Ecos, porque se trata da ressonância que certos fatos ou obras de arte produzem em mim, embora o som que devolvo ao mundo nunca seja mera repetição do que entrou (isso sem falar na ninfa); prosaicos, pelos dois sentidos do termo: pela forma de prosa e por ser corriqueiro, vulgar. Afinal, quem é a prosa para falar da poesia?
sexta-feira, 23 de dezembro de 2016
quarta-feira, 14 de dezembro de 2016
Amor, liberdade e segurança
Segundo
Bauman, “para ser feliz há dois valores essenciais que são
absolutamente indispensáveis [...] um é segurança e o outro é
liberdade. Você não consegue ser feliz e ter uma vida digna na
ausência de um deles. Segurança sem liberdade é escravidão.
Liberdade sem segurança é um completo caos. Você precisa dos dois.
[...] Cada vez que você tem mais segurança, você entrega um pouco
da sua liberdade. Cada vez que você tem mais liberdade, você
entrega parte da segurança. Então, você ganha algo e você perde
algo".
O
sociólogo conhecido pelo termo “modernidade líquida”, ator de
diversas obras sobre a fluidez da pós-modernidade, critica nossos
tempos de total liberdade, na qual os laços são frouxos, abertos,
além da reprodução das práticas de consumo nas relações
pessoais, reificando humanos. No entanto, na minha interpretação,
vejo Bauman como um saudosista, de certo modo conservador, tanto nos
costumes quanto nas questões de estado e economia. Ele defende o
Estado de bem-estar social pós-guerra, diante das suas experiência
europeias, desconsiderando outros países e cenários periféricos
numa visão eurocêntrica.
É
claro que gosto muito do autor e mantenho minha admiração,
especialmente nas críticas ao neoliberalismo e consumismo e também
na cidadania, mas num aprofundamento não posso deixar de divergir,
já que em uma sociedade patriarcal nunca houve igualdade de gêneros
nem exclusividade imposta ao homem. Bauman critica a fluidez, mas é
essa liberdade que reflete uma evolução no sentido de as pessoas não
se submeterem a relações opressivas e expandir a capacidade de amar
e construir novas formas mais abertas, como o poliamor. A questão é
viver isso sem reificar. Bauman condena a liberdade, é um nostálgico
dos laços perenes e exclusivistas.
Uma
leitura do filme Her (2013, S. Jonze), numa perspectiva baumaniana,
atinge “o paradigma de que são apenas as relações carnais que
estão perdendo a força. Ao se apaixonar por um sistema operacional,
Theodore parece suprir todas as suas necessidades dentro de um
relacionamento. A forma virtual de se relacionar é a maneira que o
protagonista tem de encontrar aquilo que realmente procura e
idealiza, pois o sistema operacional se adapta cada vez mais às suas
satisfações, tornando-se uma complementação do usuário.1”
Nessa
visão crítica da superficialidade virtual Bauman acerta em cheio,
mas a verdade é que o filme não reflete a realidade, é uma
hipérbole. Hoje ainda há pessoas por trás das máquinas, celulares
e aplicativos: mensagens trocadas geram encontro entre pessoas reais.
Desse modo, a internet e outras tecnologias não acabam com as
relações.
Aqui
proponho um diálogo entre o que colocações de Bauman e da
psicanalista Regina Navarro Lins. Enquanto o sociólogo se fecha no
passado, Navarro Lins já enxerga mudanças positivas e um futuro com
outras configurações afetivas e familiares. Segundo a psicanalista
“poliamor
é a tradução livre para a língua portuguesa da palavra polyamory
(Polyamory é uma palavra híbrida: poly é grego, e significa muitos
, e amor vem do latim), que descreve relações interpessoais
amorosas que recusam a monogamia como princípio ou necessidade. Por
outras palavras, o poliamor como opção ou modo de vida defende a
possibilidade prática e sustentável de se estar envolvido de modo
responsável em relações íntimas, profundas e eventualmente
duradouras com várias/os parceiras/os simultaneamente.”2
Regina Navarro
Lins compreende a liberdade e a abraça; Z. Bauman vê com desconfiança,
dando maior ênfase à defesa da segurança. Só
tempo vai mostrar como a sociedade vai desenvolver o modo de se
relacionar, mas desde já se veem novas modalidade de relacionamentos
mais complexos. Na dança da vida, entre a liberdade e a segurança,
as pessoas vão descobrir como querem amar.
________________________________
2 blogosfera.uol.com.br/2016/08/06/da-monogamia-ao-poliamor/
terça-feira, 13 de dezembro de 2016
sábado, 10 de dezembro de 2016
Museu do amanhã
Um grande tatuí quase
morto
À beira da baía de
Guanabara,
Navio branco que passou
do porto e
Das águas escuras com
sua carapaça clara.
Fóssil novo e
reluzente,
Exoesqueleto brilhante
e alvo,
Prédio derrubado
por acidente,
Gigante náufrago por
acaso salvo.
Quase totalmente
cercado de mar e mares -
Água suja, fétida,
colorida de combustível -,
A ostentar suas
estruturas triangulares,
Um corpo que se move de
forma previsível.
Um homem que se
aproxime da sua boca-entrada
O verá grande, amplo,
desdentado e faminto;
Mas ao olhar para o
lado, o verá como uma ossada
De um daqueles enormes
navios extintos.
Para nada o seu
exoesqueleto se move:
Um gasto de energia
eterno e desnecessário.
Não voa, não nada,
não anda, embora inove,
mudando e iluminando o
velho cenário.
A velha e sombria praça
do porto gigante
Agora - sem anteparos -
encara o mar,
Mas inda guarda seus
becos logo ali, adiante,
Às sombras de
edifícios e morros a se abandonar.
sexta-feira, 9 de dezembro de 2016
Cry me a river: o choro dos manipulados
Cry me a river. Agora, os que foram manipulados podem chorar rios. O golpe se aprofunda e agora parte da classe média começa a sentir medo. Lutem ou chorem rios...
Well, you can cry me a river
Cry me a river
I cried river over you
Now you say you're sorry
For being so untrue
Well, you can cry me a river
Cry me a river
Cause i cried, i cried, i cried a river over you...”
"Now you say you're lonely
You cried the long night throughWell, you can cry me a river
Cry me a river
I cried river over you
Now you say you're sorry
For being so untrue
Well, you can cry me a river
Cry me a river
Cause i cried, i cried, i cried a river over you...”
quarta-feira, 7 de dezembro de 2016
De olhos bem abertos aos dogmas (Kubrick, 1998)
“Nunca
homens e mulheres se aventuraram com tanta coragem em busca de novas
descobertas, só que, desta vez, para dentro de si mesmos. Cada um
quer saber quais são suas possibilidades, desenvolver seu potencial.
O amor romântico propõe o oposto disso, pois prega a fusão de duas
pessoas. Ele então começa a deixar de ser atraente. Ao sair de cena
está levando sua principal característica: a exigência de
exclusividade. Sem a ideia de encontrar alguém que te complete,
abre-se um espaço para outros tipos de relacionamento, com a
possibilidade de amar mais de uma pessoa de cada vez”, diz a
psicanalista e escritora Regina Navarro Lins.*
A exclusividade é um dogma. Por que o amor tem que se restringir a duas pessoas? Por que o amor não pode se expandir? O que acontece com os desejos? E se nos revelarmos? A revelação é o que acontece no filme “De olhos bem fechados” (1998), de S. Kubrick. Contém spoilers! Alice, personagem interpretada por Nicole Kidman, revela a seu marido, Dr. Bill (Tom Cruise), seu desejo sexual por outro homem.
A exclusividade é um dogma. Por que o amor tem que se restringir a duas pessoas? Por que o amor não pode se expandir? O que acontece com os desejos? E se nos revelarmos? A revelação é o que acontece no filme “De olhos bem fechados” (1998), de S. Kubrick. Contém spoilers! Alice, personagem interpretada por Nicole Kidman, revela a seu marido, Dr. Bill (Tom Cruise), seu desejo sexual por outro homem.
A
partir daí, Bill entra em um processo de desejos, fantasias e
rituais. Vai parar num assombroso baile de máscaras em que várias
pessoas transam livremente. A loja de máscaras e os diálogos dão a
entender que vivemos no mundo do arco-íris e que o baile é além,
um cenário pós-arco-íris. Um piano sombrio atravessa todo o filme.
O fato é que na cena final, depois de toda busca frustrada de Bill,
de todas as fantasias e máscaras caídas, Alice diz que eles tem
que fazer uma coisa o mais rápido possível: “foder”. O diálogo
final indica que o casal vai continuar se amando, construindo a
relação.
Outro
filme que trata da exclusividade de um modo criativo é Her (Ela, de
Spike Jonze, 2013), ganhador do oscar de melhor roteiro original. No
filme, que se passa num futuro não tão distante, Theodore,
personagem de Joaquin Phoenix, se apaixona por Samantha, cuja voz é
de Scarlett Johansson. Tudo normal para um cara que estava desolado
com o fim de um longo relacionamento, exceto pelo fato de que
Samantha é um novo sistema operacional.
Ela
passa a acompanhá-lo durante todo o tempo, no computador, no
celular, em qualquer tela, em fones de ouvido. Theodore
trabalha escrevendo cartas pessoais comoventes para outras pessoas e
Samantha o ajuda em tudo, desde a hora de acordar até seus sonhos.
Ela não tem corpo, mas tem voz, expressa sentimentos, vontades e os
dois passam a namorar.
Chegam
até a viajar juntos para uma cabana. Tudo se abala no momento em que
ele descobre que Samantha se relacionava com várias outras pessoas e
sistemas operacionais ao mesmo tempo. A relação prescindiu de um
corpo, mas foi enfraquecida pelo dogma da exclusividade.
Theodore desaba quando descobre que não é o único. E por que agir
assim se ela o amou de qualquer forma? O poliamor já é uma
realidade, a liberdade e a felicidade não devem ser limitadas por
dogmas.
Concluindo
com as palavras de Regina Navarro Lins: “é provável que o modelo
de casamento que conhecemos seja radicalmente modificado. A cobrança
de exclusividade sexual deve deixar de existir. Acredito que, daqui a
algumas décadas, menos pessoas estarão dispostas a se fechar numa
relação a dois e se tornará comum ter relações estáveis com
várias pessoas ao mesmo tempo, escolhendo-as pelas afinidades. A
ideia de que um parceiro único deva satisfazer todos os aspectos da
vida pode vir a se tornar coisa do passado.”
*Regina Navarro Lins (Rio de Janeiro, 30 de novembro de 1948) é uma psicanalista e escritora brasileira. Também é palestrante em assuntos como relacionamentos afetivos e sexualidade.
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quarta-feira, 30 de novembro de 2016
Fumaça, por As Bahias e a Cozinha Mineira
No colo da saudade,
eu
Conduzi o braço do teu rio
As selar-me na boca o traço do vazio
Do seco, do seco, do seco na boca
Baseado da fumaça que ameaça
O vácuo da tua forma oca
Amor
Amor
Amor
Que vazio, que vazio
Saciou meu ventre com o regalo teu
Arregalou meus olhos
Arrebatou-me, meu Deus
Na fumaça da fumaça, dei a massa
Dei a massa consumida
Pela brisa da fogueira que a beira
De um beijo seu, se queimou
Wow
Conduzi o braço do teu rio
As selar-me na boca o traço do vazio
Do seco, do seco, do seco na boca
Baseado da fumaça que ameaça
O vácuo da tua forma oca
Amor
Amor
Amor
Que vazio, que vazio
Saciou meu ventre com o regalo teu
Arregalou meus olhos
Arrebatou-me, meu Deus
Na fumaça da fumaça, dei a massa
Dei a massa consumida
Pela brisa da fogueira que a beira
De um beijo seu, se queimou
Wow
terça-feira, 22 de novembro de 2016
Legaliza! Chega de violência
"Não se tem notícia que a Argentina tenha se tornado um país de drogados por conta da liberação do uso de entorpecentes
Rafael Muneratti, defensor público do Estado de São Paulo
O direito ao prazer ainda está garantido na Constituição
Luciana Boiteux, representante da Associação Brasileira de Estudos Sociais do Uso de Psicoativos
Deixar de incriminar não afetará o consumo. Em países em que houve a descriminalização não houve aumento do consumo
Cristiano Avila Maronna, do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais
A criminalização ou o castigo ao usuário de drogas afeta o acesso à saúde, afeta o tratamento. O usuário, na maior parte das vezes, é uma vítima do seu vício
Pierpaolo Cruz Bottini, advogado e representante da ONG viva Rio
A lei antidrogas brasileira funciona como instrumento de criminalização da pobreza
Rafael Custódio, da Conectas" (el pais)
Gente, vamos pensar no assunto. A guerra contra as drogas nunca funcionou, só aumenta a venda de armas e a violência. Links sobre o tema:
http://www.diplomatique.org.br/editorial.php?edicao=2
http://g1.globo.com/sp/ribeirao-preto-franca/noticia/2012/10/composto-da-maconha-alivia-fobia-social-e-ansiedade-diz-estudo-da-usp.html
http://brasil.elpais.com/brasil/2015/08/19/politica/1440017854_649230.html
https://youtu.be/G-BFxtdQQE8
https://youtu.be/ZyFkUqkFM2A
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quarta-feira, 16 de novembro de 2016
Reflexos obscuros da queda livre (Black mirror)
O tema é
“Queda livre”, primeiro episódio da terceira temporada da série
Black Mirror (Netflix). Não, esse texto não tem revelações da
trama, é apenas uma leitura da ideia, especialmente do uso da
tecnologia para avaliar pessoas e colocá-las em níveis ou classes
diferentes. Mas é melhor ver primeiro e ler depois.
A
primeira cena é de uma mulher correndo com um celular na mão,
olhando pra tela o tempo todo. Daí em diante todos os
encontros dela geram avaliações, notas de 1 a 5. Um esbarrão pode
render notas baixas e um bom atendimento a troca de 5 estrelas
marcadas rapidamente na tela. Vale pra tudo: fotos, postagens,
atitudes, todos podem se avaliar, mas a nota dos mais bem avaliados
(acima de 4.5) tem peso maior na pontuação. E essas notas
determinam tudo na vida da pessoa: acesso a casas, financiamentos,
serviços, empregos, pessoas com quem se relacionar etc. essa é a
ideia.
No Uber tem isso. Você faz a corrida e rola uma avaliação
mútua. Então, isso passa a fazer parte de todos os atos. As pessoas
tornam-se reféns (e algozes) das avaliações, dali vem o status de
cada personagem. Reprovação social gera queda de pontos.
Autoridades podem punir com perda de pontos. Como outros episódios
de Black Mirror, esse causa um mal-estar. Ainda bem que é ficção,
tento me aliviar. Mas, refletindo um pouco mais, fico assustado ao
pensar que a realidade é parecida ou até pior.
O critério de avaliação atual baseia-se na desigualdade,
construída historicamente, sendo evidente a dificuldade ou proibição do acesso de
certas pessoas a determinados locais, serviços, relações sociais
etc. E no episódio, a princípio, não se veem mendigos, pessoas
famintas, trabalho escravo (talvez o fim revele como lidam com os
desajustados); não se fala em desemprego e as pessoas parecem estar
vivendo com conforto. No presente, na realidade, há miséria,
pobreza e uma enorme restrição dessas pessoas a serviços
essenciais de qualidade (educação, saúde etc.), concessão de
crédito, empregos com maior remuneração etc. E ainda há
avaliações, como a das roupas (moda), do modo de falar, da origem, da cor
da pele, do gênero, marcas dos produtos que usa etc. Isso sem falar do individualismo, da falta de consciência de classe.
Como são
avaliadas pessoas pobres, sem estudo formal, que não dominam mais línguas,
sem a bagagem cultural exigida, sem a aparência imposta, que moram
em locais discriminados? Como são dadas as oportunidades? A ficção não se esgota na trama de
personagens distantes de nós, a fantasia, a imaginação apontam pra
realidade. A ficção é um reflexo crítico da vida. Nossas
avaliações, interações e acessos também estão sendo definidas
por critérios falhos. E as pessoas, tão imersas nesse sistema, muitas vezes não veem suas estruturas.
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quinta-feira, 10 de novembro de 2016
Delação premiada é direito de todos?
Traficante
preso preventivamente em Bangu, falando com seu defensor:
"Doutor,
quero fazer minha delação premiada. Fui pego, tô no erro, doutor,
mas quero fazer a delação pra me livrar da cadeia. Falo se me derem
perdão total. Ou pode ser tornozeleira também. No máximo. Mas sem
tranca, sem tranca. Se tiver tranca nem falo, nem vale a pena. E não
vai ser tipo o esquema da lava jato, não, doutor. Na lava jato é o
esquema de entregar parte da grana ou entregar alguém e aí ficar na boa. O cara que for cumprir pena é o otário, o último da fila, o que é
mandado e que nem tem grana pra perder. Tá ligado? Começou com os
empresários e aí eles deduraram, se livraram da
tranca, deram grana, jogaram o problema no colo dos políticos. Agora os
políticos tão aí... podem entregar outros e os pequenos. E adivinha quem vai pagar cadeia?
Os pequenos. É claro! Os grandes já tão na rua, voltando. Herdeiros, milionários. Eu vejo TV, doutor. A gente vê eles com pena de nada, indo pra rua, pra casa. No meu caso, não vou entregar ninguém.
Mas vou entregar a grana do crime e a droga escondida. Não dá pra
entregar parceiro. É morte. Mas tenho o direito de ganhar prêmio,
não tenho? Vou entregar e pronto, rua. Como é que isso? Porque a gente vê empresário rico livrando a cara em caso
de mais de milhões. E aí, como é que faz com traficante pobre?
Traficante pequeno, que é pego com drogas, rádio e um pente de
balas, mas sem pistola, só o pente, como é que fica a delação?
Tem prêmio de que? Sou primário, vou entregar tudo, quero perdão
do juiz. Doutor, eu vendia mesmo, traficava, mas não faço maldade
não, nunca fiz. Arma é pra defesa, intimidação e no caso só o
pente, que não mata ninguém. Me disseram que tá na lei que
entregar os produtos do crime é perdão, é rua direto. É verdade
ou só tem delação premiada pra empresário rico?"
quarta-feira, 9 de novembro de 2016
Lucros ou impostos?
A elite, o poder econômico se escondem atrás do discurso ideológico de que são
impostos que encarecem tudo, culpando o Estado. A direita fala da necessidade de cortar direitos, flexibilizar, reduzir encargos, "enxugar a máquina pública". Mas a margem de lucro
no Brasil é uma das maiores do mundo e é bastante comum os estados concederem isenção fiscal, como no caso do Rio, que deixou de arrecadar algo em torno de 200 bilhões nos últimos anos. As empresas abusam e a conta é jogada pro povo.
Capitalismo atuando. Vale muito a leitura dos textos da Carta e do Justificando:
http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Economia/Margem-de-lucro-taxa-de-lucro-e-crise-politica-/7/35318
terça-feira, 8 de novembro de 2016
Calçadas, espaços e poder
Que tal
pensarmos sobre calçadas? Sobre o espaço que temos pra andar nas
calçadas? Você, leitor, já deve ter passado por um momento em que
viu a calçada cheia e teve dificuldade de passar, de caminhar
livremente, de seguir seu caminho no seu ritmo pela calçada. E isso
pode ter acontecido pelos mais diversos motivos: um casal com um
cachorro com a guia esticada; uma família numerosa que anda
lentamente como se não existisse mais ninguém querendo passar por
ali; um grupo de jovens conversando em voz alta e vindo em bloco no
sentido contrário sem sequer perceber que esmaga pessoas que estão
tentando caminhar, em festas populares etc.
O que
você faz quando se vê numa situação assim? Pede licença? Vai
pela rua, se arriscando? Tenta passar pelo cantinho, meio que
esmagado? Como faz? Bom, essa é uma situação comum, em que o
espaço nas ruas, o espaço público (físico) parece ser disputado
entre as pessoas, cada uma delas com interesses diferentes, com
ritmos, necessidades e intenções diversas. Na verdade, uma mesma
pessoa pode apresentar interesses diferentes a cada dia: pode ser que
um dia esteja caminhando lentamente com os avós e em outro queira
correr, na mesma calçada.
A
pergunta que faço é: como conciliar esses interesses diferentes e
por vezes contrários? Como conviver naquele mesmo espaço, na
calçada? Como andar a cada dia por ali sem se submeter aos
interesses de grupos maiores, mais fortes, nem impor aos demais os
seus interesses, suprimindo os direitos alheios? É a lei do mais
forte que dever prevalecer? Como fazer no dia em que você estiver
sozinho e um grupo grande o empurrar para a rua, pra cima dos carros
em alta velocidade?
Fiz
muitas perguntas. Pense nas respostas antes de prosseguir a leitura
do texto. Tente refletir sobre essas situações: como você deve
agir quando está num grupo grande e também quando está só, diante
de um monte de pessoas que seguem pela calçada, criando um muro e
sem perceber sua presença.
Pois
bem. Isso foi uma metáfora para o fascismo, sobre o exercício do
poder. Qual o critério estabelecer para definir quem terá
prevalência sobre o espaço na calçada, na política, nos governos,
na definição das normas, nas determinações do poder econômico?
Na vida há grupos que esmagam outros. Há aqueles que são donos de
espaços, que compram e dominam vastas extensões, oprimindo os mais
pobres. E são eles que pedem menos ou nenhuma regulamentação, que
pedem um estado mais fraco, reduzido, mínimo. A desigualdade ainda é
imensa, mesmo com a retirada de milhões de pessoas da miséria.
A
imposição de medidas neoliberais só aprofundam a desigualdade.
Piketty demonstra a concentração de renda e patrimônio para um
percentual mínimo da população, em detrimento das maiorias cada
vez mais pobres (veja link abaixo). Com a ausência de regulamentação, não existiria
calçadas, seria tudo propriedade privada, como já é no asfalto.
O foco da mídia e do senso comum geralmente
se atem ao poder político, nada fala sobre o poder econômico. Vemos
prevalecer o discurso de que os políticos são todos iguais, a
retórica da corrupção generalizada, sem vinculá-la ao
capitalismo. E no assassinato da política vemos mãos fascistas. O
momento é de luta. As ocupações e manifestações estão aí.
sexta-feira, 4 de novembro de 2016
Como o Brasil se deixa manipular pela elite
Falo do livro do professor Jessé Souza "A tolice da inteligência Brasileira ou como o país se deixa manipular pela elite". É muito bom. O livro trabalha com a desconstrução muito bem articulada da visão geral fundada em Freyre, Buarque e Faoro. A clareza dos argumentos corrói criativamente as mais de mil e quinhentas páginas de Casa Grande e Senzala, Raízes do Brasil e Os donos do poder, obras que até então eram sempre vistas como a verdade, como se dotadas de caráter sagrado. Jessé reconhece o valor das obras numa crítica profunda que atinge suas raízes, a sobrar pouco mais que o viés mitológico. O cerne é que a visão dos autores consagrados não é científica e se assemelha a uma forma de "racismo" (culturalismo), ao colocar-se sempre em posição de submissão ao modelo externo, além de atacar o Estado e defender o mercado, como se a corrupção se restringisse à esfera púbica e não fosse inerente ao capitalismo.
"Nos bolsos do 1% mais rico da população brasileira está o resultado do trabalho dos 99% restantes. E assim é há muito tempo, diante do olhar passivo de toa a população subjugada que quase nunca levanta a voz contra esse estado de coisas é porque a violência física que antes permitia um desigualdade tão grande e uma concentração de renda tão grotesca foi substituída no Brasil formalmente democrático de hoje, por uma espécie de violência simbólica, que se disfarça de convencimento pelo melhor argumento e isso se faz com o sequestro da inteligência brasileira."
Link para resenha do cafezinho:
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quarta-feira, 2 de novembro de 2016
Partidos de esquerda no Brasil
Já
escrevi algumas vezes sobre a crise de cidadania, a falta de
participação das pessoas nos processos coletivos, na construção
dos partidos e na atuação dos governos. Tudo isso ligado ao
discurso de falência da política que prevalece na grande mídia, ao qual me contraponho.
Agora, vou falar um pouco sobre nossos partidos de esquerda (ou que
são chamados assim), que também tem sido atacados pela retórica
antipolítica.
Pra
começar, nossos partidos à esquerda não são comunistas nem
revolucionários. Os fatos de serem partidos na ordem jurídica
vigente já os colocam como reformistas e com a nossa Constituição
de 1988, que é capitalista e protetora da propriedade privada, não
há como instaurar um regime comunista. Nossa esquerda partidária
está mais para defensora do estado de bem-estar social, uma forma de
capitalismo abrandado, que se fortaleceu no pós-guerra e vem sendo
destruído pelas práticas neoliberais.
Os
partidos de esquerda tem propostas de fortalecimento dos serviços
essenciais do Estado e assim agem em cumprimento à nossa
Constituição, que é nitidamente alinhada às políticas de
bem-estar social. Um leitura das propostas da esquerda e das normas
constitucionais deixa isso muito claro.
E
essa ideia de serviços essenciais e de qualidade prestados
diretamente pelo Estado é algo adotado em muitos países
capitalistas desenvolvidos, como vemos na Europa e até nos EUA, onde
a educação pública básica é frequentada também pela classe
média, embora lá a saúde esteja privatizada e com acesso restrito.
Os
partidos à direita - aqui e no resto do mundo - tem uma visão de
redução do Estado, atingindo os serviços essenciais. Numa
perspectiva de globalização, a direita quer fazer de tudo para
reduzir o estado, a proteção dos trabalhadores, a tributação que
mantém os serviços essenciais, e assim atrair as grandes empresas,
que se instalam onde houver mais facilidades, menos custos. A nossa diferença é que muitas das empresas da elite brasileira obtém privilégios do Poder Público.
E a
direita sabe da importância de dominar também o Poder Judiciário,
porque é dele palavra final sobre a interpretação das normas
constitucionais. Com a nossa atual Constituição, fica complicado
impor o estado mínimo e é por isso que os governos de direita fazem
emendas e contam com a atuação do STF para esvaziar o conteúdo dos
direitos assegurados na Lei Maior.
O
mais curioso é que muitas pessoas que votam nos partidos de direita
querem passar em concursos públicos e fazem uso dos serviços
públicos de excelência, como nossas universidades e alguns órgãos
ligados à saúde. E também pagam caro escolas particulares e planos
de saúde, que muitas vezes oferecem serviços ruins.
Nossa tributação é injusta, mal feita, onera demais os mais pobres e a
classe média, há muita sonegação, facilita pros ricos, e a
arrecadação é baixa, comparada com outros Estados. Vale a pena
pesquisar e se informar sobre o assunto. O discurso da grande mídia
e da direita não aborda isso, defende cortes nos serviços, nos
tributos e não uma reforma que promova justiça, melhor arrecadação
e qualidade nos serviços. Na verdade, é a esquerda que tem
defendido essa pauta e tem sido atacada com argumentos que não
correspondem à realidade.
Na
década de 1950, quando o Brasil era muito menos desenvolvido, era
comum as pessoas de classe média estudarem em escolas públicas,
junto dos mais pobres. Nas últimas décadas só os mais pobres
permaneceram no ensino público. A classe média está pagando caro
por ensino privado. Não seria mais justo pagar menos mensalidades,
ter uma tributação mais justa e promover um ensino público de
qualidade?
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terça-feira, 1 de novembro de 2016
Aos indignados - convite à cidadania
Muito
se fala sobre crise de representatividade, mas penso que o problema é
mais profundo. Não se sentir representado é mais uma consequência
da crise de cidadania e da prevalência de um discurso de falência
da política. A maioria das grandes empresas da mídia descrevem o
Estado e os políticos como algo ruim, mau, como se todos estivessem
envolvidos com corrupção, como se só existisse a politicagem. Essa
visão de que tudo é corrompido, de que só existe politicagem
liga-se ao fascismo. Falta nas escolas educação para formar
cidadãos, para que as pessoas desenvolvam senso crítico e se
interessem e participem da política.
A
maioria das pessoas demonstra raiva dos políticos, compartilha
reportagens sobre corrupção, xinga, grita, fica indignada. Mas
grande parte dessas pessoas nunca colocou os pés numa reunião de um
partido, nunca tentou participar, ver como funciona a escolha das
propostas, dos candidatos, dos programas. Querendo ou não, gostando
ou não, é dos partidos que virão os nossos representantes. O modo
de vida consumista contamina tudo. Escolher candidatos, atuar para a
construção dos governos, não é como ir ao supermercado ou
shopping escolher produtos.
Mas
é assim que muitos agem: de dois em dois anos ficam surpreendidos e
indignados com as escolhas que tem de fazer, como se os candidatos
fossem produtos ruins numa prateleira de uma loja arcaica. A mesma
coisa acontece com os sindicatos e outras organizações coletivas:
as pessoas não participam e depois ficam reclamando, cheias de
raiva, como se fossem meras vítimas de um processo macabro e
misterioso. Não é assim. Há processos deliberativos, votações,
assembleias e muitos não vão, não se informam, não querem saber e
depois ficam reclamando, reforçando padrões individualistas,
frustrantes e ineficazes.
Se
você está surpreso com os candidatos é porque não acompanha a
política, não participa de nenhum partido, e uma parcela na
restrição de escolhas é responsabilidade sua também. Os partidos
são construídos por pessoas e se você fica afastado contribui para
sua surpresa e indignação. Sei que é cansativo, desgastante, que a
gente trabalha demais, que tem família, outras coisas pra cuidar
etc. mas, se a gente não praticar cidadania, não respirar política,
vai ser difícil se sentir representado...
sexta-feira, 28 de outubro de 2016
Ocupação das escolas públicas: aspectos jurídicos (texto resumido)
O
presente artigo trata da ocupação das escolas públicas pelos
alunos, analisando seus aspectos jurídicos bem como as consequências
perante o Estado, tendo em vista a relevância e repercussão das
aludidas manifestações a partir do ano de 2015 até junho de 2016.
Com efeito,
é de suma importância compreender o enquadramento atribuído ao
movimento do corpo discente da rede pública de ensino no
Rio de Janeiro e em São Paulo, verificando-se as diferentes
interpretações e seus efeitos no tocante à interação com o Poder
Público. Embora os protestos tenham se espalhado pelo país, o
presente trabalho aborda apenas as mobilizações realizadas nos
Estados fluminense e paulista.
Na
hipótese, destacam-se
duas interpretações jurídicas antagônicas acerca das ocupações,
quais sejam: (i) são atos ilegais e devem, portanto, ser reprimidos,
classificando-os como invasão de bens públicos; (ii) trata-se de
exercício de direitos previstos na Constituição da República de
1988, razão pela qual as ocupações devem ser respeitadas.
Pretende-se
no presente trabalho expor e analisar a origem e as causas da aludida
ocupação das escolas públicas, investigando seus aspectos
jurídicos, as diversas perspectivas e interpretações, assim como
suas consequências perante o Estado.
NOTAS SOBRE A ORIGEM DA OCUPAÇÃO DAS ESCOLAS PÚBLICAS
De acordo com as
informações obtidas nos principais veículos de comunicação,
verifica-se que, a partir do segundo semestre de 2015, estudantes
secundaristas da rede pública de ensino deram início à ocupação
das escolas.
Em São Paulo, onde
começou o aludido movimento, os alunos, a princípio,
manifestaram-se contra o que se chamou de “reorganização
escolar”, plano que o Poder Executivo do estado paulista pretendia
implementar, com mudanças radicais no ensino público, remanejando
alunos e funcionários, de modo a reduzir o número de colégios,
concentrando em determinados locais as unidades de educação, com o
consequente fechamento de diversas escolas. O projeto do Governador
Geraldo Alckmin (PSDB/SP) objetivava transferir trezentos mil alunos
e fechar noventa e dois colégios. Tais medidas, evidentemente,
dificultariam o acesso de milhares de estudantes à rede de ensino
público e gratuito do Estado.
O movimento dos alunos de
São Paulo se inspirou na experiência dos secundaristas chilenos, os
quais ocuparam centenas de escolas no ano de 2006, a fim de
reivindicar passe livre e melhoria da educação pública. A
manifestação no Chile, que ficou conhecida como “revolução dos
pinguins” (referência ao uniforme escolar no país), levou à
criação do manual “como ocupar um colégio?”, que orientou a
manifestação dos estudantes brasileiros.
Inicialmente, os alunos
paulistas, acompanhados de seus pais e professores, protestaram
contra o plano do governo estadual por meio de passeatas. No entanto,
como as manifestações não estavam atingindo o resultado esperado,
já que o governo continuou distante do diálogo, os secundaristas
decidiram ocupar escolas, seguindo as instruções da cartilha
chilena.
Percebe-se que a ocupação
das escolas é uma estratégia de mobilização que surge como
alternativa às passeatas e manifestações em ruas e praças. Tendo
em vista que os meios de protestos mais tradicionais se mostraram
ineficazes e até perigosos - diante da truculência da polícia -,
os alunos decidiram ocupar as unidades de ensino, de modo pacífico.
Diante das medidas
anunciadas pelo governo estadual de São Paulo bem como da desordem
do ensino público no Rio de Janeiro, a mobilização dos estudantes
surgiu como resposta, em uma clara tentativa de resguardar direitos
que vêm sendo diluídos por políticas de cortes e crescentes
privatização e precarização de serviços essenciais e prestações
positivas do Estado, as quais se relacionam à promoção da
igualdade material (direitos fundamentais de segunda dimensão).
FATOS E INTERPRETAÇÃO:
PROBLEMÁTICA
Não há dúvida de que a
aplicação do direito está vinculada à interpretação,
construindo-se uma relação entre os fatos e as normas que incidirão
na hipótese. De acordo com Ferraz Junior (2006, p. 14-35), o ato
interpretativo é problemático, tendo em vista que há múltiplas
vias que podem ser escolhidas, existindo para o intérprete um espaço
de liberdade, que é um pressuposto da hermenêutica
jurídica.
Com base na análise das
decisões judiciais e dos atos da Administração Pública,
pretende-se verificar qual o enquadramento jurídico acerca da
ocupação das escolas pública foi predominante, constatando-se, já
de início, um conflito aparente entre a aplicação da norma do
Código Civil - que levaria à retomada da posse pelo Estado sem
intervenção do Poder Judiciário - e a prevalência do exercício
dos direitos de reunião e de manifestação, assegurados no artigo
5º, incisos
XVI e IV, da Constituição da República.
E desse processo
hermenêutico - ato problemático - surgirá o enquadramento do
protesto e seus efeitos.
INTERPRETAÇÃO DE
NATUREZA PRIVATISTA, COM NUANCES DE DIREITO ADMINISTRATIVO
Ao que tudo indica, a
primeira exegese de caráter jurídico foi a realizada na decisão em
relação a ação de reintegração de posse proferida pelo Juízo
da 14ª Vara da Fazenda Pública da Comarca da Capital/TJSP, nos
autos n. 101946387.2016.8.26.0053. Em síntese, tal decisão impôs
condições para o cumprimento da liminar para “cessação de
esbulho” supostamente ocorrida na sede do CEETPS, como o uso de
força policial desarmada e pessoalmente comandada pelo Secretario de
Segurança Pública.
Certo é que esta decisão
foi atacada por via de mandado de segurança, que teve sua liminar
deferida. A decisão original, de 04/05/2016, fazia menção, em sua
fundamentação, no sentido de que o Estado pode se valer do
“desforço imediato na defesa da posse, diante da ocupação
ilícita”.
Em seguida,
Procuradoria-Geral de São Paulo (PGE/SP) elaborou o Parecer nº
193/20161,
atendendo a consulta da Secretaria Estadual de Segurança Pública,
indicando como solução prioritária a utilização do desforço
necessário, mecanismo de autotutela previsto no artigo 1.210,
parágrafo primeiro, do Código Civil (doravante, CC/02), tendo em
conta também a autoexecutoriedade nos atos administrativos em geral
e notadamente das medidas de policia administrativa, vinculando o
procedimento ao Secretário de Segurança Pública.
Na interpretação dos
fatos, entendeu o órgão do Estado responsável por sua atuação
jurídica, em consonância com o governo do Sr. Geraldo Alckmin, por
desconsiderar totalmente o caráter de manifestação dos alunos e
consequentemente negar a via exegética que levaria à incidência de
direitos fundamentais, previsto na Constituição da República
Federativa do Brasil – CRFB/88.
O aludido Parecer nº
193/2016 tratava a mobilização estudantil como uma mera invasão de
propriedade privada e ainda sugeriu o emprego de força policial
proporcional ao agravo. Sendo ato do governo estadual, a polícia a
atuar na repressão seria a Polícia Militar de São Paulo, órgão
ligado à Secretaria de Segurança Pública do Estado, conhecido por
sua violência.
Outro efeito da
interpretação da PGE/PS, não menos importante que o primeiro, era
a de que a retomada da posse não deveria ser submetida à chancela
do Poder Judiciário, seria, portanto, uma ato imediato, a ser
autoexecutado. Logo, bastaria ao Poder Público agir: convocar a
polícia militar e ingressar nas escolas, como se fossem simples
prédios, expulsando os invasores, usurpadores ilegítimos da posse;
não haveria sequer necessidade de ajuizar ação de reintegração
de posse com pedido liminar.
O tema gerou ampla
divergência e, ao mesmo tempo em que o Governo de São Paulo agia
para reprimir com a polícia as ocupações, novas vozes se
destacaram no cenário interpretativo.
INTERPRETAÇÃO NO
SENTIDO DA NECESSIDADE DE JUDICIALIZAR A QUESTÃO
Uma segunda interpretação
sustentou que se fazia indispensável a propositura de ação de
reintegração de posse para que se colocasse fim às ocupações
escolares. Tal exegese restringiu-se à formalidade, não se
manifestando sobre a natureza da norma a ser aplicada no caso
concreto; verifica-se, portanto, que se tratava de questão
procedimental, no sentido de que o Estado de São Paulo deveria
pleitear a retomada da posse perante o Poder Judiciário, e aí
caberia ao juízo analisar o caráter da mobilização,
interpretando-o, e aplicar a norma material de modo a apaziguar o
conflito.
INTERPRETAÇÃO DE
NATUREZA CONSTITUCIONAL
De acordo com a aplicação
nas normas constitucionais, a ocupação das escolas deveria ser
respeitada, sendo imprescindível a atuação do Poder Judiciário,
de modo a assegurar a prevalência do exercício dos direitos de
reunião e de manifestação, previsto no artigo 5º, incisos
XVI e IV, da Constituição da República.
Consoante essa
interpretação, a ocupação é protesto legítimo dos estudante e
deve ser analisada levando-se em conta as normas constitucionais e
não o Código Civil. A Constituição é a Norma Fundamental do
Estado e ocupa o ápice da pirâmide de Kelsen, ou seja, há
hierarquia entre os atos normativos, figurando a norma constitucional
sobre todas as outras, como afirma PADILHA (2011, p. 3). Assim, é
relevante observar como as normas foram aplicadas no que se refere ao
movimento estudantil, já que se está diante de direitos e garantias
fundamentais. Acerca da extensão da interpretação que se atribui
a direitos dessa índole, SARLET (2012, p. 455) aduz que:
… o âmbito de proteção
da liberdade de expressão deve ser interpretado como o mais extenso
possível, englobando tanto a manifestação de opiniões, quanto de
ideias, pontos de vista, convicções, críticas, juízos de valor
sobre qualquer matéria ou assunto e mesmo proposições a respeito
de fatos.
Assim, é indispensável
que se verifique se o que está em jogo é uma simples invasão de
propriedade ou se é uma ocupação decorrente do exercício dos
direitos constitucionais de liberdade de expressão e de reunião. No
caso da ocupação das escolas públicas não há dúvida de que o
movimento se insere na segunda hipótese, dada a sua organização,
suas legítimas reivindicações, bem como o modo pacífico pelo qual
se fez.
Ou seja, trata-se de um
Estado Democrático de Direito, embora muitas vezes alguns juristas e
intérpretes das normas deixem de lado o termo “democrático”,
dando ênfase ao Direito sob uma perspectiva legalista (positivista)
e infraconstitucional.
É evidente o anseio
democrático dos estudantes que ocuparam as escolas, uma vez que,
entre suas propostas, está a maior participação na administração,
inclusive com eleições diretas para a direção das instituições.
A mobilização, tal como
a do Chile (Revolução dos Pinguins), lutava contra medidas
neoliberalistas que afetavam a rede de ensino público. Os
alunos protestavam contra um processo global, em que as instruções
neoliberais acatadas por governos enfraquecidos perante a
financeirização, o capital especulativo, bem como as
transnacionais, o poder econômico, em suma, em sua versão não
produtiva.
Trata-se de uma tentativa
de resgate da cidadania e de reduzir as desigualdades, cada vez
maiores. No Brasil, a maioria pobre não conseguia ter acesso a
escolas com qualidade. Acerca do tema, BAUMAN (2000, pág. 84)
destaca que a “passagem para o estágio final da modernidade ou
para a condição pós-moderna não produziu maior liberdade
individual (...). Apenas transformou o indivíduo de cidadão
político em consumidor de mercado”.
Do mesmo modo, a
legitimidade e a forma do movimento, além de serem resguardas pelos
direitos constitucionais, são justificadas, já que o direito à
cidade decorre do movimento político, como afirma HARVEY (2013, p.
34) no sentido de que “…repousa sobre a capacidade de forçar a
abertura de modo que o caldeirão da vida urbana possa se tornar o
lugar catalítico de onde novas concepções e configurações da
vida urbana podem ser pensadas e (…) ser construídas.”
A interpretação do
Parecer nº 193/2016 (PGE/SP) sustenta uma interpretação
infraconstitucional positivista, na medida em que defende a aplicação
do Código Civil. Tal exegese se choca com o chamado pós-positivismo,
que consagra
verdadeiro avanço, tendo em vista que o positivismo permitiu as
atrocidades cometidas pelos regimes nazista e fascista, cujos atos se
deram de acordo com as leis então vigentes. As constituições do
pós-guerra, com a tutela dos direitos humanos e de minorias impede
que maiorias criem leis de extermínios de grupos de menor
representatividade.
Neste
contexto, o surgimento dos regimes constitucionalistas decorre e
agrava a decadência
do positivismo. Os movimentos da direita, de caráter militar,
“ascenderam ao poder dentro de um quadro de legalidade vigente e
promoveram a barbárie em nome da lei,” como
afirma BARROSO (2006, p. 325).
Com efeito, o direito à
cidade, interligado ao direito à liberdade de expressão e de
reunião, não é apenas algo formal, distante da realidade, mas um
direito de fruição, que envolve o uso da infraestrutura da
municipalidade, dos equipamentos e dos serviços públicos,
abarcando, evidentemente, outros direitos previstos na Constituição,
como saúde, lazer, assistência social, educação, dentre outros. E
há de se observar a efetividade das normas constitucionais, na
concepção de BARROSO (2006, p.105/222).
No caso da ocupação das
escolas sobressai o direito à educação e não apenas como um
currículo básico a ser cumprido. Trata-se de um direito que exige
uma prestação do Estado e por se dar em locais específicos, há de
se ter em vista a função social da propriedade, tanto privada
quanto pública, como se verifica na hipótese do ensino público.
Dúvida não há sobre a
natureza constitucional do conflito, razão pela qual cabe ao Estado
cumprir o disposto na Lei Maior. No caso da ocupação, respeitar a
movimento estudantil em sua forma pacífica de democrática de se
manifestar, abrindo-se ao diálogo.
DECISÕES JUDICIAS E POSTURAS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Submetida a ocupação
das escolas ao Poder Judiciário nos Estados de São Paulo e Rio de
Janeiro, verifica-se que houve decisões em sentidos divergentes,
sendo que parte dos órgãos julgadores de primeira e segunda
Instâncias entendeu pelo caráter de protesto legítimo e parte
decidiu no sentido de determinar a reintegração do Estado.
O Tribunal de Justiça de
São Paulo decidiu no dia 23 de novembro, por unanimidade, que não
deveria haver nenhum tipo de reintegração de posse. O
entendimento do TJ-SP é que o objetivo das ocupações não é tomar
posse do prédio público, mas promover um diálogo com o Estado.
Todavia,
mencionada decisão não
tem poder vinculante em outras ações e só é válida para as
escolas citadas no processo (todas da capital). Em seis cidades do
interior, os juízes locais já decidiram no sentido contrário e
ordenaram a reintegração, inclusive com autorização do uso de
força policial contra os estudantes. Em seguida, a Defensoria
Pública (que tem atuado na defesa dos interesses dos estudantes
contrários ao fechamento) entrou com recursos em varas locais
anexando a decisão do TJ como argumento.
A estratégia surtiu
efeito: em seis cidades onde ocorrem ocupações das escolas, os
juízes de primeira instância suspenderam as reintegrações
após ter sido juntado no processo a decisão do Tribunal de Justiça
por via recursal.
É
importante ressaltar o entendimento que prevaleceu no Poder
Judiciário Fluminense, noticiado no sítio eletrônico do TJRJ:
“Vara da Infância
inicia negociação entre Estado e estudantes. Notícia publicada
pela Assessoria de Imprensa em 10/05/2016 21:51. Representantes da
Secretaria estadual de Educação (Seeduc), da Defensoria Pública do
Rio de Janeiro e lideranças do movimento estudantil “Ocupa”
participaram de uma audiência de conciliação realizada pela juíza
Glória Heloiza Lima da Silva, titular da 2ª Vara da Infância, da
Juventude e do Idoso da Capital, nesta terça-feira, dia 10. O
objetivo foi abrir caminho para uma negociação entre o governo do
Estado e os estudantes insatisfeitos com a gestão do ensino que
ocupam escolas da rede pública estadual desde o início deste ano
como forma de protesto. (…) A juíza determinou que a Secretaria de
Educação realize, no prazo de sete dias, o crédito retroativo dos
valores referentes às passagens dos alunos até 1° de maio, já que
no dia seguinte a pasta publicou uma resolução que antecipava as
férias escolares na rede estadual por conta das escolas ocupadas.
(…) Na decisão, a magistrada: determinou a adequação da merenda
escolar ao cardápio informado no site da Secretaria estadual de
Educação no prazo de sete dias. (...) Sobre a falta de material
didático, a Justiça determinou que a Secretaria disponibilize os
livros que não estão sendo usados até o dia 2 de junho, quando
retornam as aulas. Em caso de descumprimento da decisão judicial, a
multa diária é de R$ 5 mil. (…) a magistrada também proibiu a
Secretaria de Educação de fazer postagens em suas redes sociais
fomentando o antagonismo entre estudantes ao estimular o movimento
“Desocupa”, composto por alunos contrários à ocupação dos
colégios como forma de protesto. Em caso de descumprimento da
decisão judicial, a multa será de R$ 10 mil por postagem. (…)
Juíza proíbe que integrantes das ocupações sejam punidos. A juíza
determinou ainda que todas as escolas da rede estadual coloquem em
prática a resolução que institui os Grêmios Estudantis,
possibilitando a participação dos alunos nas decisões junto à
direção dos colégios. Em sua decisão, a magistrada ressaltou que
não poderá haver punição ou perseguição aos alunos que aderiram
ao movimento estudantil “Ocupa” e que o currículo escolar terá
de ser readaptado, com reposição das aulas dos dias letivos
prejudicados. Por sua vez, os integrantes da ocupação estão
obrigados a liberar o acesso de demais estudantes e funcionários aos
espaços das escolas para expedição de documentos. (…)
Processo: 0105730-36.2016.8.19.0001”.
No tocante aos órgãos
do Poder Executivo no Rio de Janeiro e em São Paulo, constata-se que
em um primeiro momento houve esforço de retomar a posse, de forma
violenta, como é comum agirem em relação a protestos. Aliás, a
própria ideia original de ocupar colégios decorre da necessidade de
evitar as passeatas nas ruas, reprimidas violentamente pela polícia.
A Secretaria de Educação
do Rio de Janeiro inicialmente entendeu que o movimento era ilícito
e ilegítimo e deveria, portanto, ser desfeito de imediato, com
auxílio da polícia. Posteriormente, a mesma Secretaria mudou sua
interpretação dos fatos e reconheceu a legitimidade da mobilização,
abrindo-se ao diálogo. Essa postura decorreu evidentemente da
atuação da Defensoria Pública e do Ministério Público.
CONCLUSÃO
À luz do que precede,
cabe ressaltar que, sob a égide de um Estado Democrático de
Direito, no qual a Constituição é a manifestação formal da
vontade do povo e vincula a todos, inclusive e principalmente o
Estado, deve o Poder Público atuar de acordo com o que lhe impõe a
Carta Magna.
Como já mencionado,
trata-se de profunda crise política: a cidadania vem sendo
fragmentada e reduzida, para limitar-se aos papéis individualistas
de consumidores e condôminos. Quando estudantes do ensino médio das
escolas públicas de dois dos mais populosos estados do Brasil
passam a se organizar e exercer seus direitos de liberdade de
expressão e reunião, ocupando as suas escolas a fim de reivindicar
a manutenção e melhora de serviço essencial, vê-se a ruptura do
papel de mero consumidor-individualista para agir coletivamente e na
esfera política.
Os direitos fundamentais
apresentam ampla aplicação, inclusive no tocante às relações
privadas, adotando a eficácia horizontal de referidos direitos e
garantias constitucionais. Também vale ressaltar o crescimento da
corrente do Direito Civil Constitucional, que enriquece a leitura da
Lei, compatibilizando-a com o sistema jurídico e a preponderância
das Normas Fundamentais. Desse modo, evidencia-se o dever do Estado
de reconhecer e respeitar o legítimo exercício dos direitos
consagrados na CRFB/88.
Verificou-se a
divergência do Poder Público e órgãos do Poder Judiciário ao
depararem com a ocupação das escolas pelos alunos. Decisão de juiz
de primeiro grau bem como o governo paulista entenderam, em um
primeiro momento, que seria legítimo o exercício do desforço
necessário, com base na Lei Civil e na autoexecutoriedade relativa à
Administração Pública.
Contudo, não foram estas
as decisões finais. Além das mobilizações, com adesão da
sociedade, houve a atuação da Defensoria Pública e do Ministério
Público, pleiteando em tutela coletiva, bem como o confronto entre
as posições adotadas em Primeira e Segunda Instâncias do
Judiciário de São Paulo.
No Rio de Janeiro, houve
a realização de um acordo entre o governo e os manifestantes. No
Estado paulista o governador desistiu da proposta inicial de fechar
escolas e demitir professores. Houve diálogo, tutela dos direitos,
participação cidadã, visando à melhoria de um serviço público
essencial.
Como deve ser, as normas
constitucionais prevaleceram sobre a legislação
infraconstitucional, no caso, o Código Civil, que deve ser aplicado
apenas nas hipóteses de conflito entre particulares e não quando se
tratar de situação que envolva o Estado e adolescentes, estudantes,
usuários diretos do serviço de educação pública, que vem sendo
reduzido desde a ditadura militar iniciada em 1964. O ensino público
perdeu qualidade e houve uma aprofundamento da cisão entre os mais
pobres e a classe média no que se refere ao uso do serviço, do
compartilhamento deste ambiente de construção social.
Certo é que o Estado
moderno, na forma em que se manifesta, surge como criação vinculada
ao capitalismo e não é, nem nunca foi, algo pronto, perfeito,
acabado, dada a sua própria natureza; sendo assim, há que se
reconhecer a legitimidade das mobilizações com intuito de moldá-lo.
Em tempos de grande
retrocesso, de golpes parlamentares, sanções sem infrações,
repressão, criminalização de movimentos sociais, fundamentalismo
religioso, é mais do que relevante estudar, analisar, promover
diálogo, sobretudo quando se está diante de protestos legítimos,
de filhas e filhos dos cidadãos mais pobres do país.
Os estudantes exerceram
seus direitos e o diálogo foi possível, a Administração Pública
cedeu, trocou informações e houve a aproximação de uma solução
pacífica e aparentemente satisfatória. Para os alunos, o governo e
a sociedade como um todo, na medida em que a formação de cidadãos
exige maior participação e capacidade crítica, como mostraram os
estudantes mobilizados no Rio de Janeiro e São Paulo.
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Processos judiciais que começam pelo final
A
decisão do Min. Barroso na medida
cautelar no Mandado de Segurança (MS) 34.448 DF
vai além da análise cabível numa liminar (início do litígio).
Nesse momento, o magistrado não deve se aprofundar acerca do mérito,
que deve ser analisado no final do processo. No entanto, é cada vez
mais comum vermos liminares com conteúdo de sentença. Na esfera
criminal, algumas decisões de prisão preventiva já condenam o réu
logo num primeiros atos do processo. No caso do MS contra a
tramitação da PEC 241, o Min. Barroso analisou o mérito e se
manifestou a favor do conteúdo da emenda. Mais uma vez a
Constituição é rasgada. O processo, com todas as suas garantias,
não pode ser encerrado no início.
quinta-feira, 27 de outubro de 2016
Golpes
Afastaram uma presidente sem crime de responsabilidade. Muita discussão sobre o tema, dúvidas mil, o que por si só já demonstra a fragilidade do impedimento. Muitos se calaram, talvez pela complexidade do tema, talvez por questões de ordem prática, tendo em vista a dificuldade de governar diante da composição do Congresso (o mais conservador desde 1964). Depois o STF mexeu na presunção de inocência, mudando a interpretação do "trânsito em jugado". Muitos se calaram. De novo, argumentos de ordem prática, violando questões jurídicas. Agora veio a PEC 241, com tramitação acelarada, pouco debate. 20 anos de cortes. Protestos violentamente reprimidos no Rio. Hoje, o STF, depois de anos de inércia, decide restringir o direito de greve no serviço público. Justamente na hora das mobilizações contra esta PEC maldita. E tem mais retrocessos, como a MP do ensino médio, a reforma da previdência etc. É golpe, sim. E não é só do parlamento ou de um ou dois partidos. Está cada vez mais claro.
Greve no serviço público: STF suprimindo direitos
A PEC 241 (congelamento por 20 anos) passou pela Câmara. Agora vai para o Senado. O STF, depois de anos, resolve julgar processo sobre greve no serviço público e decide que o servidor pode fazer greve, mas seu salário será cortado imediatamente. É evidente que o Judiciário está agindo para travar a as mobilizações contra as medidas neoliberais que este governo quer impor. Não existe lei regulamentando a greve do servidor público, pois o Congresso nunca legislou sobre este tema. Mais uma interpretação do STF que suprime direitos...
http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/10/1826934-stf-decide-que-poder-publico-deve-cortar-salarios-de-servidores-grevistas.shtml
http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/10/1826934-stf-decide-que-poder-publico-deve-cortar-salarios-de-servidores-grevistas.shtml
quarta-feira, 26 de outubro de 2016
A banda (conto)
I. Arte
“Na bateria (solo de bateria): Baixinho!
No baixo (solo de baixo): Dedão!
Backing vocals (dois solos vocais seguidos): as Carpideiras
– Lúcia e Julie!
Na guitarra solo (solo de guitarra): Ligeirinho!
Na guitarra base e no vocal: Leo Bajá! Somos a Banda Subsolo!” -
apresenta-se o vocalista, curvando-se diante da plateia.
Platéia
minguada; palmas e gritos esparsos. As mais aplaudidas sem dúvida
foram as backing vocals, muito mais pela forma (e por serem as únicas
mulheres por ali) do que pelas vozes, embora as meninas cantassem
bem.
A
apresentação chegava ao fim no bar do Zé Podrão, mecenas
pós-moderno da baixada fluminense. O apelido não era por causa dos
dentes amarelos que ostentava, nem por causa do cheiro rançoso que
exalava; era “podrão” por causa da mania comer cachorro-quente
de barraquinha improvisada, com tudo que tinha direito.
Amante de rock progressivo, punk rock, heavy metal, grunge etc. (ele
achava uma babaquice essa mania de classificar o rock assim; dizia
sempre, “eu ouço música, essas classificações imbecis só
servem pras gravadoras e babacas de plantão”), Zé era dono de
três bares: um em Niterói, um em Duque de Caxias e outro em São
João de Meriti.
Como fazia questão de afirmar, quando lhe perguntavam o que fazia da
vida: “sou dono de caixinhas de música pra iniciados, porra!”;
ou então: “procure rock de verdade e descobrirá no que
trabalho!”; ou ainda: “sou um mecenas pós-moderno!” (isso ele
só dizia pros metidos a intelectuais). E se o objetivo era pegar um
empréstimo: “sou empresário, ramo de gastronomia e artes”.
Assim que a banda Subsolo desceu do palco (degrau de cimento cru), Zé
se aproximou deles:
- Mandaram ver! Porra, que solo foi aquele,
Ligeirinho-ligeiro-ligeiresco-ligeirudo-lígio! Arrebentaram!
- Valeu, Podrão! Eu tava inspirado hoje, e tu parece que tá um
tanto aspirado; estica uma pra mim, pobre-podre-puto-Podrão? –
respondeu Ligeirinho.
-
Tô aspirado porra nenhuma! É álcool puro mesmo! Eu lá tô com
grana pra dar teco! Não sou homem de dar um tequinho só. Só compro
pó quando tenho grana pra cheirar 2 dias e duas noites, pelo menos!
Sem contar o das putas...
-
Por falar em grana - já foi cobrando o Leo – quanto a gente tira
hoje, Zé?
-
Hoje o movimento foi uma merda! Preju total! Paguei pra casa abrir
hoje, porra! Quase ninguém veio: olhaí essa merda, tudo vazio. Um
ou outro bebendo uma cerveja. Só a bebida que vocês da banda
consumiram já me fodeu...
-
Porra, Zé! De novo! - disse Ligeirinho - Tu cheira a grana do fim de
semana e dá nessa merda. A gente sempre toca de graça, por cachaça;
e você é tão filho-da-puta que nem o pó tu põe na roda. Tu é
foda!
-
Palavra de honra! Se eu tivesse uma carreirinhazinha que fosse,
colocava! E tô puro de grana. Prometo que quando entrar pago o show
de hoje! Hoje é quarta; é essa merda mermo. Se vocês tocarem
sábado eu compenso!
-
Porra, Zé, nem cinquentinha?
-
Tô liso, tô duro. E não bota banca, não, caralho, porque
vocês vivem bebendo de graça nessa merda; e o principal: vocês
tocam aqui o que querem: músicas da banda, não são obrigados a
ficar agradando público, fazendo cover...
-
Tá bom, Zé - acalmou Ligeirinho -, a gente acerta no sábado. Mas
quero dinheiro. Não adianta querer pagar com pó malhado, não!
-
Tô devagar, quase parando. Pó é foda...
-
Tá bom! Com esse nareba nervosa?! É mais fácil minha vó começar
a trincar que você parar com a branquinha, gordo safado!
-
Hahahaha! – gargalhou Zé e deu uma porrada com a mão aberta na
mesa cheia de garrafas de cerveja vazias.
A
banda bebeu mais um pouco; depois, arrumaram a tralha e seguiram para
casa, divididos num caravan e num fusca velhos (de oitenta e poucos),
ambos caindo aos pedaços.
Antes
de fechar o bar, Podrão, agora sozinho, esticou, meticulosamente,
num espelhinho, que tirou de dentro da gaveta da grana, uma carreira
do tamanho dum dedo mindinho de mulher alta e magra. Estalou a
língua, tlac - sempre dava uma estalada antes de cheirar -, e com
uma nota de cem reais enrolada em forma de canudo (nunca cheirava com
nota menor, segundo ele dava azar) meteu a naba, sugou num estalo o
pó batido; levantou a cabeça como se fosse um chicote, fungando
tudo pra dentro, os olhos arregalados. Não demorou um minuto, apagou
as luzes e se meteu debaixo do balcão, convicto de que a polícia ia
entrar no bar a qualquer momento.
Ficou
atrás do balcão, com as baratas lhe percorrendo as mãos espalmadas
no chão (estava de quatro) até se acalmar, o que só aconteceu
quando deu umas boas tragadas na cachaça que guardava ali. E, a cada
vez que se acalmava, levantava, fumava um cigarro e dava um novo
teco, que o fazia apagar a luz, ir pro chão, cheio de neura e
repetir todo o processo.
Zé
só conseguiu sair do bar às cinco e pouco da manhã, quando os
passarinhos já vaticinavam o dia, depois de matar a garrafa de
cachaça e fumar um baseado.
II – Trabalho
“Veneno! Veneno!
A gente vive pra quê?
Pra depois morrer!
‘Cadáveres adiados’,
Que eternos julgam ser.
Mil deuses e teorias
criam,
Pra fugir dos vermes,
Pra fugir do subsolo,
Pra fugir do fim.
Pra fugir, pra fugir,
pra fugir.
Imbecis, os vermes são
tão
Vivos quanto nós:
Deixam nossos ossos
Brancos como lençóis.
Veneno, veneno...”
-
Valeu, valeu! Por hoje tá legal; até que o ensaio rendeu hoje –
disse Leo.
-
Porra, a gente tem que se livrar das Carpideiras; nosso som
flui muito melhor sem elas! – falou Ligeirinho.
-
Não, eu discordo – respondeu Leo. – Nosso som tá diferente
justamente por causa delas.
-
Qual é, Leo! Você insiste porque tá comendo a Lúcia – rebateu
Ligeirinho.
-
Não, não é nada disso! Eu nunca deixaria alguém atrapalhar nosso
som por esse motivo; você sabe muito bem disso – se defendeu Leo.
-
Tá certo, tá certo; mas eu acho que as meninas atrapalham mais que
ajudam. Mas pelo visto tô sozinho nessa...
Ensaiavam
na casa do Baixinho, pois a bateria era o centro de gravidade da
banda, para onde todos eram atraídos na hora de ensaiar. Nada mais
natural: a bateria, o instrumento mais pesado, mais chato de carregar
e de montar ficava no seu lugar sempre, o resto da banda que fosse
até lá; e assim faziam, pelo menos, duas vezes por semana.
Terminaram
de arrumar o equipamento e marcaram um encontro no dia seguinte às
11 horas na praça XV.
Dia
seguinte, praça XV, onze e meia da manhã; Leo e Ligeirinho de pé,
debaixo do elevado da Perimetral, conversando.
“Impressionante!
Essas piranhas nunca chegam na hora!”, disse Ligeirinho. “Dedão
já ta lá na Rio Branco há meia hora...”
“Tão
chegando, tão chegando; olha ali”, apontou Leo para as meninas -
Lúcia e Julie -, que emergiam do subsolo (mergulhão).
As
meninas passaram perto deles, sem cumprimentá-los. Os dois
continuaram conversando por mais uns cinco minutos e depois desceram
em direção à avenida Rio Branco, pela rua da Assembléia. As
meninas haviam tomado o mesmo sentido, mas, contornando o Paço,
seguiram pela rua Sete de Setembro (paralela à rua da Assembléia).
Ao
chegar na esquina da rua da Assembléia com avenida Rio Branco, Leo
se separou de Ligeirinho, sem se despedir, e seguiu na mesma calçada
(sentido Av. Presidente Vargas) até entrar num banco. Ligeirinho
atravessou a avenida e caminhou no sentido inverso (foi à Carioca
comprar cordas pra guitarra e depois iria esperar perto do carro,
estacionado lá na Lapa, pra não pagar flanelinha).
Dez
minutos depois, Leo saiu de um banco e parado entre uma árvore e uma
banca de jornal fez uma ligação de seu celular. “Fala. Olha,
acabei comprando uma calça preta - ele é jovem -, e uma camisa azul
- ele é moreno. Sozinho, é claro. Esquina com Sete de setembro.
Médio, um e setenta. Estarei atrás, três metros. Beijo”.
As
meninas, que estavam numa livraria perto dali, foram em direção à
Rio Branco. Pararam num camelô, afetando interesse nas bolsas que
expostas no chão. Não demorou cinco minutos para que vissem o homem
descrito e Leo, atrás.
Quando
o homem de calça preta e camisa azul se aproximou, Julie, olhando-o,
abriu um sorriso e comentou qualquer coisa com Lúcia, que deu um
risinho, levantando os ombros e olhando de rabo de olho para o rapaz.
O
homem viu tudo: olhar, comentário e sorriso. Assim que passou por
elas, virou a cabeça para vê-las mais uma vez, mas para sua
surpresa um homem estranho mexia grosseiramente com as meninas, que
estavam com cara de medo, pânico e que, fugindo das grosserias, se
aproximavam dele. Ele percebeu tudo e, reduzindo a velocidade, lhes
concedeu proteção. O homem estranho se afastou em seguida.
Julie
agradeceu e puxou conversa. “Cada maluco que aparece! Se não fosse
você...”. Pouco tempo depois eles estavam sentados numa
lanchonete, conversando. O papo não durou muito; as meninas disseram
que tinham uma entrevista de emprego meio-dia e meia. Ele pagou a
conta e deixou o número do seu celular com elas; Julie lhe deu o
dela.
III. Dinheiro
Meia
hora depois a banda quase completa - só faltava o Baixinho - ia à
casa de Leo, apertados no caravan.
-
Hoje foi moleza. Resolvemos tudo no primeiro. Mi menor, si menor, mi
menor; lá menor, ré, sol. Já ouvi essa seqüência em algum lugar.
1, 4, 1, 2, 8, 3: deve ser data de aniversário: 14/12/83. Tenho
quase certeza que é MPB. Mi menor, si menor, mi menor; lá menor,
ré, sol. Os idiotas colocam som nas teclas dos caixas eletrônicos:
cada senha é uma música, e cada música é dinheiro; money, get
away... – disse Leo, cantarolando no fim.
-
Mi menor, si menor, mi menor; lá menor, ré, sol? Em casa a gente
toca e confere; se não for de ninguém, a gente pode tentar compor
qualquer coisa... O que importa é que arrumamos mais uma fonte de
grana. – falou Ligeirinho.
- O
susto quase sempre dá certo. Hoje foi perfeito: cheguei perto das
meninas quando o otário virava o rosto para azarar. Tiro e queda.
Nada como um inimigo comum para aproximar pessoas... –
vangloriou-se Dedão.
- E
ele pagou com o cartão - completou Julie. - Baixinho já dever estar
com o molde pronto; agora, é só esperar ficar pronto e partir pros
saques. Com esse, já são quantos?
-
Estamos com 26. - respondeu Leo. - Chegamos a 29, mas três já
trocaram de senha ou cartão. O negócio é sacar um pouquinho de
cada vez, pra não dar mole...
- O
Baixinho é perfeito pro negócio – disse empolgado Ligeirinho. - O
filho-da-mãe, além de pegar o molde dos cartões (pois trabalha
naquela lanchonete), ainda é o sacador oficial da banda, porque é
tão baixinho que a câmera do caixa não filma o seu rosto.
-
Cada um faz o que pode: o show não pode parar – disse Leo. -
Minhas habilidades musicais tão rendendo bem. Furto sem uma gota de
sangue, quase sem risco. E o melhor: tempo pra música, tempo pra
arte. Porque ser músico profissional, ter que tocar pra comer, é
uma merda: você acaba tocando em festas - de casamento, de quinze
anos, de aniversário (tudo uma merda: um bando de idiotas pedindo
musicas de rádio) -, em restaurantes e churrascarias (deprê
total!), ou vai pra publicidade, marketing, fazer aquelas merdas de
jingles, pra ganhar merreca.
-
Que saudade dos mecenas! – ponderou Lúcia.
- É
isso aí. Todo mundo fica falando na extinção dos bichos –
arrematou Ligeirinho. - Fodam-se os bichos! Eles não servem pra
porra nenhuma! Da pior extinção, a extinção dos mecenas, ninguém
fala nada...
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