, os noticiários. Não é de hoje que vozes se destacam, mas de 2015 pra cá, a Estação Primeira se fez ouvir quando c(a/o)ntou “Brasis”, “a história que a história não conta”, com “rosto negro, sangue índio, corpo de mulher”. Se agora (2020) os versos trouxeram o evangelho segundo o pessoal do buraco quente, há 5 anos eles avisaram que “a nossa Maria não é brincadeira/ É raça, é fibra, é jequitibá!”.

Como no “Auto da compadecida” (A. Suassuna), a Mangueira, em 2015, chama a mulher, “rainha”, “guerreira”, “vovó”, “mãe do samba que dança pro seu orixá”, citando D. Neuma e D. Zica. Como sempre, dá um salve pras baianas, saravá! Tá na história do samba: as baianas da origem, como as ganhadeiras, que lavaram a alma da Viradouro este ano.

Nos anos seguintes, até o “Jesus da Gente”, cantou sobre M. Bethânia, sincretismo religioso, avisou que “com ou sem dinheiro” ia brincar e, ainda, deu a letra sobre o “sangue retinto pisado / atrás do herói emoldurado.” Não é só uma voz. É pegar a narrativa, é falar dos seus “heróis dos barracões”, “um país de Lecis, Jamelões”. “Brasil, meu nego,” ouça o que a Mangueira tem pra contar…






quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Quem conta a história em "Coringa"?



Quem é, afinal, o narrador no filme “Coringa” (Todd Phillips, 2019)?

Acredito que há mais de um. Ou talvez só um narrador, mas que apresenta versões variadas, pura fantasia ou não, sobre as mesmas situações. Com vozes plurais, é certo que a trama apresenta versões diferentes para os mesmos fatos, como, p. ex, o relacionamento de Fleck com a vizinha.

Esta maneira de contar a história, em que há cenas distintas sobre as mesmas situações, levanta, no mínimo, dúvida sobre o que está rolando na trama, a “veracidade” interna relativa à ficção em si. Isso pode gerar alguma confusão ao espectador, e pode ser lido de muitas formas, uma das mais óbvias é a de que a primeira versão encenada é a imaginada por Arthur Fleck (Coringa) e a segunda, os fatos “reais”, descritos por um narrador impessoal, terceira pessoa, de fora, narrador deus, que tudo sabe.

Não se trata de algo novo no cinema. O filme “Uma mente brilhante” (Ron Howard) - vencedor do Oscar de 2002 nas categorias de melhor filme, roteiro adaptado, diretor e atriz coadjuvante - foi ousado e muito feliz ao apresentar dois narradores. E o fez de modo desafiador, pois durante boa parte do longa - da abertura até metade ou mais - as cenas contam uma versão, dada como única, “verídica” (lógica interna), sem dar pistas (fáceis) de que eram criações ou distorções do protagonista, da mente dele.

E aí o espectador é levado a “sentir” sintomas da doença que acomete o matemático, a esquizofrenia. Alucinações, paranoias, ilusões persecutórias só são questionadas, reencenadas, expostas, lá na frente. “A ilha do medo” (M. Scorsese, 2009) também joga com confrontos narrativos, apresentando um belo trabalho com plurivocidade, a contrapor o que era pura imaginação de um personagem e o que houve de fato.

De tudo, ficam as perguntas: até que ponto a visão (subjetiva) dos personagens interfere? O que é verdade (ou seriam verdades?) Como deve ser a experiência de ter delírios? Como confiar nas narrativas?   








terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Arthur Fleck (Coringa) sofreu psicofobia?


No filme “Coringa” (Todd Phillips, 2019), em uma das cenas que mostra o caderno de anotações pessoais de Arthur Fleck (Coringa) -, há uma frase que diz: “a pior parte de ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você se comporte como se não tivesse”. Não só por esta frase, mas também por muitas situações envolvendo o personagem, revela-se a psicofobia. E o que é isso?

Pra resumir, é o preconceito em relação às pessoas com transtornos ou doenças mentais. No longa, Fleck sofre com gargalhadas dissonantes dos seus sentimentos, sobre as quais não tem controle, e as explica como consequência de uma condição médica num cartão que entrega a seus interlocutores. Também sofre com pensamentos ruins muito frequentes, toma remédios psiquiátricos, é bastante solitário e geralmente visto como esquisitão. Tudo isso parece contribuir para despertar o Coringa, que acaba se vingando, violentamente, de algumas personagens que foram psicofóbicas com ele.

No entanto, esta reação agressiva do vilão de HQ em relação a preconceituosos parece se distanciar do acontece na maioria das vezes no mundo real, porque há estatísticas indicando que 93% das pessoas com doenças psiquiátricas não são violentas e que umas das principais consequências da psicofobia são o isolamento do paciente e a dificuldade para buscar tratamento adequado e permanecer nele.

Quando alguém diz que “depressão é frescura”, “terapia é coisa de maluco”, age com desrespeito ou agressividade, apresentando medo infundado, atitudes de discriminação, criticando quem usa remédios psiquiátricos, chamando pacientes de loucos etc., causa impacto direto nas pessoas que apresentam quadros desta natureza.  

Como no filme, a realidade está marcada pela psicofobia, que reforça os estigmas e os tabus relacionados às doenças da mente. Se a trama do longa não for suficiente pra (re)pensar o assunto, dê uma chance ao discurso do Joaquim Phoenix no Oscar, ao receber o prêmio de melhor ator, por Coringa. Ficção e vida se entrelaçam indicando outros caminhos...